Ascendentes de João Pire
João Pire era um pretinho arrojado, taludo, entroncado. Um metro e cinqüenta, cara de bolacha, braços roliços, narigão, pescoço curto. Nunca levava desaforo para casa. Se alguém o provocasse na rua e ele não fosse com a cara do desafeto, ali mesmo o pau comia no centro. Muitas vezes ele apanhava que só a molesta do cachorro, mas não cedia e partia para cima do adversário com os dentes trincados e mordendo a língua até sangrar, igual cachorro raivoso.
Por causa desse temperamento irritadiço, João Pire nunca parava nos colégios onde estudava. Sofria de uma patologia que até hoje a psiquiatria não estudou: encrenqueiro nato! Toda hora de recreio no colégio onde estudava era palco de rinha com os colegas de turma. Só vivia sendo reprimido pela coordenação, que lhe aplicava um castigo e o deixava de molho durante três dias, mandando comunicar o ocorrido aos pais, que nunca recebiam a reclamação porque ele rasgava “a queixa” antes de chegar ao destinatário final.
De saco cheio de tantas arruaças, brigas, e sem vocação para as letras, principalmente para as ciências exatas, quando completou dezesseis anos conseguiu uns bicos de encanador e foi trabalhar cavando valeta para encanações, limpando fossa e fazendo instalações hidráulicas nas residências dos bastardos da cidade.
Tornou-se tão conhecido em pouco tempo no oficio que era requisitado por todo mundo para fazer as instalações hidráulicas das residências. Como não possuía tino administrativo fazia tudo sozinho. A agenda era cheia e ele não parava em casa. Muitas vezes se perdia no labirinto das anotações e muitos serviços eram “queimados.” Os esquecidos ficavam putos com ele, mas como sabiam da sua fama de encrenqueiro, acertava uma nova data para fazer o serviço.
Cheio da grana e já manjaleco, vestido a caráter de calça boca sino, danou-se a frequentar o baixo meretrício, na zona sul de Floresta dos Leões. Gostava principalmente de uma ala chamada West Saloon, enfeitada de retratos de cawboys do spaghetti western, onde a cafetina Zefa Pesão “guardava” as filés mignons defloradas, que os pais as expulsavam de casa por “denegrir a honra da família, mal faladas pelos noivos antes de casar.” A honra, naquelas bandas, era a lei do cabaço selado.
Apaixonado até os pneus por uma rechonchudinha dos peitos fartos, coxas grossas, sem cintura, sem pescoço, redonda como um botijão, que com ele havia dormido uma semana. Não tendo sido correspondido na cantada feita por ele a ela para irem morar juntos, João Pire, rejeitado e com o orgulho ferido, tomou uma cachaça de ficar bodejando feito bode, chegou no West Saloon virado na besta fera, altas horas da noite e com um tronco de juá e uma foice na mão, quebrou toda a prateleira, as garrafas de cachaça, os pratos, os tamboretes, as mesas, pôs todos os marmanjos para correrem e sumiu madrugada a dentro para nunca mais voltar.
No outro dia, escondido no canavial, quando soube que estava sendo procurado pelo comissário da delegacia de polícia da cidade por arruaças e ter quebrado o cabaré de Zefa Pesão, pegou o ônibus da Itapemirim e se mandou para a Capital.
Aqui chegando, se instalou logo no quartinho do inferninho do Centro, administrado pelo sociólogo das putas, Liêdo Maranhão, que lhe arranjou logo uns bicos de encanador por perceber sua habilidade na instalação hidráulica da pensão.
Não demorou muito para João Pire ficar conhecido na redondeza que não dava conta da demanda, e passou a fazer só serviços em prédios grandes, condomínios residências senhoris. Vez por outra, por ser pavio curto, arranjava uma encrenca com os administradores, o pau comia no centro, e ele abandonava o serviço sem dar satisfação, deixando todo mundo de mãos atadas às fezes.
Indicado por Liêdo Maranhão, João Pire foi fazer um conserto no edifício famoso no Centro. Lá chegando percebeu que era um caso encrencado, entupimento delicado no cano mestre dos dejetos. Avisou ao administrador que precisava que avisasse a todos os moradores para não irem aos banheiros enquanto ele estivesse consertando o cano mestre.
Crente de que depois do aviso poderia fazer o serviço tranquilo, João Pire chegou ao prédio logo cedo todo equipado: uma escada de três metros, corda para amarrar a cintura e cola. Lá chegando, descobriu onde era o entupimento, pegou a serra, serrou o cano na parte que estava entupida, e no momento que estava fazendo a limpeza correta, um adolescente filho de um dos condôminos, entrou no prédio sem ser percebido, subiu até o apartamento e com a barriga daquele jeito, entrou no sanitário, despejou um verdadeiro sarapatel de excremento e, sem saber do alerta do encanador, deu descarga e o sarapatel de excremento lambuzou a cara de João Pire.
Puto da vida com o incidente, desceu da escada todo melado de fezes e fedendo, bufando de ódio, partiu para cima do administrador, meteu-lhe os braços na fuça, quebrando-lhe a chapa e por pouco não lhe estourou os olhos. Antes de sair do prédio, quebrou as divisórias da guarita, o vidro das portas, deu de garra de suas ferramentas, pôs a escada no lombo e ganhou a rua para nunca mais voltar.
Dois anos após desse episódio bizarro para o administrador que apanhou mais do que Lou Savarese no rigue contra Mike Tyson, voltei a encontrar Liêdo Maranhão no Mercado de São José e com aquela cara de gozador nato ele me confidenciou sirrindo-se de se mijar:
– Se lembra daquele encanador pretinho da tua terra, todo metido a acochado, se dizendo mais macho do que um preá de agave, que morava naquele quarto da Rua da Concórdia? Tomou uma cachaça tão da porra, que foi dormir com o travesti Bunda de Butijão pensando que era a quenga dele. No outro dia quando acordou que viu aquele desmantelo nu na frente dele, ficou tão desmoralizado que pegou os mijados e sumiu do mapa com a cara mais deslavada do mundo com vergonha da gozação dos amigos da pensão.
Até hoje nunca se sabe o paradeiro de João Pire: Se está na Cochinchina ou se está na Serra das Russas feito bicho do mato. Ou se está na caverna da Mata Atlântica, morando com Antônio Pirocão, seu pariceiro de pensão.