Raquel Virgínia queria ser cantora de axé. Assucena Assucena começou a cantar no coral do cursinho de inglês. Rafael Acerbi tocava em bandas de rock. Os três marcaram a opção “História” no vestibular da USP, quando chegou a hora de escolher uma faculdade. Estudaram juntos, foram jubilados juntos e criaram juntos uma das bandas de maior projeção no circuito musical alternativo brasileiro: As Bahias e a Cozinha Mineira. Nem mesmo a quarentena imposta pela pandemia do novo coronavírus nos últimos meses impediu o trio de produzir coletivamente. Embora cada integrante more num endereço diferente de São Paulo, o grupo acaba de lançar um EP de cinco músicas, produzido remotamente ao longo de 15 dias.
O single “Éramos chuva” traduz bem esse espírito. No clipe, vê-se nomes como Taís Araujo, Lea T. e Thelma Assis mostrando seus cotidianos enquanto leem livros, rodopiam pela sala ou fazem ioga. Numa das cenas mais simbólicas, a escritora Djamila Ribeiro sente a chuva cair sobre o seu rosto através da janela de casa. Tudo gravado por cada participante.Mais sintonizada com o rock até então, a banda chega aos ouvidos do público numa roupagem pop, costurada com guitarra, violão, teclado e samples de Rafael. Ele assina a produção e fez todos os arranjos sozinho, no estúdio montado em sua casa. “Esse trabalho acessa um lugar inédito para nós, que é o da reinvenção”, resume o músico, enquanto Raquel ilustra como foram os bastidores: “Cheguei a ensaiar dentro do banheiro por causa da acústica”.
Sucesso em festivais no Brasil inteiro e fazendo shows que sacolejam casas como o Circo Voador, o trio formado por duas mulheres trans nos vocais e um homem cis na guitarra terminou o ano que passou com uma indicação ao Grammy Latino e se prepara para ganhar um público cada vez maior. Além do EP, o quarto disco de estúdio, “Só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas”, já está gravado, mas teve o lançamento adiado por tempo indeterminado em função da pandemia.
Planejado na forma de um álbum visual, o disco mergulha em águas mais profundas do universo pop e leva a assinatura estética de Gringo Cardia, acostumado a trabalhar com nomes como Ivete Sangalo e Maria Bethânia. Os clipes seriam gravados em março, mas foram suspensos diante da impossibilidade de se reunir uma equipe de filmagem neste período. “Vamos fazer uma coisa visualmente transgressora. Em cada música, as Bahias vão aparecer com um visual específico, mostrando como há um ecletismo ali”, adianta Gringo.
Este será o segundo trabalho do grupo pela gravadora Universal, e a produção musical ficou a cargo de Daniel Ganjaman, outro nome quente do cenário artístico. Já o título traz uma citação ao poema “Todas as cartas de amor são ridículas”, de Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa. “É uma forma de nos posicionarmos frente ao que chamamos de romantismo. Sempre apresentamos uma diversidade temática, que vai dos problemas sociais do Brasil a um cotidiano banal. No meio disso, existe esse romantismo, algo muito latino e brasileiro, que nos faz querer conversar mais com as massas. As músicas que havíamos lançado dentro desse perfil em trabalhos anteriores já são as que as pessoas mais cantam nos shows”, descreve Assucena, prometendo, ainda, faixas dançantes. “O amor também dança. Dançar junto é uma delícia...”
Fã de Ivete, a paulistana sonhava, na adolescência, em fazer carreira em cima do trio elétrico. Pediu tanto à mãe, que conseguiu se mudar para a capital baiana aos 17 anos. O projeto, porém, não aconteceu como fora sonhado, mas a vivência por lá serviu para que os laços com a sua negritude fossem estreitados e lhe rendessem uma baianidade suficiente para justificar o nome da banda. Ela e Assucena, que é nascida em Vitória da Conquista, ganharam o apelido de “Bahia” na faculdade.
A trinca fechada com a cozinha mineira de Rafael já rendeu seus “quebra-paus”, como admitem os três sem qualquer ressentimento. “A nossa união acaba produzindo contradições o tempo inteiro. Antes, quando não tínhamos muita experiência nesse mundo artístico, era difícil de lidar. Mas, hoje em dia, conseguimos ser mais francos e resolver as coisas na hora”, afirma o guitarrista.