O candidato Bolsonaro não tratava do tema em sua proposta de governo. Naquela época, a arte era lembrada apenas em discursos “contra”. Contra a Lei Rouanet, que só serviria para artistas “mamarem nas tetas do governo”. Contra os próprios artistas, já que eles seriam todos, para o político, alinhados à esquerda.
Já que o governo seguiria fomentando projetos culturais, Bolsonaro passou a defender “filtros” para o que levaria dinheiro público, usando como exemplo o filme “Bruna Surfistinha” e testando os limites constitucionais de suas intenções. Pode-se dizer que mora aí o cerne de seu entendimento de cultura: ele anda junto com sua cruzada pelos costumes da tradicional família brasileira. Por isso, chegou a suspender um edital para a TV pública, que tinha linha para séries LGBT. Naquele episódio, em agosto, Henrique Pires, então secretário especial de Cultura, deixou o governo.
Em setembro, Roberto Alvim, então diretor do Centro de Artes Cênicas da Funarte, enviou uma mensagem para Bolsonaro com uma proposta. Num arquivo de áudio, revelado pelo blog do colunista Lauro Jardim, diz que quer apresentar “um projeto gigantesco, que vai gerar a partir de janeiro um bombardeio de arte conservadora na população”.
O arsenal de Alvim, àquela altura, já era conhecido. No mesmo mês do primeiro contato direto com o presidente, ele ofendeu Fernanda Montenegro justamente para defender Bolsonaro, em episódio que o tornou conhecido no país. Antes, em junho, ele havia convocado, pelas redes sociais, para reunir artistas conservadores e criar uma “máquina de guerra cultural”.
Bolsonaro empossou em novembro o que parecia ser secretário ideal: fiel e conservador. E mais: Alvim tinha, de fato, um projeto para a Cultura do país, focado numa arte nacionalista.
Realocada no Ministério do Turismo, sua gestão já começou com nomeações controversas, colocando em órgãos tradicionais como a Biblioteca Nacional e a Funarte personagens desconhecidos, alinhados ideologicamente com ele e sem credenciais para os cargos. O exemplo mais gritante — e revertido na Justiça — foi o de Sérgio Camargo, jornalista que acredita que a escravidão foi benéfica para descendentes de negros, para a Fundação Palmares.
Janeiro chegou, e com ele o anúncio do tal iniciativa “gigantesca”. Que pouco tinha de gigante: R$ 20 milhões para serem divididos entre 145 projetos de ópera, música, artes visuais (divididas nas redutoras subcategorias pintura e escultura), teatro e literatura. Para comparar: o espetáculo “A família Addams”, de 2015, custou R$ 25 milhões.
O valor seria distribuído como prêmio, formato perfeito por ser mais fácil de “filtrar” os eleitos. Ao participar da live semanal de Bolsonaro, anteontem, para apresentar a proposta, Alvim reforçou que “curadoria não é censura”.
No vídeo de divulgação do prêmio, ele fala em arte “de nacionalidade plena”. Setembro seria o “Mês do renascimento da arte brasileira”, com apresentação dos resultados (quem duvida que seria no dia 7?). Se não tivesse caído em desgraça por parafrasear Goebbels, Alvim teria passado o dia de ontem refutando a irrelevância da proposta. Mas Bolsonaro seguiria achando que colocou a cultura brasileira no caminho certo.
Difícil saber o que vem por aí. A queda por causa da referência ao nazismo acabou nublando o fato de que Alvim ascendeu graças a um discurso sobre guerra cultural e arte nacionalista recebido com entusiasmo por Bolsonaro. E de que ambos creem que a cultura pode e deve ser controlada.