O enfermeiro Adamastor da Silva foi contratado por uma empresa terceirizada na área de saúde para trabalhar como maqueiro no setor de emergência de um grande hospital do Recife.
Apesar de sua larga experiência no setor de atendimento aos enfermos em hospitais particulares, o maqueiro Adamastor da Silva se assustou no primeiro dia de trabalho no dito hospital público ao ver tanta miséria espalhada nos corredores emergenciais: gente acidentada, estropiada, mutilada, um verdadeiro campo de guerra onde os doentes morrem e ninguém toma conhecimento.
Um caos!
Quando estava cursando enfermagem, o maqueiro aprendeu que, segundo a constituição cidadã, “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma da constituição.” Mas o que ele viu na prática do dia a dia naquele hospital foi o avesso do avesso do que determina a constituição, onde os direitos nela assegurados não passam de devaneio, quimera, utopia!
Já quase adaptado ao clima de guerra hospitalar, onde um amontoado de pobre e desassistido pelos governos apodrecem esquecido nos corredores do inferno, tamanha era a carnificina nos corredores sem leitos, sem macas, sem decência, o maqueiro assistiu a um caso inusitado de arrogância e prepotência humanas sem limites, mesmo dentro de um hospital onde impera a miséria, o descaso, a negligência, a falta de infra-estrutura que deem decência e dignidade ao ser humano!
Certo dia, cinco da manhã de uma segunda-feira chuvosa, dá entrada no hospital um casal de jovens já mortos, vítima de um terrível acidente ocorrido numa famosa e movimentada avenida do bairro do Recife. Pelos indícios colhidos nas primeiras investigações policiais, tinha havido consumo de bebida e uso de drogas, pois o interior do veículo estava abarrotado de provas.
Assim que tomou conhecimento do trágico acidente que, infelizmente, ceifou a vida do belo casal, a família, prepotente e arrogante, correu ao hospital e, todos, com trajes formais e de óculos escuros, adentraram ao setor de emergência e procuraram o médico de plantão exigindo dele a transferência do casal para um hospital particular onde, acreditavam, seriam melhores atendidos. E partiram para cima do médico plantonista com toda a força da ignorância e prepotência que regem o ser humano que, por se acharem mais capazes por terem posses, podem mandar no mundo e darem as ordens do que deve ser feito ou não.
– Doutor, aquele casal que deu entrada hoje de manhã aqui no hospital são nossos filhos e queremos que com urgência o senhor autorize a transferência deles para um hospital mais decente!
E antes que o médico falasse que seria um procedimento difícil e que…
– Doutor, nós estamos ordenando a transferência do casal e o senhor não tem que pensar, não! O senhor é servidor da gente! Queremos que o casal seja transferido e agora! E o senhor vai assinar a transferência sobre pena de responsabilidade civil e desacato à autoridade!… Ou o senhor não sabe com quem está falando!?…
E, entes que o médico tentasse explicar novamente o trágico falecimento do casal, uma das madames se achando dona da banana preta, ordenou ao médico:
– Doutor, se o senhor não assinar o termo de transferência do casal com urgência para um hospital mais decente, nós vamos processá-lo por quaisquer danos estéticos e materiais irreparáveis provocados nos jovens, ouviu isso?!…
Foi quando o médico, polido e educado, com larga experiência na área plantonista, acostumado a lidar com tais situações, contraiu a testa, levantou-se da cadeira, abotoou o jaleco e, como um Buda Nagô, foi até o corredor com a comitiva e disse:
– Desculpe-me se estou sendo indelicado com vocês!… Entendo a situação!… Tenho mais de quarenta anos de experiência como plantonista e já passei pelo inimaginável na área hospitalar!… Mas lamento informá-los: O casal que vocês procuram deu entrada na emergência do hospital já sem vida!… Está lá no necrotério!…Se quiserem ver os corpos me acompanhem!…
Foi nesse momento que duas das madames que acompanhavam o grupo caíram, desmaiadas, e precisaram ser socorridas ali mesmo pelo médico que antes elas afrontavam, davam ordens e o ameaçavam por irresponsabilidade civil e desacato a autoridade…
Só o motorista que servia a comitiva teve a coragem de ir até o necrotério “espiar” os corpos dos jovens que pareciam dois anjos dormindo.