A lembrança mais antiga da minha vida foi aos 4 anos, em 1983: o dia em que minha mãe entrou no meu quarto com minha irmã recém-nascida. A visão era incrível: cabelos loiros, chapeuzinho, casaco vermelho e longas botas pretas — foi minha primeira Barbie, que minha mãe trouxe de presente para que eu não ficasse chateada com a chegada da irmãzinha, de cujas feições naquela hora, confesso, não tenho a mais vaga lembrança.
Barbie havia chegado ao Brasil em 1982, franqueada pela marca Estrela, mas já era objeto de desejo das meninas americanas há mais de duas décadas: agora, ela completa 60 anos, e eu fui só mais uma entre milhões de meninas de todo o planeta que tiveram suas infâncias marcadas pela boneca loira, de olhos claros e corpo impossível de reproduzir na vida real.
Os números mostram que a sexagenária tem fôlego. A cada minuto, mais de 100 Barbies são vendidas em 150 países. O canal da boneca no YouTube tem 5 milhões de inscritos. Quem o acessa já consumiu 151 milhões de minutos de conteúdo, fora os impressionantes 18 bilhões de minutos de conteúdo gerados pelos próprios usuários.
Breve, num cinema
No ano que vem, o icônico personagem chega aos cinemas em sua primeira versão live action. Margot Robbie, atriz de “Esquadrão Suicida” e “Eu, Tônia”, vai encarnar a protagonista. Nem tudo, porém, é glamour. Para muita gente, a rica loura de cintura fina e que jamais envelhece tem o filme queimado para sempre. Barbie, afinal, cristalizou um ideal de beleza. E o mundo foi exigindo mais representatividade e brigando contra a imposição de padrões.
Justiça seja feita, ela foi uma revolução quando surgiu. Na época, as bonecas eram apenas reproduções de bebês. Com ela, as meninas de 60 anos atrás passaram a brincar de “adultas” — com profissões, carros, casas, um guarda-roupa repleto de looks — e, não mais, necessariamente, de mães.
Na história oficial, Ruth Handler, fundadora da fabricante de brinquedos Mattel junto com o marido, percebeu que a filha Barbara (ou Barbie) curtia trocar as roupas de suas bonecas de papel. Viu ali uma oportunidade de criar “life in plastic/it’s fantastic” (“vida de plástico, isso é fantástico”, em tradução livre), como cantou a banda Acqua, muitos anos depois.
Outra versão conta que a inspiração veio de Bild Lilli, boneca alemã criada em 1955 e que Ruth teria comprado em Hamburgo. O fato é que, no dia 9 de março de 1959, Barbie surgiu numa feira de brinquedos em Nova York, de saltos altos, maiô listrado e corpo de musa de Hollywood. A partir daí, o céu, ou melhor, o espaço foi o limite. A boneca, inicialmente vendida por US$ 3, teve mais de 200 carreiras — inclusive astronauta, em 1965, chegando à Lua antes de Neil Armstrong.
— De objeto inanimado, ela passou a ter uma dimensão humana e tornou-se um conceito, uma marca — explica Fernanda Roveri, pesquisadora e autora do livro “Barbie na educação de meninas: do rosa ao choque”, que ganha nova edição neste ano.
Ao longo dos anos, a “boneca-mulher” foi vestida por estilistas famosos, viveu em mansões, ganhou capa de revistas e edições especiais retratando personalidades do cinema, da moda e das artes. Também contabilizou “amigas” de cabelos cacheados, negras, morenas e com filhos.
Mas o mundo mudou. E, com ele, mães e pais, que passaram a demandar bonecas mais condizentes com a realidade que viam em casa. A boneca se ligou e vem tentando se atualizar. Ao mesmo tempo, levou uma nova saraivada de críticas, de quem vê as tentativas de modernização como mera maquiagem da mesma doutrinação de como deve ser uma mulher.
No ano passado, Jill Lepore, historiadora americana e professora em Harvard, escreveu um artigo relembrando uma disputa judicial. A pendenga envolveu a Mattel, fabricante da Barbie, e a MGA Entertainment, criadora da Bratz, boneca mais descolada que caiu nas graças de meninas (e meninos) não brancas e ameaçou a hegemonia da loura nos anos 2000. Para ela, mesmo que as bonecas sejam aparentemente empoderadas, o controle sobre o tipo, corpo e padrão de mulher aceitável permanece.
De musa a meme
Professora no Art Center College Design em Pasadena, na Califórnia, Elizabeth Chin é especialista em comportamento do consumidor e também não acredita no poder de bonecas “empoderadoras”.
“O problema aqui não é realmente a Barbie, mas a cultura que a produz”, ela escreveu. As crianças seriam influenciadas desde muito cedo por uma cultura em que aparências importam — e muito. Para Elizabeth, dar às meninas bonecas com corpos mais reais mas manter a pressão social por magreza, padrão de beleza e adequação é inútil.
No Brasil dividido nas posições políticas, mas unido no amor aos memes, a boneca virou piada, discursando contra demandas de minorias em contraste com sua vida de luxo. Depois, apareceu como fantasia de carnaval, loura, de cor-de-rosa, carregando plaquinhas com frases como “Se eu tenho privilégios foi porque mereci!”
Apesar das críticas, a boneca chega aos 60 como sucesso de vendas. E aproveita a efeméride para lançar mais modelos. Entre as Barbies Fashionistas — lançadas em 2016 com bonecas negras, curvilíneas, de cabelos crespos, cacheados, coloridos — haverá agora uma cadeirante e outra com uma prótese na perna. Um novo posicionamento que veio há três anos com a sutil mudança de slogan: de “tudo o que você quer ser” para “você pode ser o que quiser”. Se o que você quiser couber no catálogo, claro.
Para Jaciana Melquíades, que criou a marca de bonecas de pano negras Era Uma Vez o Mundo, a falta de representatividade da boneca loira, magra e rica não impede que ela ainda seja um sucesso.
— Ela já conseguiu se firmar no imaginário das pessoas como a boneca do desejo. Todo mundo quer se ver na Barbie. Então, cabe à indústria se adaptar às realidades, às diversas possibilidades de identidade e criar essa identificação com as pessoas — diz.
Uma pequena parte dos números imensos que circundam o universo Barbie aparece na casa da advogada gaúcha Bianca Condini, 32 anos, mãe de Ágata, 5. A menina ganhou suas duas primeiras Barbies com 2 anos e de lá para cá já amealha 20 exemplares, entre loiras, morenas, fadas, jogadoras de futebol.
— Ela não dava muita importância para a boneca. Mas, de uns dois anos para cá, começou a gostar muito mais, acho que influenciada por desenhos na internet — conta a mãe, que também tinha Barbies na infância.
Outros modos de ser
Seguindo a proposta de mostrar mais diversidade, a Mattel engorda sua lista de homenageadas do projeto Shero (jogo de palavras com “She” (ela) e “Hero” (herói/heroína). São Barbies que representam personalidades ao redor do mundo. Foram lançadas 20 bonecas, incluindo ativistas, jornalistas, atletas e, entre elas, uma brasileira: Maya Gabeira, a maior surfista de ondas gigantes do Brasil, que entrou para o “Guinness Book” em 2018 após surfar uma onda de 20,7 metros.
— Isso mostra às meninas que elas podem e devem ser realmente quem quiserem ser — defende Maya.
Para a pesquisadora e doutora em Educação Fernanda Roveri, autora da tese de mestrado que virou livro “Barbie na educação de meninas: do rosa ao choque”, a boneca “sugere às meninas modos de ser e de se comportar para adquirir visibilidade e lugar social”. Mas, ela pondera:
— Vale lembrar que a boneca ensina apenas um tipo de feminilidade, quando existem muitos modos de ser mulher.
Para fazer esta reportagem, comprei minha primeira Barbie depois de quase 30 anos. Escolhi a jogadora de futebol, da linha Profissões, com pele e olhos muito mais escuros do que as Barbies do “meu tempo”, cabelos também escuros, porém longos e lisos. Peitos menores, quadril mais proporcional, parece. Dei para o meu filho Rafael, 5 anos, cuja pele é da exata cor da boneca, e ela está entrando na brincadeira com os heróis e robôs — com uma certa truculência que me deixa meio desconfortável. E ainda causa estranhamento. Mas não dá mais para esperar outros 60 anos.