ARACY DE ALMEIDA, O SAMBA EM PESSOA
Raimundo Floriano
Três momentos de Aracy de Almeida
Aracy é um nome predestinado ao sucesso. Não conheço uma que tenha dado com os burros n’água.
Tem a paranaense Aracy Guimarães Rosa, hoje viúva do grande escritor, a qual, quando o futuro marido era Cônsul Adjunto na Alemanha, trabalhou na Seção de Vistos daquele Consulado. Em 1938, na contramão da Circular Secreta 1.127, do Governo Brasileiro, que restringia a entrada de judeus em nosso país, ela resolveu, por sua conta e risco, continuar a preparar os processos de vistos a judeus, despachando-os diretamente com o Cônsul Geral, gesto que ajudou a resgatar milhares de vidas das garras nazistas. Por esse ato de coragem, seu nome consta numa placa existente no Museu do Holocausto, em Israel, homenageando 18 diplomatas que ajudaram a salvar judeus na Segunda Guerra Mundial.
Tem a carioca Aracy Cortes, pseudônimo de Zilda de Carvalho Espíndola, que começou ainda nos Anos 20, cantando e dançando em circos e depois no teatro rebolado da Praça Tiradentes, sendo responsável pelo lançamento de vários compositores então desconhecidos, como Ary Barroso, Zé da Zilda e Benedito Lacerda. Em 1928, estrelou a revista Miss Brasil, onde consagrou o samba-canção Ai, Ioiô (Linda Flor), de Luiz Peixoto, Henrique Vogeler e Marques Porto. Outros sucessos marcados por sua interpretação: Jura, samba de Sinhô, Vamos Deixar de Intimidade, samba de Ary Barroso, Tem Francesa no Morro, samba de Assis Valente, Os Quindins de Iaiá, samba de Pedro Sá Pereira e Cardoso de Menezes.
Tem a sul-matogrossense Aracy Balabanian, diva da dramaturgia brasileira, que nos tem emocionado desde 1968, quando estrelou a novela Antônio Maria, contracenando com Sérgio Cardoso, que fazia o papel-titulo. Depois disso, magistrais foram suas interpretações em Nino, o Italianinho, Coração Alado, Rainha da Sucata.
Tem a carioca Aracy Costa, que começou cantando em circos e, ao vencer o programa de calouros Papel Carbono, de Renato Murce, obteve contrato com a Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Deixou gravados inúmeros sucessos carnavalescos do passado, como Papai me Disse, marchinha de José Batista e Peterpan, Abre a Porta, samba de Arlindo Marques Júnior, José Batista e Roberto Roberti, Carnaval na Lua, marchinha de João de Barro. Em 1960, com o samba Favela Amarela, de Jota Júnior e Oldemar Magalhães, foi eleita Rainha do Rádio.
Eu mesmo conheci pessoalmente uma, a mineira Aracy Calipígia, no final dos anos 50. Nunca lhe soube o sobrenome. Com seus requebros e maneiras, extasiava a rapaziada que freqüentava o Montanhês, famoso dancing de Belo Horizonte, com orquestra de 30 músicos, onde também batia o ponto a lendária Hilda Furacão. Dançando com Aracy, eu gastava quase todo o meu polpudo ordenado de 3º Sargento do Exército, pagando minuto a minuto, conforme era picotado meu cartão pelos atentos fiscais de pista.
Para manter-me à altura de suas onerosas prendas, parodiando Jorge Veiga, saudoso cantor de samba-de-breque, mandei fazer pra mim um paletó vermelho, sem bolso, sem botão e na lapela um espelho, sendo um traje que a cidade igual nunca mais viu, sapato preto e branco, calça boca de funil. Chapéu americano e óculos Ray-Ban, se parava numa esquina, logo ganhava uma fã, e se a garota era boa, e ficava admirada, eu dizia: “Sou o Fulô do Bico Doce, tô charlando e paquerando”. Estripulias de rapaz solteiro. Depois que vim para Brasília, soube que ela se casou com um rico industrial do ramo automobilístico. Agora, chega! Chega de conversa fiada! Vamos ao que interessa!
Quero convidá-los a um passeio através do tempo com Aracy de Almeida, A Dama do Encantado, O Samba em Pessoa A Dama da Central do Brasil. Cada canção aqui citada é precedida de um número, que corresponde à posição ocupada no selecionado repertório virtual disponibilizada ao término desta matéria. É um passeio por 100 paisagens musicais, em 78 RPM até à Faixa 92, no qual conheceremos a amplitude do seu trabalho e a evolução por ele absorvida à medida em que se aperfeiçoavam os recursos da Tecnologia. Por isso, muitos títulos repetidos. Não é uma biografia, mas apenas pequena amostra dos mais de 400 registros fonográficos que nos legou.
A DAMA DO ENCANTADO
Araci Teles de Almeida – depois Aracy, com “y”, que ela achava mais bacana – nasceu a 19.08.1914 no subúrbio carioca do Encantado, onde foi criada. Filha de pais evangélicos, tinha apenas irmãos homens, daí seu jeito desbocado e um tanto masculinizado. Tinha o apelido de Batatinha, por causa do formato achatado do seu nariz, que ela sempre odiou.
Começou cantando hinos religiosos nos cultos, mas, escondida dos pais, também cantava em terreiros de macumba e em blocos carnavalescos. Mas isso não dava dinheiro. Em 1933, conheceu o compositor Custódio Mesquita que, ouvindo-a, a levou para a Rádio Educadora – depois Tamoio –, onde Noel Rosa gostou de sua voz, convidou-a para tomar um chope na Taberna da Glória, e ali mesmo compôs para ela 01 - Riso de Criança, lançado em 1935. Há notícia de que ela gravara Em Plena Folia, de Julieta Oliveira, em 1933, mas nenhum colecionador conhecido dispõe desse registro. Por isso, considero que 01 - Riso de Criança foi sua primeira gravação. Coincidentemente, a última foi também uma composição de Noel, como mais adiante se verá.
Desde esse encontro, nasceu entre Noel e Aracy uma grande amizade, que nunca teve qualquer envolvimento amoroso. Ele era enrabichado por outras, como Marília Batista, cantora com quem gravou várias de suas composições, Cecy, dama da noite, ambas com 16 aninhos, e Lindaura com quem acabou se casando. Só Noel acreditou em Aracy, a quem os “outros a consideraram apenas uma escurinha que queria... bem uma escurinha qualquer”, nas palavras da cantora. Foi para ela que ele fez uma de suas últimas composições, profeticamente intitulada 25 - Último Desejo, que lhe entregou com mais três outras, poucos dias antes de morrer: 18 - Eu Sei Sofrer, 19 - O Maior Castigo Que Eu Te Dou e 26 - Século do Progresso. Com essas e outras tantas, Aracy de Almeida foi a maior divulgadora de Noel, sendo também considerada sua melhor intérprete.
A DAMA DA CENTRAL DO BRASIL
Aracy era assim conhecida porque só viajava de trem nas suas idas e vindas no trecho Rio de Janeiro/São Paulo, para shows e compromissos com diversas e emissoras de rádio e televisão.
Nunca foi casada. Viveu com Rey, famoso goleiro, e morou durante muito tempo com Henrique Leopoldo, um general que era apaixonado por ela, se tornou seu procurador e lhe dava toda a segurança.
Com o advento da Televisão, do Rock e da Jovem Guarda, os intérpretes de samba já não eram tão solicitados. Mas ela soube adaptar-se aos novos tempos. Passou a trabalhar como jurada em programas de TV famosos, como Programa do Bolinha, Buzina do Chacrinha, Pepita Rodrigues e Almoço com as Estrelas. Mas foi no Programa Silvio Santos que ela ficou mais tempo e se afirmou como uma julgadora severa e competente, ainda que caricata e cheia de gírias e parangolés, expressão que muito usava.
E foi Silvio Santos que, a partir de então, sempre a apoiou, provendo-lhe os recursos necessários quando se viu enferma e, em seus últimos dias, lhe telefonava, sempre às 16 horas, o que durou até 20 de junho de 1988 quando ela faleceu, aos 74 anos.
QUAL É O TOM, PORRA!
Em 1980, os cantores Tico Terpins – que só a chamava de Meu Pai – e Zé Rodrix – que a chamou de pai, levou o maior do esporro, mas depois recebeu a autorização para chamá-la de Tio, e olhe lá –, produziram o show denominado Aracy - Ao vivo e à vontade, que só mais tarde, em 1988, teve sua trilha lançada em LP, quando isso nenhum benefício poderia mais trazer para ela, nem para herdeiros seus, pois não os deixou. Porém, para nós, os seus fãs e curtidores, ficou registrado seu derradeiro trabalho, sem artifícios nem retoques, conforme se encontra nas Faixas 93 a 100, esta uma entrevista da qual Zé Rodrix participou. Atenção para Faixa 96 - Palpite Infeliz, onde ela não se acerta com o Regional, mas é socorrida pela platéia, em comovente apoteose.
O SAMBA EM PESSOA
Epíteto que lhe dera, no passado, o radialista César Ladeira. Mas não só de Noel Rosa se constituía seu variadíssimo repertório. Vadico, Valfrido Silva, Bide, Roberto Martins, Nássara, Frazão, Hervê Cordovil, Christóvão de Alencar, Mário Lago, Cyro de Souza, Haroldo Lobo, Milton de Oliveira, Antônio Almeida, Lamartine Babo, Nélson Ferreira, Sá Ró0ris, David Nasser, Ary Barroso, Joracy Camargo, Assis Valente, Benedito Lacerda, Wilson Batista, Custódio Mesquita, Paquito, Romeu Gentil, Fernando Lobo, Joel de Almeida, Carvalhinho, Humberto Teixeira, Kid Pepe, Zé da Zilda, Antônio Maria, Vinícius de Moraes, João de Barro, Dorival Caymmi e muito outros, constantes deste passeio, tiveram suas criações consagradas pela voz de Aracy. Por todo o conjunto do seu trabalho, justificou o apelido.
No final dos Anos 40 e início dos Anos 50, relançou várias composições de Noel Rosa. Essa nova roupagem vocês ouvirão aqui, nas Faixas 63 a 79.
Assim como a corda e a caçamba, a marcha sempre acompanhou o samba. E Aracy teve nesse ritmo intensa atuação nos carnavais de outrora, com inesquecíveis marchinhas, algumas das quais tocadas e cantadas até hoje nos bailes da saudade e nos blocos de sujo: 04 - Chave de Ouro, 32 - Miau, Miau, 37 - Passarinho do Relógio (Cuco), 42 - O Passo do Canguru, 44 - A Mulher do Leiteiro, 49 - Não Sou Manuel, 59 - O Passo da Girafa, 60 - O Circo Vem Aí e 62 - Vai Ver Que É. Versátil que era, também agraciou-nos com preciosas amostras de quase todos os gêneros então existentes: samba-canção, dobrado, toada, rumba, seresta, guaracha, bolero, baião.
Para mostrar talento desse grande ícone da MPB, escolhi os sambas abaixo, extraídos dos elepês O Samba em Pessoa, Volumes 1 e 2:
Rapaz Folgado, de Noel Rosa, de 1937:
Eu Vou Pra Vila, de Noel Rosa, gravado em 1931:
Para Me Livrar do Mal, de Noel Rosa e Ismael Silva, de1932:
Tristezas Não Pagam Dívidas, de M. Silva, de 1933:
Tenha Pena de Mim, de Cyro de Souza e Babalu, de 1938:
Com Razão ou Sem Razão, de Aracy de Almeida e David Nasser, de 1941:
Camisa Amarela, de Ary Barroso, de 1930
Último Desejo, de Noel Rosa, de 1937:
O Maior Castigo Que Eu Te Dou, de Noel Rosa, de 1937:
Fez Bobagem, de Assis Valente, de 1942: