Bibi Ferreira acabava de lançar o DVD Histórias & Canções, uma compilação de trechos de um show no qual fazia um apanhado de memórias associadas a interpretações que fizeram dela um dos maiores nomes da música e do teatro brasileiro. Em entrevista por e-mail, ela avisou: “Posso ter idade, mas não sou antiga”. Antiga, Bibi nunca será. De olho no moderno, ela ajudou a atualizar o teatro brasileiro nos anos 1940, inovou na direção, fez musical e ópera, cantou Piaf e Frank Sinatra e ainda dirigiu artistas até hoje na crista da vanguarda, como Maria Bethânia.
Em setembro do ano passado, ela avisou que se afastaria dos palcos em função da saúde. Entendeu que estava frágil ao sucumbir a várias infecções oportunistas, mas nunca usou a palavra “parar”. Na verdade, seria difícil parar o trem de Bibi Ferreira. Há poucos artistas tão completos quanto ela nos dias de hoje. Bibi era multi: cantava, dançava, narrava, atuava e dirigia.
Uma das primeiras grandes damas do teatro no Brasil, Abigail Izquierdo Ferreira morreu na tarde de ontem, aos 96 anos, em seu apartamento no Flamengo, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro. Segundo o empresário Nilson Raman, uma ambulância chegou a ser chamada, mas não houve tempo. Bibi teria sofrido uma parada cardíaca depois de se queixar de falta de ar.
Filha do ator Procópio Ferreira e da bailarina argentina Aída Izquierdo, Bibi Ferreira não tinha um mês de vida quando estreou nos palcos. Substituía uma boneca que devia servir de bebê na peça Manhã de sol, de Oduvaldo Vianna. Não houve jeito, desde esse pequeno início, de manter a menina fora dos palcos. A estreia profissional ocorreria 18 anos depois, em 1941, em La Locandiera, de Goldoni.
Destaque
No corpo de baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, ela fez boa parte desse início de carreira, mas foi nos anos 1940, quando voltou de um período de estudos no Royal Academy of Dramatic Art, em Londres, que despontou dirigindo espetáculos e atuando. Três anos depois da estreia com Goldoni, ainda muito nova, Bibi fundou sua própria companhia de teatro, da qual faziam parte Cacilda Becker e Maria Della Costa. Era o mínimo. O teatro brasileiro se modernizava, os atores precisavam decorar suas falas, o diretor deixava de ser um mero ensaiador e Bibi fazia parte dessa turma jovem que chegava aos palcos cariocas.
Cantora risonha, de voz e presença imponente, ela transitava por todos os gêneros. Cresceu entre o teatro de revista praticado pela mãe e o amor pela ópera, herança do pai. No palco, fez os dois e virou referência do teatro musical. Com a mãe, que integrava a Companhia Velasco, a menina percorreu a América Latina e atuou eventualmente nas peças encenadas nas turnês. Teve como primeira língua o espanhol.
O português viria depois, graças a Procópio Ferreira. “(o gosto pela ópera) veio do papai. Todo dinheiro que sobrava, lá chegava ele com aqueles bolachões. E era ópera o dia todo. Saía um disco entrava outro. E papai vibrava”, contou Bibi, em entrevista ao Correio, em dezembro de 2017. “Os números que fiz, as versões, são grandes brincadeiras. Um jogo delicioso com as letras brasileiras. Mas esses números todos que crio em todos os meus espetáculos é herança da época que fiz as revistas musicais. A malemolência, o jogo de palavras, o duplo sentido. Tudo vem dessa época”, lembrou.
Referências
As heranças culturais dos pais, que se separaram quando a cantora era ainda muito jovem, tiveram enorme influência em sua formação. Além do português e do espanhol, Bibi falava francês e inglês, línguas nas quais cantava perfeitamente. Não foi à toa que um de seus últimos sucessos tenha sido o espetáculo com canções de Edith Piaf. Dos clássicos da música brasileira e internacional à ópera, não havia limites para o alcance musical da artista.
Suas atuações em musicais como My fair lady (1964) e O homem de la Mancha (1972), no qual cantava ao lado de Paulo Autran, entraram para os anais do teatro brasileiro como interpretações difíceis de superar. Com o quarto e último marido, Paulo Pontes, realizou parceria profícua. Bibi o dirigiu no musical Brasileiro: profissão esperança (1970) e, cinco anos mais tarde, viveu a Joana de Gota d’água, uma parceria de Paulo Pontes e Chico Buarque.
Vivido em uma interpretação memorável, o drama da favelada Joana, abandonada por Jasão, foi uma oportunidade para Bibi mostrar do que era capaz quando se tratava de um papel trágico. As gravações em fita cassete da voz da atriz na pele de Joana encantaram a atriz Laila Garin, que revive o papel de Bibi em Gota d’água (A seco), na releitura de Rafael Gomes apresentada em Brasília no último fim de semana. Laila ouviu a fita nos anos 1990, quando ainda era adolescente. “Fiquei fascinada, não sabia que havia atriz que cantava. Ela fazia com aquela intensidade, beleza, era uma grande feiticeira, uma bruxa. A Bibi foi meu primeiro contato com isso que me tornei. E virou um caminho”, conta Laila, que ganhou o Prêmio Bibi Ferreira duas vezes, uma com Elis e outra com Gota d’água (A seco).
O talento para o canto e para a atuação deram à artista um domínio tal da cena que foi inevitável a presença por trás das cortinas. Nos anos 1970, Bibi dirigiu Maria Bethânia e Clara Nunes, Marília Pêra, Walmor Chagas e Marco Nanini. “Não vivo do passado, mas também não fico pensando no futuro. Penso no hoje, no aqui, no agora”, explicou, em entrevista ao Correio, ao lembrar de sua atuação como diretora. Esse pensamento a manteve nos palcos até 2017. Foram 77 anos de carreira, se ficarem de fora as brincadeiras iniciais, ainda na infância, ao lado dos pais. Ou uma vida toda, se o ponto de partida for Bibi sob direção de Oduvaldo Vianna, com 24 dias de existência.
Para sempre
Leia trechos da última entrevista concedida por Bibi Ferreira, ao Correio, em dezembro de 2017:
O mundo dos musicais no Brasil mudou muito?
Claro que mudou, cresceu, está crescendo, amadurecendo. Temos grandes talentos. Grandes vozes. Muita coisa boa sendo feita. Existem atores que se dedicam só a musicais. Veja só que maravilha!!! Além do início do uso dos microfones, que ajudou muito. Meus primeiros musicais era tudo no gogó.
Você continua sendo uma cantora extremamente versátil e cantar ópera é um prova disso. É difícil manter essa versatilidade?
A música me encanta. Uma grande canção me emociona. E acho que a versatilidade vem quando você está pensando num novo espetáculo e pensa o que gostaria de apresentar para o público. A vontade de sempre surpreendê-los. Aquelas canções que me permitem boas notas. Nada como um grande agudo para o público gostar....
Como mantém a voz?
Não existe mistério. Agradeço a Deus todos os dias. Não faço nada em especial. Agora, a minha vida inteira nunca fumei, não bebo, não tomo gelado e sempre tive uma consciência muito grande do ato de cantar. Da maravilha que é cantar.
Você já disse que não é uma estrela e sim um cometa, porque este está sempre em movimento. Pode contar que movimento é esse que lhe fascina?
Acho que quando você me pergunta sobre a versatilidade, está respondendo que movimento é esse. A vontade de fazer coisas novas, cantar coisas novas, lembrar grandes canções. Atuar, cantar, dirigir, criar roteiros. Hoje minha vida é muito mais calma. Já não tenho vontade de dirigir mais.
E que conselho daria aos jovens artistas de hoje, você que é uma artista completa, dança, canta, atua, dirigir?
Que sigam seus sonhos. Vocação é vocação. Se você tem, como fugir dela? Mas é sempre bom falar que é uma carreira muito difícil. Muito.