Beth Ernest Dias gosta de uma história bem contada. Não à toa, ela mesma ajudou a escrever a história da flauta e do choro em Brasília, com destreza herdada da mãe, a francesa Odette Ernest Dias. Foram anos de dedicação à música, nos palcos e nas salas de aula. Agora, ela se concentra em manter viva a memória dos anos de pioneirismo na Escola de Música de Brasília e na Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro, há anos órfã de sua casa.
Reconhecida flautista, formou-se em uma época em que o Google não existia — como bem reforça o mestre Severino Francisco em uma de suas crônicas. Aprendeu desde cedo o valor de uma memória construída, mantida e disseminada. E se, hoje, você digitar o nome dela na pesquisa do principal buscador do mundo, encontrará uma variedade de referências. De obras escritas e tocadas; no YouTube ou Spotify; em reportagens e em textos acadêmicos.
"Como começamos a estudar música em criança, quando éramos adolescentes já estávamos dando aula. Foi assim também que viramos professores, todos nós", relata ela. Aos 14 anos, Beth dava aulas de flauta doce e de piano para vizinhos. Um pouco mais tarde, migrou para a flauta transversa.
Mudança
O destino os trouxe para Brasília como fez com muitos: a mudança dos pais para assumir cargo na administração pública na nova capital do Brasil. Odette veio em 1974 e tornou-se professora da Universidade de Brasília (UnB). À época, Beth atuava como flautista no Rio de Janeiro. Na capital fluminense, integrou o grupo A Fina Flor do Samba, que tocava com a saudosa cantora Beth Carvalho. Só se mudou para a nova capital anos mais tarde, em 1979, com a segunda filha recém-nascida.
A opção pela flauta foi natural, e Beth não esconde a influência absoluta da mãe. "Cem por cento!", diverte-se. "Hoje, penso que deveria ter sido pianista, mas acabei escolhendo a flauta. Eu gostaria de tocar piano melhor", detalha. "Minha vida foi ficando muito atribulada, muito cheia: trabalho, estudo, casamento, criança. Tudo muito cedo, muito rápido, muito intenso. Então, não dava mais para estudar piano", atesta.
A vida lhe daria mais à frente, no entanto, a parceira que completou como perfeita sinfonia as apresentações: Francisca Aquino. Em dueto de flauta e piano, as duas tocaram obras que perpassam a música brasileira. O mais belo e clássico do choro passou por aquelas quatro mãos. "Minha super parceira. Nós trabalhamos muito tempo juntas, tocando como dupla de flauta e piano. Na Escola de Música também. Nós duas tivemos sempre a preocupação de fazer girar, dentro da escola, o que fazíamos fora. Isso proporcionava uma dinâmica muito boa. E agora ela me faz uma falta danada…", lembra-se, emocionada. Juntas, lançaram, em 1999, o CD A Inúbia do Cabocolinho.
Brasília, uma apoteose
No apartamento de Odette e Geraldo, na 311 Sul, foi gestado o Clube do Choro de Brasília. O pai, apesar de não ser músico, ajudou nas questões burocráticas para a instalação da sede do clube. Em solo candango, Beth fez parte do grupo Corda Solta, com Paulo André Tavares, Tony Botelho e o irmão Jaime; e do Instrumental e Tal, liderado por Renato Vasconcellos. Terminou o bacharelado em flauta também por aqui, na UnB, onde foi aluna da mãe, ao lado da primeira geração de flautistas da cidade.
"Brasília, para mim, foi uma vivência muito movimentada e muito alegre", recorda-se, mencionando o Concerto Cabeças, evento cultural na 311 Sul entre 1978 e 1982. Já no fim do ano de 1979, passou a integrar a recém-criada Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional, sob a batuta de Claudio Santoro. A primeira experiência como docente em Brasília ocorreu em paralelo, no Sesi de Taguatinga, e sem deixar de ministrar aulas particulares.
O convite para integrar o time de professores de flauta da Escola de Música de Brasília veio em 1985, quando Carlos Galvão assumiu a direção. À época, Beth não tinha a licenciatura, mas logo o Ministério da Educação e Cultura abriu trâmite para reconhecer os diplomas de bacharelado de músicos e outros profissionais para que alcançassem a habilitação em licenciatura. "Eu já me sentia professora", reforça.
E os filhos a lembram sempre, em casa, a razão que a despertava esse sentimento: "É uma mania de ficar ensinando, um jeito professoral que eu acho que eu sempre tive. Sou a mais velha, e eles dizem que sou mandona e autoritária. 'Lá vem a mamãe'. É engraçado, pois tenho mais esse lado do que minha própria mãe." Mas a intenção, ela destaca, é a de mostrar o caminho menos desgastante e guiar o aluno por uma trajetória árdua.
Beth explica que são necessários ao menos 14 anos de formação para se tornar músico. O paralelo mais próximo é com o esporte. "É uma atividade que demanda trabalho físico, intelectual e mental, e uma carga emocional muito grande."
A partir dessa reflexão, Beth traz uma análise crítica até mesmo dos anos de trabalho na Escola de Música de Brasília. Na avaliação dela, faltou e falta um projeto pedagógico que alce a instituição a um patamar muito mais elevado do que a fama trazida por poucos alunos reconhecidos devido a esforços individuais. Uma das mágoas da musicista e do grupo de flautistas que a acompanhou na docência é justamente o fato de o diploma recebido ao fim do curso na escola, hoje um centro profissionalizante, não ter a merecida relevância.
Nivaldo de Souza, Silvana Teixeira, Toninho Alves, Paulo Magno Borges, Sidnei Maia, Ariadne Paixão, Luciana Morato, Madelon Guimarães e Alessandra Laluce são alguns dos nomes que formaram o célebre grupo de ex-alunos de dona Odette a integrar o corpo docente da Escola de Música. "Meu período como professora na escola foi exitoso de uma parte, mas, sobretudo, porque eu tive a sorte de fazer parte desse grupo."
A união entre eles passava das provas coordenadas para todos os alunos de uma vez ao incentivo à criatividade no "Recreio dos flautistas". "Nós tínhamos uma afinidade de ideias, uma afinidade estética, uma afinidade musical e uma afinidade de expectativas em relação aos nossos alunos. É a parte que mais me emociona na Escola de Música: a chance de ter trabalhado em grupo com pessoas de cabeça assim. Além de tudo, a gente era muito alegre!"
As críticas se estendem porque ela tem uma visão ambiciosa do potencial da escola. A expansão para outras regiões administrativas, por exemplo, era um dos sonhos dos professores da sua geração. "Nós queríamos mais, mas o mais não havia", lamenta. Queixa-se também por não ser possível, nesse cenário, ter contribuído ainda mais para a formação de músicos na cidade. "Formamos tão poucos que os conhecemos pelo nome. Não devíamos saber o nome de todos, porque eles deveriam ser muitos."
Memória viva
Leitora assídua do Correio por décadas, Beth até assinou artigo nas páginas do jornal, em 2015. Contava sobre a importância da presença da alemã Gertrud Huber em Brasília, para um recital de cítara no Clube do Choro. Era oportunidade, destacou ela, para relembrar o citarista carioca Heitor Avena de Castro, de quem Beth é biógrafa. Avena foi um dos pioneiros de Brasília e morou na capital até a sua morte, em 1981. O resultado da extensa pesquisa foi publicado no livro Sábado à tarde — Avena de Castro, a cítara e o choro em Brasília, além de dois CDs gravados: Sábado à tarde e a cítara e Os choros de Avena de Castro.
Apesar da docência, a dedicação para a pesquisa tem relação também com outra característica da artista: a habilidade e a perseverança para reunir e documentar. Beth guardou todos os programas das apresentações da Sinfônica do Teatro Nacional até se aposentar, em 2010. Também tem um acervo robusto de imagens, sons e reportagens sobre o Concerto Cabeças. Acompanha as pérolas uma caixa de fitas K7 dos saraus de Avena de Castro na cidade.
"A partir de um determinado momento, eu passei a me importar muito com os registros. O registro da memória. E vejo que isso é uma lacuna aqui em Brasília. Não fossem os esforços individuais, não teríamos muita coisa", reclama Beth, ao citar o esforço da violinista Clinaura Macêdo para lembrar a história da Sinfônica de Brasília — escreveu Histórias de uma orquestra em cordel e Memorial da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Cláudio Santoro. Ativa nas discussões políticas da região onde mora, em São Sebastião, ela debate o tema também com as lideranças locais e conclama ao registro e à criação de "documentos para o futuro", como resume.
Raízes fortes
É esse projeto político e de vida que ainda mantém as raízes da professora firmes no solo do cerrado. Em 2014, aposentou-se também da Escola de Música. "Não está na pauta sair de Brasília. Por enquanto, ainda tenho bastante coisa a fazer por aqui. Eu me dediquei a escrever sobre um pedaço da história do choro na cidade", relata ela, com a primeira edição de Sábado à tarde em mãos e, na cabeça, o planejamento para lançar a segunda. Na última quinta-feira, esteve, orgulhosa, na cerimônia que declarou o choro patrimônio cultural do Brasil.
"É isso que eu penso do ser professor: é dar à outra pessoa, fazer com que ela acredite que ela pode também desenvolver o seu próprio trabalho. É pelo exemplo, pelo tanto de energia positiva que você põe no que você está fazendo", resume a mestre da música, hoje com 68 anos.
Apenas o caçula dos cinco filhos de Beth é instrumentista, Lourenço Vasconcellos. "Creio eu que já não somos a maioria. Aliás, eu tenho que fazer essa estatística para dizer com certeza", diz, aos risos. Hoje, ela divide a vida com a professora da Escola de Música de Brasília Luiza Volpini, bacharel em viola e licenciada pela UnB, com quem é casada, e é avó de oito netos.