Foi no ponto do bonde, na Praia de Botafogo, em um Rio cantado em versos e prosa, que Léa Garcia teve, em 1950, um encontro que mudaria o curso da vida. “Estava indo buscar minha avó para levá-la ao cinema quando uma pessoa veio ao meu encontro e perguntou: ‘Você não gostaria de fazer teatro?’”, lembra. A pessoa em questão era o criador do Teatro Experimental do Negro (TEN), o escritor, artista plástico e ativista pan-africanista, Abdias do Nascimento (1914-2011). A ideia para a adolescente que sonhava ser escritora, à primeira vista, pareceu distante. Porém, nas veias da menina, filha de uma modista de mão cheia e de um bombeiro hidráulico, já corria sangue vanguardista. “Lia escondido Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre.”
A atriz Léa Garcia: casaco e saia Sônia Pinto, broche e bracelete Tiffany&Co e broche de flor acervo pessoal — Foto: Adriano Damas/edição de moda: Larissa Lucchese
Não demorou para Léa aceitar o convite. O teatro brasileiro — e, posteriormente, o cinema e a TV — ganharam, então, uma de suas maiores atrizes, e o Brasil, uma ativista incansável, que fez da vida e da arte uma bandeira contra o racismo e o machismo estruturais. Uma pequena prova de sua vitalidade: aos 89 anos, dois dias depois desta entrevista, a artista foi para São Paulo receber o prêmio Milú Villela do Instituto Itaú Cultural, destinado a personalidades da cultura, e iniciar a temporada paulista da peça “A vida não é justa”, baseada no livro homônimo da juíza Andréa Pachá.
Casaco e saia Sônia Pinto, broche e bracelete Tiffany&Co e broche de flor acervo pessoal — Foto: Adriano Damas
Em duas hora de bate-papo — diante da piscina do Copacabana Palace —, Léa relatou passagens da trajetória pioneira, marcada pela tomada de consciência política e racial ainda muito jovem. Opinou sobre todos os assuntos, deixando evidente a fome por liberdade que a conduz: tornou-se mãe aos 17 anos, estreou no palco aos 19, foi indicada ao prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes de 1959 (pela atuação no filme “Orfeu Negro”), nunca quis se casar de papel passado, fez aborto, fumou maconha.
Neste domingo, Dia da Consciência Negra, a atriz reforça o desejo de que a tataraneta, de 7 meses, colha os frutos de sua luta. “Espero que ela viva em um Brasil justo e igualitário.”
No teatro Sesc Santana, em SP, em que está com a peça 'A vida não é justa': vestido Fernanda Yamamoto — Foto: Adriano Damas
Depois de sete meses em cartaz no Rio, a “A vida não é justa” chegou a São Paulo. Qual é a repercussão?
Faço três personagens. Uma delas é a Molhadinha25, que trai virtualmente o marido. Em um primeiro momento, achava que não devia interpretá-la devido à minha idade. Depois, me dei conta de que era preconceito meu. As pessoas amam a Molhadinha (risos).
Da onde vem tanta energia?
Sempre gostei de nadar e fui muito praiana. Não faço mal a ninguém nem guardo raiva. Tenho uma prótese na perna esquerda e já mancava um pouco. Em 2018, tive chikungunya e piorou. É só o que me pega. Meus exames estão perfeitos.
O que representa a data de hoje para a senhora?
É de extrema importância porque foi quando tornamos Zumbi o nosso herói. Ele lutou contra a escravidão e quis, naquele tempo, fazer uma pequena África em Quilombo dos Palmares. Não foi possível, mas deixou esse legado de independência, igualdade e preservação da cultura e ancestralidade negra. Por isso, tornou-se o nosso herói, e não a princesa Isabel.
Olhando em retrospecto, como avalia a luta contra a discriminação racial?
De quando comecei para cá, houve um pequeno avanço dentro de empresas de TV, cinema e teatro, principalmente depois da morte de George Floyd (em 2020). Atitudes foram tomadas nos Estados Unidos e no mundo em apoio à luta antirracista e começamos a perceber por aqui a presença de negros na propaganda. As jornalistas pretas passaram a ter evidência, assim como os atores, que ganharam papéis menos estereotipados.
Como foi o seu encontro com Abdias do Nascimento?
Estava no ponto do bonde na Praia de Botafogo, ia levar minha avó ao cinema, quando veio uma pessoa ao meu encontro e perguntou: “Você não gostaria de fazer teatro?”. O autor dessa abordagem foi o Abdias. Eu havia conhecido a Ruth (de Souza, atriz) na casa da minha professora de inglês. Ela era amiga dele e comentou sobre o encontro com duas meninas que pareciam americanas, eu e uma amiga. Ao me ver, deduziu que eu era uma delas. Trocamos telefone. Acabei indo ao teatro com ele e começamos a namorar. Ficamos juntos por quatro anos e tivemos dois filhos. Não vi necessidade de nos casarmos. Minha carreira começou no TEN (Teatro Experimental do Negro) e, depois, segui sozinha. Por meio dos projetos de Abdias, encontrei muitas respostas.
Quais, por exemplo?
Na infância, as meninas do meu bairro, Laranjeiras, me convidavam para os aniversários. Ao completar 12 anos, os convites foram diminuindo. Aos 13, fui afastada por ser negra.
De que maneira a carreira da senhora foi impactada pelo racismo, em uma época em que a sociedade pouco discutia essa questão?
Costumo dizer que os deuses me abraçaram, as coisas sempre chegaram para mim sem eu correr atrás. Mas vivi experiências em que precisei ter um grande altruísmo para continuar. Conversava sobre isso com a Ruth (de Souza). Passamos por muitas exigências. Tínhamos que chegar com o texto na ponta da língua, estar sempre cheirosas e elegantes. As outras podiam errar. Nós, não. Podíamos interpretar personagens subservientes, mas precisávamos mostrar que nós não éramos. Naquela época, o racismo era camuflado na TV. Por causa da minha formação, tinha credibilidade. Refiz o texto de algumas cenas de novelas.
Como assim?
Em “Marina” (1980), por exemplo. Eu interpretava uma professora de História. Em um determinado capítulo, ela falava para a filha sobre o Quilombo dos Palmares, mas o texto chegou com visão eurocêntrica. Disse ao diretor que não poderia gravar aquilo. O diálogo foi refeito por mim e por pesquisadores do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN). Falei duas páginas sem cortes. No final, fui aplaudida por todos do estúdio.
Como lida com o preconceito do dia a dia?
Acontece muito. Quando morava em Ipanema, ia ao banco e, sem querer, esbarrava em alguém, a pessoa via a mão preta e ficava logo com medo. No restaurante, os clientes veem as atrizes negras chegarem, e o preconceito velado aparece no olhar, naquela cutucadinha. Mas não passa despercebido, nós estamos vendo. Não fico mais triste, hoje sinto pena.
O que é ser antirracista hoje?
É apoiar as propostas democráticas para um mundo melhor e igualitário. Tendo isso como base, chegaremos ao estágio que todos queremos, a universalidade. Também é necessário aceitar o sistema de cotas, imprescindível.
Quem a senhora considera porta-voz da nova geração?
Gosto muito da Taís (Araujo, atriz) e de suas colocações. Também temos a Luana Xavier, neta da minha querida amiga Chica Xavier. A Zezé Motta, anterior a elas, sempre foi uma mulher de fala democrática, voltada para o social e livre.
Como foi o encontro com Viola Davis na casa de Taís e Lázaro?
Não queira saber como fiquei emocionada. Além de ser uma excelente atriz, Viola é muito consciente, como mulher negra, da nossa carga. É uma das poucas a falar sobre isso de forma aberta.
A senhora viveu uma série de transformações sociais ao longo das décadas. Como encara questões levantadas pelo feminismo, como o direito ao aborto?
Fiz dois abortos sem culpa alguma. O corpo é meu e ninguém tem nada a ver com isso. Continuo a pensar assim até hoje. É como a maconha, que deveria ser liberada.
A senhora já fumou maconha?
Nos anos 1970, tinha filhos adolescentes. Experimentei para ver o que eles sentiam. Foi a minha segunda vez. A primeira foi na casa de uma atriz. Ela me perguntou: “Quer dar um tapinha?”. Respondi: “Olha, eu nunca comi, mas aceito”. Pensei que fosse uma comida (risos).
E os amores?
Além dos dois casamentos, tive namorados. Porém, sofri uma decepção amorosa muito grande há 37 anos. Desde então, não tive mais ninguém. Não posso conceber sexo sem ser com alguém que ame. Considero isso uma falha, não gostaria de ser assim. Minha energia foi então canalizada para o trabalho, a casa e a família.
A atriz Léa Garcia — Foto: Adriano Damas
A senhora tem três filhos, três netos, dois bisnetos e uma tataraneta. Como descreve tanta emoção?
Fui mãe aos 17 anos. Ao fazer um curativo no umbigo do meu primeiro filho, quase caí desmaiada (risos). Quando me tornei avó, senti uma continuidade da minha vida, foi algo muito forte. Há sete meses, nasceu minha tataraneta. É uma vitória, percebo que estou sendo resistente.
O que espera do Brasil que a sua tataraneta vai viver?
Torço por um país justo e igualitário, que respeite as diversidades. É isso que quero, e muito mais.
Beleza: Ana Carolina Sabadin. Agradecimento: Teatro Sesc Santana e Copacabana Palace.