Há quase dez anos as saracuras e os cágados do chafariz de Mestre Valentim na Praça General Osório, em Ipanema, andavam sumidos. Alvo de sucessivos furtos, as peças de bronze faziam falta ao conjunto do final do século XVIII, de onde sequer saía mais água, já que a bomba também havia sido levada por ladrões. Enquanto isso, os quatro tanques esculpidos em gnaisse eram usados como banheiro público. Embora tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a obra de um dos artistas mais prestigiados do período colonial era o retrato da degradação da praça, malcuidada e sem grandes atrativos para as crianças.
Esse triste quadro, no entanto, vem mudando desde que o Instituto Carioca Cidade Criativa (ICCC), criado por dois ex-funcionários da prefeitura, resolveu “sacudir” a iniciativa privada para adotar o espaço. O resultado desse esforço começa a ser visto: a Praça General Osório agora passa por ampla revitalização, ao custo de R$ 1,3 milhão (e sem um centavo público), sendo que o ponto alto será a entrega do Chafariz das Saracuras. Ontem, pela primeira vez, a fonte foi testada com sua cantaria em perfeito estado e as quatro saracuras e os quatro cágados refeitos.
As obras de Mestre Valentim, patrimônio perdido e ameaçado
Novo parquinho
Nesta semana, chegaram os brinquedos do parcão, para os cachorros, e também os de madeira, como casinha, trenzinho e gangorras, da área infantil. A academia da terceira idade já está lá aguardando a reinauguração da praça — prevista para o fim de julho —, e o novo gradil segue em processo de instalação. Fora isso, o paisagismo ganhará novo projeto e 16 câmeras serão espalhadas para ajudar na segurança. Inclusive das saracuras e dos cágados, elegantes como as originais e reproduzidas de acordo com peças mantidas no depósito municipal e no Parque da Cidade.
— As câmeras vão cobrir a praça inteira. Não haverá um cantinho sem a visão delas, e as imagens serão monitoradas pela base do Ipanema Presente (na própria General Osório) e pelo Centro de Operações da prefeitura — avisa Ana Luiza Piza, que fundou o ICCC junto com Heitor Wegmann.
Ana Luiza, administradora e ex-subsecretária municipal de Relacionamento com o Cidadão, define como “cenário de trevas” o Chafariz das Saracuras antes de iniciada a reforma. A obra, que leva a marca da pirâmide de Mestre Valentim, estava completamente suja e com partes faltando. Dos tanques, foram retirados sacos e mais sacos de dejetos. Coube ao mestre Hermano José Zambe o restauro de toda a cantaria, pedacinho por pedacinho, usando pedras do acervo da prefeitura, que apoiou todo o projeto.
— Foi um trabalho belo e manual, que durou dois meses — diz Ana Luiza.
Os furtos começaram há mais de um século. O chafariz foi projetado para o Convento da Ajuda, que ficava onde está a Cinelândia. A inauguração da fonte, que abastecia de água as freiras clarissas, data de 1795. A placa de mármore Lioz que agradece ao vice-rei Dom José Luiz de Castro e ao Conde de Resende pela concessão do registro de água já foi restaurada. Em 1911, o convento foi demolido em obras de remodelação da cidade. E o chafariz, doado à prefeitura, foi adornar a praça de Ipanema em 1913. Há registro sobre a ação de ladrões já desta época.
Sucessivos furtos
Em 1998, réplicas foram furtadas, sendo repostas em 2000. Mas, em 2006, desaparecem mais uma vez. Dois anos depois, na época das obras do metrô, elas foram refeitas, só que não duraram muito: em dois furtos, em 2009 e 2010, sumiram. Em 2011, houve nova tentativa de recuperação, só que em 2013, novamente, ladrões atacaram o monumento. Desde então, o chafariz estava “nu”.
Heitor Wegmann, ex-subprefeito da Zona Sul e hoje, além de diretor do ICCC, presidente da Associação de Moradores e Amigos do Jardim Botânico, vê na parceria com a inciativa privada a solução para áreas públicas degradadas, que não contam com a devida atenção do poder público, até por falta de recursos. O instituto, criado em 2017, recuperou recentemente o Parque da Catacumba e o portão do Parque Guinle.
— Precisamos chamar a atenção do empresariado para os espaços públicos. É difícil governos terem dinheiro para saúde e educação e ainda para praças. Em Nova York, há essa mentalidade de os empresários devolverem com cuidado o que a cidade deu para eles — diz Wegmann, que mira na praça do Parque Dois Irmãos. — O que não falta no Rio são espaços com história precisando de atenção.
No caso da General Osório, garantiram o patrocínio, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura, Fecomércio/Sesc/Senac, BTG Pactual, Estácio e a rede Zona Sul.
Um artista genial
Mestre Valentim deixou sua marca na História do Rio. Artista multifacetado, Valentim da Fonseca e Silva, nascido na Vila de Serro Frio, zona de diamantes em Minas Gerais, era arquiteto, paisagista, escultor, entalhador e marceneiro de móveis e molduras. Ele ainda era desenhista e projetava objetos, como os dois lampadários de prata da Igreja do Mosteiro de São Bento. Ao longo do tempo, algumas obras desse grande gênio do período colonial, que, nunca ganhou oficialmente o título de mestre pela sua cor (ele era visto como “mulato”), se perderam ou foram esquecidas.