APOLOGIA DE INTERVENÇÃO: FASCISMO OU IGNORÂNCIA?
A. C. Dib
Em uma publicação no Facebook, na qual chamei de “fascistas” os apologistas de intervenção militar, fui censurado por uma grande amiga que, retrucando a adjetivação, respondeu dizendo que “os que eu chamei de fascistas seriam, em verdade, gente simples e sofrida, pessoas do povo fartas de corrupção na política e cansadas da velhacaria dos maus políticos”.
Depois de muito meditar nas palavras dessa querida amiga, firmei entendimento de que lhe assiste parcial razão: muitos daqueles que “militam” no movimento por intervenção militar o fazem por total desconhecimento de causa, por absoluta ignorância. Lastimavelmente, parecem ignorar o que seja um golpe de estado, uma ditadura, a seriedade da ruptura constitucional com a respectiva supressão da liberdade e da democracia.
Penso que muitos ali não viveram ― ou vivenciaram ― os anos do ciclo militar: ou (como eu) eram crianças nesse período ou já nasceram na vigência do regime democrático restaurado.
Bem assim, néscios no assunto, simplórios, desconhecem a real dimensão de uma ditadura, ignoram o que reside por detrás do sorriso de um tirano: supressão da liberdade de pensamento, de escolha e de opinião, supressão de direitos e garantias individuais, violências generalizadas, tortura a presos políticos, assassinato de opositores, prisões arbitrárias, censura à imprensa e à livre expressão, imposição de ideias e de costumes, perseguição a desafetos indefesos, violações a direitos humanos, opressão e medo. Tais apologistas da intervenção militar não imaginam ou calculam o terror que impera em um regime ditatorial, o pavor de desaparecer misteriosamente na calada da noite, o desespero de não ter defesa contra inimigos ferozes e poderosíssimos, a total vulnerabilidade e fragilidade frente ao gigantismo do Estado. Em 1964, muitos dos que clamavam por intervenção militar só passaram a valorizar a liberdade depois de perdê-la. Certo que, naqueles idos não muito distantes, imperava agitação (no seio das próprias Forças Armadas, inclusive), caos político e o advento da célebre “ameaça vermelha”, o que, absolutamente, não se verifica hoje, com as instituições funcionando em pleno vigor democrático/constitucional.
Já vi alguns desses alienados apologistas sustentarem que não desejam golpe de estado e implantação de uma ditadura, mas, tão somente, uma mera “intervenção militar”, como se a tal intervenção fosse uma prática constitucional e asséptica, na qual os militares, frente à incompetência do poder civil, assumiriam temporariamente o poder e, varrendo daqui, espanando dali, eliminariam a poeira e a bagunça, colocariam ordem na casa e rumo na nau e, discretamente, se retirariam, devolvendo gentilmente o poder aos civis. Ignoram que a última intervençãozinha durou vinte anos ― vinte longos anos de madrugada sombria e tenebrosa. Isso sem contar os anos de Estado Novo ― ditadura de Vargas ―, também muito eficaz e prolífica nas maldades praticadas em nome da Pátria. Em um desses grupos de apologistas da intervenção militar, certa feita, publicada uma foto de presidente do ciclo militar, imperou a dúvida se o retrato seria de Médici ou de Figueiredo. Semelhante desconhecimento é de estarrecer, eis que é abissal a diferença que separa ambos os generais: enquanto Figueiredo foi o homem da anistia, da abertura política, Presidente que restaurou as liberdades democráticas, Médici foi um dos mais truculentos ditadores que o Brasil já conheceu.
Já ouvi que o Brasil não teve uma ditadura genuína, mas uma “democracia à brasileira”. Cito, aí, o pensamento de Sobral Pinto, para quem: “Não existe a tal democracia à brasileira; existe, sim, peru à brasileira, eis que a democracia é uma só: ou existe, ou não”. Já ouvi, também, com ares de deboche do interlocutor, que o Brasil não viveu de fato ditadura, mas uma “ditamole”, eis que ditaduras como a chilena ou a argentina teriam sido bem mais violentas que a brasileira. Curioso medir o grau de autoritarismo de uma ditadura pela altura da pilha de cadáveres que produz.
Não existe, meus amigos, “ditadura boazinha”: toda ditadura é má, torpe, desleal, vil, impiedosa, agressiva, sanguinária. Ditadura não é solução pra nada, mas, isto sim, fonte de problemas, de dramas, de infelicidade e sofrimentos. A ditadura se mantém pela força e pelo medo. O medo é sopro de vida das ditaduras, alimento dos ditadores. E o medo se impõe com aplicação da violência. Ditadura não é panaceia redentora e reformadora para corrigir todos os problemas do Brasil. Delirante utopia, lamentável desconhecimento da história recente brasileira.
Só na democracia encontraremos solução para os problemas nacionais, pela livre fluência e debate de ideias, pela livre escolha de propostas e de governantes, pelo diálogo fraterno e fixação de entendimentos. Escolhas ruins são corrigidas por novas escolhas. O voto é profundamente didático e o processo político democrático forma legítimos cidadãos. Eventuais falhas do modelo democrático se fazem corrigir com mais e mais democracia. Só no regime democrático impera a verdadeira vontade e soberania populares.
Juscelino Kubitschek, com seu programa “Cinquenta Anos em Cinco”, há muito já demonstrou que a democracia convive maravilhosamente bem com o desenvolvimento econômico. O célebre Julgamento do Mensalão e a Operação Lavajato, por sua vez, fizeram ver que não necessitamos de ditaduras para punirmos corruptos (punições fartamente distribuídas sem arbítrio, com total observância das garantias constitucionais de contraditório, ampla defesa e devido processo legal).
De toda sorte, se a maioria dos apologistas da intervenção militar são pessoas humildes, sofridas, simplórias e desprovidas de total domínio daquilo que defendem, temos que os “líderes” ou “cabeças” desse movimento não são tão ingênuos e inocentes assim. Esses, sim, são pessoas de formação totalitária, extremistas natos e convictos, fascistas conscientes e bem calçados em seu ardor radical, liberticidas que se valem da ignorância e da credulidade dos tolos para venderem seu peixe podre e fétido.
Claro, também, que ainda que larga parte desses apologistas de golpe de estado não saibam ao certo do que estão a falar e a pregar, ainda assim a tese que defendem é profundamente perniciosa, nociva, maléfica e desastrosa, além de criminosa. Trata-se de tese fascista. Se na democracia em vigor defendem a ditadura, em uma ditadura não poderiam defender a adoção da democracia.
Violar a ordem democrática por meios violentos, com ruptura constitucional e propósito de imposição de regime antidemocrático e ditatorial é crime e fazer apologia de fato tipificado como crime é crime também. Democracia não é “a casa da mãe Joana”, o regime da desordem. Democracia ― governo do povo ― não é anarquia ― ausência de governo. Também na democracia ― e principalmente na democracia ― existem leis que controlam e limitam o poder dos governantes e se fazem impor a todos igualmente, sem exceções. Segue em curso investigação para identificar os líderes do movimento criminoso por golpe de estado, com fechamento do Congresso Nacional ― a chamada “Casa do povo” ― e fechamento do Órgão máximo do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal. Esperamos que ditas investigações cheguem a bom termo, o mais rapidamente possível, fazendo com que os idealizadores do projeto fascista de golpe de estado, com implantação de ditadura, sejam rigorosamente punidos, na forma da lei.
O Presidente Bolsonaro, por sua vez, parece estimular veladamente o malfadado movimento, talvez acalentando o sonho utópico de se converter “nesse homem forte de que o Brasil tanto necessita”. Felizmente o povo brasileiro, em sua larga maioria, parece estar vacinado contra esse vírus do autoritarismo, vendo com ceticismo o messianismo populista de salvadores da Pátria. E os Chefes Militares, nossos oficiais generais, homens muito preparados, sérios, lúcidos, devotados à Constituição e ao regime democrático, não vislumbram qualquer clima para passo tão sério e grave. Ao contrário, no instável Governo Bolsonaro os ministros militares constituem o elemento de equilíbrio e racionalidade a conferir um mínimo de credibilidade a tão perdido governo. Seguem os militares trabalhando com patriotismo, sem politicagens, com rigorosa isenção técnica, no cumprimento da relevante missão que a Carta de 1988 lhes reservou. Outrossim, radical, polêmico, despreparado, psicologicamente instável e sempre testando ao máximo o limite da estabilidade institucional, não temos dúvida de que, na absurda hipótese de um golpe militar, Bolsonaro seria o primeiro a cair, seria o primeiro cassado.