12 de dezembro de 2020 | 05h00
A produção de Beatriz Milhazes é o foco de uma exposição promovida em conjunto pelo Masp e Itaú Cultural – a maior retrospectiva já dedicada à artista carioca, de 60 anos. A parceria entre as duas instituições vem na esteira da união de esforços de espaços da região em estabelecer projetos comuns que explorem o potencial da Avenida Paulista, “corredor cultural” que completa 129 anos exatamente neste mês de inauguração da mostra. Assim, o título da exposição – Beatriz Milhazes: Avenida Paulista – vem a calhar. A artista, aliás, deu o nome da via a uma pintura inédita, doada ao Masp, que estará em exibição no andar dedicado ao acervo do museu.
A doação é tudo menos modesta. Afinal, a produção de Beatriz, artista de projeção internacional, vem sendo cada vez mais valorizada no mercado. Em um leilão da Sotheby’s em 2012, por exemplo, a tela Meu Limão teve o maior preço já alcançado por um artista brasileiro vivo: US$ 2,1 milhões. Na SP-Arte de 2016, um comprador adquiriu uma pintura sua por R$ 16 milhões, vendida pela Dan Galeria. Suas obras estão também no acervo de importantes instituições americanas e europeias, como o Museum of Modern Art (MoMa), em Nova York, e o Museu Reina Sofia, em Madri.
Não se pode negar o apelo da obra da artista, cujas formas e cores “falam diretamente ao olhar”, segundo Ivo Mesquita, curador da mostra no Itaú Cultural, que ressalta, no entanto, a “grande inteligência” existente por trás de tal mérito. “Ela criou uma identidade própria com as cores, os enlaces das formas e os efeitos ópticos. Isso faz com que seu trabalho seja extremamente apreciado, mas, para além da popularidade, ela está num lugar que contém a densidade de uma profunda reflexão sobre a história da pintura”, avalia Mesquita.
Concepção. Programada desde 2018, a retrospectiva partiu de um convite simultâneo do Masp e do Itaú Cultural. Com a última instituição, a artista havia publicado um livro dedicado a suas colagens e gravuras e, disso, nasceu a ideia de uma exposição com tal recorte. A possibilidade de exibição em dois espaços tão próximos permitiu, contudo, que a mostra fosse concebida como a mais abrangente de sua trajetória, com 170 trabalhos de seus últimos 30 anos de carreira.
Beatriz afirma valorizar o diálogo com críticos e curadores. Assim, envolveu-se diretamente na produção da mostra. Durante o processo, as condições específicas da pandemia demandaram ajustes, mas a quarentena, segundo a artista, acabou tendo um lado positivo, com um maior tempo para a discussão e a revisão de detalhes do projeto. Beatriz veio do Rio de Janeiro para acompanhar o processo final de montagem e a inauguração da mostra. Em seu primeiro dia em São Paulo, conversou com o Estadão.
Diante das atuais circunstâncias, a artista considera que o público, mais do que nunca, precisa de acesso à arte e à cultura. Nesse sentido, admite as potencialidades de sua produção: “Hoje, eu tenho consciência que o meu trabalho tem este poder de comunicação, de atingir desde a área especializada até aqueles não necessariamente familiarizados com a arte. O que me deixa feliz é que ele traz essa energia que a arte pode ter – de fazer pensar diferente, de transformar as pessoas. Por isso, torço para que venham ver a mostra”, comenta. Por questões de logística, a exposição começa antes no Itaú Cultural, onde o público poderá conferir, prioritariamente, colagens e gravuras, enquanto no Masp, a partir do dia 18 de dezembro, estarão, sobretudo, suas pinturas e esculturas.
A artista, que despontou com a Geração 80 – grupo que se contrapôs à arte conceitual dos anos 1970 –, tem a pintura na base de sua produção, marcada pelo uso de cores vibrantes, ornamentos e sobreposição de formas. “A pintura é a raiz; é dela que vem a coisa mais bruta. Gosto de desafios, de introduzir novos elementos, fazer eles se desdobrarem. Mas, para mim, é muito importante respeitar o tempo desse processo. Eu paro de pintar durante alguns períodos, mas, com os outros meios, posso continuar a pensar e obter resultados que me estimulam e devolvem informações para a pintura”, explica Beatriz, ressaltando que, no diálogo entre os dois espaços expositivos, será possível perceber como ocorre essa dinâmica.
O curador Ivo Mesquita reforça que é precisamente essa a proposta da mostra no Itaú Cultural: “É a primeira vez que são exibidas juntas tantas colagens e gravuras. O objetivo é mostrar como essas duas práticas ganharam uma autonomia no trabalho da Beatriz, mas como mantêm uma relação de irmãs com a pintura e se retroalimentam”. Desse modo, quem visitar a mostra poderá perceber o que Mesquita descreve como a “imensa curiosidade” por trás do trabalho da artista, marcado, segundo ele, por um “pensamento extremamente coerente, desenhado e programado”.
Tais aspectos são desdobrados ao longo de três pisos do instituto. No mezanino, predominam as colagens, a partir das quais é possível notar, por exemplo, que seus trabalhos começam com uma “grade” de linhas verticais e horizontais, que formam o plano para a aplicação dos famosos ornamentos da artista. No 1º subsolo, ganham destaque as gravuras e formas circulares exploradas por ela. Motivos como a rosácea, constante no trabalho de Beatriz, compõem um efeito óptico cujas modulações poderão ser observadas pelo visitante. “Essa sala mostra como ela constrói a superfície em movimento”, acrescenta Mesquita.
O 2º subsolo, por sua vez, propõe ao público um percurso didático e ilustrativo, com obras e publicações que evidenciam a construção das composições de Beatriz e os desdobramentos de um suporte para o outro. Ali, um trabalho de 1989 aparece como exemplar das primeiras aplicações de uma técnica criada por ela, chamada “monotransfer” – em uma folha de plástico, desenha uma imagem de um lado e pinta o seu verso, colando, então, a superfície pintada sobre a tela. Quanto a essa técnica, Beatriz explica que surgiu de sua insatisfação com o resultado plástico de suas pinturas. A descoberta permitiu a preservação das cores no processo de transferência e também que ela não se dissociasse da ideia de colagem que permeia sua produção.
“Ver o trabalho da Beatriz ao vivo reafirma o quanto a gente pode aprender com o olhar. A pintura dela é uma aula de procedimentos técnicos e formais”, avalia Amanda Carneiro, curadora da mostra no Masp ao lado de Adriano Pedrosa. Qualidades como essa poderão ser visualizadas, por exemplo, em 12 pinturas de pequeno formato no mezanino. A seção que promete ser a mais impactante, no entanto, é a galeria do 2º subsolo, com 50 pinturas em grandes dimensões dispostas em cavaletes desenhados com base nos originais de Lina Bo Bardi (só que com têxtil e metal em vez de concreto e cristal). A ideia é promover a mesma atmosfera de “floresta” contida na exibição do acervo no segundo andar, mas com a diferença de que haverá obras fixadas nos dois lados dos cavaletes. Tal escolha permitirá que sejam observadas associações e contrastes entre diferentes períodos da produção de Beatriz.
Ainda no 2º subsolo, de cujo teto pende Gamboa, uma das esculturas presentes na mostra, foi instalado um piso de linóleo, reforçando a ligação da artista com a dança, linguagem que pauta a programação do Masp este ano. “Simbolicamente, é como se a dança fosse a estrutura sobre a qual o trabalho dela se assenta”, diz Amanda. A artista costuma colaborar com as produções da companhia de dança de Márcia Milhazes, sua irmã, que agora poderá dar uma “retribuição” – para o ano que vem, estão programadas apresentações suas no ambiente expositivo.
Itaú Cultural
No instituto, estarão expostas, predominantemente, gravuras e colagens de diferentes fases da carreira de Beatriz. Sob a curadoria de Ivo Mesquita, este núcleo da exposição reúne 79 obras, dentre as quais três são inéditas: ‘Havaí em Amarelo Vibrante’; ‘Cor de Pele’ e ‘Giro Horizontal’. Entre os outros destaques, a gravura ‘Dovetail’, de 2019, é a maior já produzida por ela, com dois metros de comprimento.
Masp
Pinturas e esculturas serão privilegiadas. Telas de grandes dimensões estarão em cavaletes desenhados com base nos originais de Lina Bo Bardi. Beatriz produziu a tela ‘Avenida Paulista’ especialmente para a instituição. Com a escultura ‘Marola’, essa obra será exibida à parte, na sala de exibição do acervo. A curadoria da mostra, que integra a programação dedicada à dança deste ano no museu, é de Adriano Pedrosa e Amanda Carneiro.
Paralelamente à mostra, o público poderá participar de encontros online dedicados à produção de Beatriz Milhazes. Com a mediação de educadores do Itaú Cultural, serão discutidas questões como o uso da cor, a escolha de materiais e a recorrência de formas e temas em sua obra. Gratuita, essa atividade ocorre em 13 e 20 de dezembro, das 11h às 12h, com vagas limitadas (inscrições no site itaucultural.org.br). Ao longo do mês de dezembro, o espaço promove ainda uma série de oficinas virtuais sobre práticas de desenho e pintura.
Segundo Eduardo Saron, diretor do instituto, esse tipo de experiência virtual ficará como uma das principais lições do período de pandemia. A ideia, segundo ele, é que os recursos online sejam sempre complementares às exposições, indo além da mera reprodução de conteúdo. Em tempos de distanciamento social, outra aposta, por exemplo, é oferecer aos visitantes o acompanhamento remoto de educadores por meio de videochamada.
Como complemento, o Masp, por sua vez, lança o catálogo da retrospectiva de Beatriz, que será vendido, a partir de janeiro, tanto na loja física quanto no site masploja.org.br (R$ 159).
ITAÚ CULTURAL. AV. PAULISTA, 149, METRÔ BRIGADEIRO, 2168-1777. VISITAS DE 3ª A DOM., MEDIANTE RESERVA EM SYMPLA.COM.BR/AGENDAMENTOIC
MASP. AV. PAULISTA, 1.578, METRÔ TRIANON-MASP, 3149-5959. INAUGURAÇÃO: 18/12. 13H/19H (3ª, 10H/20H; SÁB. E DOM., 10H/18H; FECHA 2ª). R$ 45 (3ª E 4ª, GRÁTIS). RESERVA EM MASP.ORG.BR/INGRESSOS. ATÉ 30/5/2021.