Formado por quatro modelos Volkswagen 1600, o forte elenco do Botafogo estava invicto, depois de conquistar o primeiro e o segundo turno da competição. Mas o Fluminense entraria em campo disposto a estragar a festa do rival. No jogo anterior, contra o Flamengo, o tricolor exibira um carro com para-choque feito de viga de navio. O reforço permitiu ao automóvel destruir quase todos os veículos rubro-negros, garantindo a vitória do time das Laranjeiras. Para não ser vítima de massacre parecido, o Botafogo instalou o mesmo material em todos os seus carros.
Quando o árbitro deu início ao confronto, às 16h daquele domingo, 17 de novembro, havia tensão no ar. O Fluminense chegou apresentando sua estratégia de destruir os carros adversários. Logo, o Botafogo perdeu dois veículos titulares e ficou sem reservas. Mesmo assim, impôs seu jogo, vencendo a partida por 3 a 1, com dois gols de José Luís e um do artilheiro da competição, Ronaldo César Coelho. O título do Campeonato Carioca de Autobol levou até certa alegria aos torcedores do alvinegro, que passaria a década de 1970 sem nenhum troféu no futebol convencional.
O autobol foi uma pequena febre no Rio. No mundo atual, o esporte seria certamente criticado devido aos riscos envolvidos e ao desperdício, já que nenhum carro resistia a mais do que quatro partidas antes de ir parar no ferro-velho. Porém, há mais de 40 anos, quando a sociedade vivia como sem muita noção de seu impacto no planeta, ninguém parecia se importar com a destruição de automóveis às custas de um jogo que não raramente causava capotagens, incêndios e, claro, hospitalizações.
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O "esporte" fora criado pelos britânicos, após Segunda Guerra Mundial. Mas não tinha prosperado no Reino Unido porque havia muitas regras. Cada carro tinha sua pista, de onde não podia sair. A bola corria no meio, e o motoristas tinha que mantê-la em sua faixa do campo. Se a bola passasse para a pista do lado, era a vez de o veículo rival tentar dominá-la para atacar. Já no Brasil, onde os veículos circulavam livremente pelo campo, e os motoristas podiam se chocar com os adversários, o esporte caiu nas graças da elite endinheirada, com direito a cobertura nos jornais e na TV. Até mesmo emissoras estrangeiras, como a britânica BBC e a americana CBS vieram ao Rio para filmar e produzir reportagens sobre a modalidade.
A idéia chegou ao país nos últimos anos da década de 1960, quando a fábrica de bolas de futebol Drible fez uma bola de couro de bufalo de 1,20m de diâmetro e 12kg de peso, para comemorar um jogo da seleção brasileira. Depois, a invenção ficaria guardada na fábrica em São Paulo até 1970, quando um grupo de Taubaté a pediu emprestada para um esporte singuiar: futebol de cavalos. Teria sido um "sucesso" — o estádio local estava cheio —, mas a imensa bola assustava muito os animais, e um dos jogadores saiu da disputa com uma das patas quebradas.
Sem função, a bola gigante acabou sendo trazida ao Rio pelo produtor José Maria Adami, que procurou o médico Mário Tourinho, seu conhecido. O traumatologista vinha conversando animadamente com amigos sobre a possibilidade de criar um futebol de automóveis. A idéia brotara em sua cabeça quando ele dirigia na Avenida Atlântica, em Copacabana, e uma bola escapda de uma "pelada" na praia veio na direção de seu carro. Para espanto geral, Tourinho arremeteu o veículo de encontro à bola, que voltou diretamente para as mãos dos rapazes na areia. Orgulhoso com seu "chute" perfeito, o médico decidiu elevar o nível da brincadeira.
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A primeira exibição ocorreu no intervalo de uma partida do Campeonato Carioca de 1970, no campo da Associação Atlética Portuguesa, na Ilha do Governador, onde Tourinho deu voltas no gramado dominando a bola gigante à frente de seu velho Hillman. Os jornais do dia seguinte deram mais destaque à apresentação do que ao monótono jogo entre Vasco e Portuguesa. Animado, o médico comprou 11 carros velhos e chamou os amigos, que atuaram em pelo menos quatro partidas naquele ano. Em 1971, outras foram realizadas, e o sucesso foi tal que a Prefeitura de Vitória convidou os times para uma exibição na cidade, capital do Espírito Santo.
Os pilotos aceitaram o convite, mas não levaram seus automóveis. Na hora do jogo, com o estádio lotado e a torcida inquieta, o prefeito não viu outra solução para evitar o cancelamento a não ser emprestar carros oficiais do município para a disputa. Os prejuízos para os cofres públicos foram grandes e, com o derrame de dinheiro dos jogos anteriores, bancados pelos próprios participantes, a situação levou à paralisação das atividades até o ano seguinte.
Apenas partidas esporádicas foram disputadas até que, em 1973, os entusiastas do esporte no Rio formaram uma federação que contou com a adesão de América, Flamengo, Vasco, Fluminense e Botafogo. Os jogos começaram no campo do Colégio Santo Inácio, em Botafogo, mas os padres da tradicional escola ficaram impressionados com a violência envolvida nos confrontos, que por conta disso foram levados para o campo do Horto Florestal, perto do Jardim Botânico. A cada partida realizada, o público aumentava. Algumas rendas de bilheteria superavam até as vendas de ingressos para partidas do campeonato de futebol jogado com os pés.
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Em 1974, a superioridade de Fluminense e Botafogo era explicada principalmente pela potência de seus carros e as alterações na carroceria. Veículos de pouca força — Renaults velhos, Gordinis e Dauphines —, usados inicialmente nas partidas, receberam reforços na lataria ou foram substituídos por outros mais robustos. Na final do primeiro turno, o alvinegro surpreendeu ao entrar em campo com quatro Volkswagen 1600 de quatro portas — modelo que, anos mais tarde, receberia o apelido de Zé do Caixão. O Fluminense, com quatro Gordinis, perdeu de goleada, mas aprendeu a lição e também trocou sua frota.
As alterações nos carros eram feitas quase sempre numa oficina no Grajaú que, de tão procurada, passou a atender apenas aos adeptos do autobol. O para-choques era reforçado com suportes de ferro. As portas eram soldadas, e os vidros, retirados. Para evitar incêndios, toda a fiação elétrica dispensável era removida. Ficavam apenas os fios da bateria e da bobina. Mesmo assim, alguns carros foram destruídos pelo fogo, tamanha era a violência de alguns choques ou capotagens. Quando o automóvel ficava imprestável, o dono da tal oficina no Grajaú vendia a carroceria para um ferro-velho e ficava com o motor.
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O autobol tinha suas regras. Não era permitido usar a marcha à ré na disputa de bola e nem bater num carro que estivesse sem a bola. De resto, tudo liberado. Uma das artimanhas era se aproveitar da indecisão e do medo do adversário para dominá-lo em campo. Um piloto, dono de labarotários, tinha a técnica de quebrar a suspensão de outros carros e dar trombadas nas portas para atemorizar os adversários. Já um produtor de televisão era perito na condução da bola, driblando adversários com desvios rápidos. E um corretor da bolsa de valores era o motorista mais temido, por gostar de provocar acidentes que, muitas vezes, deixavam feridos. Muitos adeptos, aliás, desistiam das disputas devido aos seus riscos.
Em 1976, a falta de campos e de patrocinadores interrompeu as competições. Além disso, a crise do petróleo que afetou o mundo em meados daquela década chegou com força no Brasil, levando a ditadura militar a proibir provas de automobilismo no país. Aquilo representou o fim do autobol.