Em meados de março, quando a pandemia do novo coronavírus mostrou suas garras, a atriz e diretora Bárbara Paz foi obrigada a se recolher num espaço delimitado. “Calhou de eu estar, naquele momento da vida, sozinha. Fiquei assustada”, admite. “Estava sempre indo a algum lugar, fazendo as malas constantemente. De uma hora para a outra, não havia mais essa possibilidade, e eu não tive como fugir de mim”, conta ela, que passou exatos 50 dias, trancada e sozinha, em seu apartamento em São Paulo, até ter coragem de pegar o carro e dirigir 18 horas ao encontro de um refúgio, na Bahia, onde permanece até hoje. O tema não é novo na sua trajetória. Depois de assinar a direção e apresentar, no ano passado, o longa que mostra os últimos dias do marido, o cineasta Hector Babenco (1946-2016), ela revelou ter escrito o roteiro de um filme cujo assunto é a solidão feminina.
Para ter um alcance maior, ela convidou o fotógrafo Thiago Santos para registrar pessoas em situação de rua. “A ideia é criar um mosaico com diversas vozes”, diz. “Quero misturar artistas com médicos da linha de frente e moradores de rua. No futuro, pretendo fazer um documentário com este material.” Em comum entre as narrativas, o “inimigo invisível”. “Todos estão pensando nele e tentando manter a sanidade”, avalia Bárbara.
Intensa, ela tem sido inundada por reflexões diante de uma realidade desconhecida. No início da pandemia, transformou sentimentos à flor da pele em registros artísticos, criando um diário visual. “Retornei ao útero”, lembra. “Também me vieram perguntas como ‘onde você estava quando o mundo parou?’”, conta. “Em março e abril, o mundo viveu a mesma suspensão”, diz. “Ao mesmo tempo, diferentemente de outras pandemias, há a internet, conseguimos ficar juntos. É um momento forte da História da Humanidade”, observa.
Se o inimigo é um só, o coronavírus, os depoimentos em preto e branco provam que a maneira de expressar a solidão (ou a conexão) pode ser múltipla. “Estou aqui, no meu apartamento, fechado há 50 dias. Respeitando sobretudo a minha vida e, consequentemente, a vida dos outros. Acredito, firmemente, que todos aqueles que restarem saberão valorizar ainda mais a vida”, são algumas das palavras de Ary Fontoura. “Fiz uma síntese”, diz o ator, que segue em isolamento.
A atriz Martha Nowill, por sua vez, escolheu declamar o poema “Os três mal-amados”, de João Cabral de Melo Neto. “A gente vê o amor como redenção. Porém, neste poema, o amor é quase um vilão, uma força devastadora que toma conta de tudo”, analisa. “Este sentimento parece um vírus, vem de forma pandêmica. A vida é muito essa falta de controle. Quando poderíamos imaginar que estaríamos atravessando uma pandemia?”, compara. Já o ator Johnny Massaro recita a letra da canção “Deja vu frenesi”, de Letrux, enquanto Aparecido Assis, em situação de rua, reza, emocionado, “Pai Nosso” e “Ave Maria”, e Willem Dafoe — protagonista do último filme de Babenco, “Meu amigo hindu” — faz um desconcertante minuto de silêncio.
Cantora e ativista, Preta Ferreira diz nunca ter se sentido só. “Usei o espaço para falar sobre pluralidade, de todos que são minorizados, dos corpos pretos e indígenas”, explica Preta, que canta a música “Minha carne”, de sua autoria.
Bárbara faz questão de levantar a bandeira da cultura. “A arte está embalando a Humanidade”, analisa. “O cinema, a poesia, as séries e a música estão salvando as pessoas”, afirma a diretora, lamentando a situação do setor no Brasil de Bolsonaro. “É uma tristeza ver como tem sido ignorado. Antes da pandemia, os artistas estavam sendo apedrejados. Um país sem cultura é um país sem alma”, avalia. “Existem muitas famílias do segmento cultural passando necessidade. Participo de vários grupos de ajuda. A Lei Aldir Blanc ainda é pouco, o governo deveria fazer muito mais”, emenda.
Mesmo identificando — e removendo — as pedras no caminho, ela tem visão otimista. “Depois do caos, vem o renascimento”, acredita. “Hoje, as pessoas estão olhando mais para a Lua, sentindo o vento soprar de forma diferente, enxergando o céu. Tem uma revolução em curso.”