17 de dezembro de 2020 | 05h00
A dramaturga inglesa Enid Bagnold (1889-1981) perguntou a uma feminista que conselho ela daria a uma dona de casa de 23 anos de idade que, tendo perdido quatro filhos, engravidasse outra vez de um marido alcoólatra e violento. “Eu insistiria para que ela interrompesse a gravidez”, respondeu a feminista. “Neste caso”, concluiu Bagnold, “você teria abortado Beethoven”.
O menino nasceu, de fato, em 17 de dezembro de 1770, em Bonn, em família musical. E apanhou muito do pai Johann, seu primeiro professor de música, para estudar piano: eram raros os dias em que não levava chicotadas ou ficava trancado no porão de castigo por não estudar direito piano, violino ou teoria musical. Ou então era acordado à meia-noite e obrigado a estudar durante a madrugada.
Como Beethoven mudou a relação entre o ouvinte e a música
Pois é, a vida era duríssima para o menino Ludwig Beethoven (o van, signo de nobreza, foi por ele acrescentado para frequentar com mais facilidade os círculos da elite vienense, farsa desmontada quando teve de lutar na justiça pela adoção do sobrinho).
Mesmo assim, ele fez história. Em pouco mais de três décadas vivendo em Viena – entre 1792 e 1827 –, o compositor transformou-se não só no mais celebrado e prestigiado músico da Europa, como alterou radicalmente o modo como se compõe e se ouve música. Adorou Napoleão (Sinfonia Eroica) e depois o odiou quando Bonaparte autocoroou-se imperador da França.
Permaneceu fiel aos ideais da Revolução Francesa. Mas, aos poucos, o ardor militante deu lugar a mensagens utópicas que abraçou ao incorporar os versos de Schiller ao movimento final de sua Nona Sinfonia – a mais celebrada obra orquestral de todos os tempos.
Beethoven nasceu há 250 anos. A cada efeméride, um novo músico surgia. No centenário, em 1870, por exemplo, Richard Wagner transformou o que seria uma deficiência, sua surdez, na razão de sua genialidade: “Um músico privado do sentido do ouvido! Pode-se imaginar um pintor cego? Mas conhecemos um espectador que ficou cego. Tirésias que, a partir de sua cegueira, percebe com seu olho interior o fundamento de toda aparência! (...) Beethoven se parece com ele, este músico que não se aborrece com os ruídos da vida e escuta apenas as harmonias de seu foro íntimo”. Palavras impactantes. O filósofo Peter Szendy considera que ali Wagner ungiu a interpretação da surdez de Beethoven como “divina”: Beethoven tem clarividência auditiva, ou melhor, “clariaudiência”.
Saltamos um século e, em 1970, no bicentenário, um emérito especialista em Beethoven, o pianista Friedrich Gulda (1930-2000), apareceu nu para tocar sonatas do compositor em recital comemorativo na majestosa Musikverein de Viena.
Naquele mesmo 1970, o compositor Mauricio Kagel (1931-2008) concebeu Ludwig van, um filme em branco e preto que denuncia a comercialização de Beethoven, transformado em produto de consumo, como os bonequinhos do “gênio furioso” feitos de marzipã, ao lado de pastéis Schiller. Kagel usou a palavra “musealização” para bradar contra a escuta banalizada de sua obra.
Ora, com ou sem efemérides, a música de Beethoven é sempre a mais tocada no mundo inteiro. Assim, Kagel propôs que sua música não seja tocada durante um ano inteiro, “porque só assim, depois de certo tempo, voltando às salas de concerto, os nervos acústicos conseguirão de novo reagir a ela”. Não era um ataque ao compositor, mas apenas uma defesa de Beethoven contra seus admiradores (parafraseando o célebre artigo de Adorno sobre Bach, em 1950, no bicentenário de sua morte).
Chegamos aos 250 anos. No segundo semestre de 2019, a regente Marin Alsop encerrava seu ciclo à frente da Osesp dando a largada ao projeto “Global Beethoven”, viabilizado pela Fundação Weill do Carnegie Hall de Nova York. Alsop regeria a Nona em nove países, com os corais entoando a Ode à Alegria em suas línguas. O projeto abortou logo após a largada.
Cruel ironia. A pandemia transformou em realidade o desejo de Kagel. Uma ou outra sinfonia do compositor foi tocada para meia dúzia de gatos pingados na Sala São Paulo e em outras espalhadas pelo Brasil.
Nossos “nervos acústicos” foram obrigados a descansar este ano, não só de Beethoven, mas de toda música ao vivo.
Naturalmente, muitas integrais foram lançadas aos borbotões das nove sinfonias, dos dezesseis quartetos e das 32 sonatas para piano. Sinceridade? Nenhuma gravação nova das sinfonias chegou perto dos monumentos assinados por maestros lendários como Herbert von Karajan (várias, a melhor elas de 1962, com a Filarmônica e Berlim) e Leonard Bernstein (com a Filarmônica de Nova York). Está bem, concordo que há centenas de outros registros maravilhosos, históricos e também mais recentes. Com exceções: um que me apaixona sempre que ouço é o de John Eliot Gardiner com sua Orquestra Revolucionária e Romântica, aliás também responsável por uma leitura impecável da Missa Solemnis.
No domínio dos quartetos de cordas, a concorrência também é feroz, e abundante. Aí entra o gosto pessoal por este ou aquele grupo. Para mim, dois são pontos fora da curva. E, não por coincidência, ambos captados em apresentações ao vivo, ou presenciais, como se diz em tempos pandêmicos. A primeira, dos anos 1980, é do excepcional Alban Berg Quartet – uma maratona de mais de oito horas (EMI, hoje disponível em streaming). A segunda é talvez o mais bem-sucedido tributo de um quarteto a Beethoven nesta efeméride: os jovens músicos franceses do Quarteto Ebene tocam juntos desde 1999. Vinte anos de convivência e integração absoluta. Mas acontece que a mágica em quartetos de cordas só acontece quando cada músico mantém sua individualidade. Disso resulta música e alta voltagem, que não deixa nenhum ouvido indiferente.
Beethoven around the world, foi gravado em salas em todos os continentes em 2019. São registros ao vivo, inclusive um da Sala São Paulo em setembro do ano passado. Comece com os três quartetos Razumovsky, opus 59, que são de 1806, um “annus mirabilis” para o compositor. Ele foi criticado mas respondeu:”Não é para vocês, mas para os tempos que virão”. Trinta anos depois, Robert Schumann escreveu a respeito destes quartetos: ”Beethoven encontra os seus motivos na rua, mas faz deles as palavras mais belas do mundo”. Daí em diante, ouça na ordem cronológica de composição, até os enigmáticos e revolucionários quartetos finais, incluindo a Grande Fuga. No mesmo 1806, ele também compôs o concerto no. 4, que muitos consideram (e eu me incluo entre eles) mais extraordinário que o quinto, apelidado “Imperador”. Preferencialmente em duas leituras apaixonantes: de Mitsuko Uchida e a
Concertgebouw com Sanderling, em 1994; e com Maria João Pires em 2014 com a Orquestra Sinfônica da Rádio Sueca regida por Daniel Harding.
E das sonatas, fique com a novíssima versão do pianista turco Fazil Say, de 50 anos. Ele teve de estudar várias, por simplesmente não tocava todas elas, para horror dos ortodoxos, que consideram 32 sonatas verdadeiro rito de passagem fundamental para todo pianista. Daí, quem sabe, suas interpretações personalíssimas e sempre envolventes – da Sonata ao Luar até a imponente opus 111, sonata tão monumental que levou Thomas Mann a dedicar um capítulo inteiro de seu romance “Doutor Fausto” a uma análise detida e comovente (ajudado por Theodor Adorno). Portanto, leia o capítulo 8 do romance e ouça a 111. É uma grande porta de entrada (ou chegada?) para o mundo sempre surpreendente de Beethoven.