ANTES DA MISSA
Machado de Assis
(Grafia original)
CONVERSA DE DUAS DAMAS
(D. LAURA entra com um livro de missa ira mão; D. BEATRIZ vem recebê-la)
Já tão cedo na rua! Onde vais?
A das onze, na Cruz. Pouco passa das dez;
Subi para puxar-te as orelhas. Tu és
A maior caloteira...
Espera; não acabes.
Que o senhor meu marido, em teimando, acabou.
"Leva o vestido azul" — "Não levo" — “Hás de ir” — "Não vou".
Vou, não vou; e a teimar deste modo, perdemos
Duas horas. Chorei! Que eu, em certos extremos,
Fico que não sei mais o que fazer de mim.
Chorei de raiva. Às dez, veio o tio Delfim;
Pregou-nos um sermão dos tais que ele costuma,
Ralhou muito, falou, falou, falou... Em suma,
(Terás tido também essas coisas por lá)
O arrufo terminou entre o biscoito e o chá.
Azul... É o azul-claro? aquele guarnecido
De franjas largas?
Ir com ele, num mês, a dois bailes?
É verdade.
Uma opa, uma farda, um carro, uma libré.
LAURA Perdeste uma festa excelente.
Muita moça bonita e muita animação.
Vou à missa.
Para mim, que não fui, cabe-me ao menos esta Consolação.
Meu Deus! faz calor!
O livro.
De um livro assim; o teu é muito lindo; aposto
Que custou alguns cem...
Do que eu. Mandei vir um, há tempos, de Bruxelas;
Custou caro, e trazia as folhas amarelas,
Umas letras sem graça, e uma tinta sem cor.
Foi comprado em Paris;
Ele é que me arranjou este chapéu. Sapatos,
Não me lembra de os ter tão bons e tão baratos.
E o vestido de baile? Um lindo gorgorão
Gris-Perle; era o melhor que lá estava.
Acabou tarde?
E a dança terminou depois de três e meia.
Uma festa de truz. O Chico Valadão,
Já se sabe, foi quem regeu o cotilhão.
Apesar da Carmela.
Das solteiras. Vestir, não se soube vestir;
Tinha o corpinho curto, e mal feito, a sair
Pelo pescoço fora.
E a despesa é enorme. Em compensação, foi
A sobrinha, a Garcez; essa (Deus me perdoe!)
Levava no pescoço umas pedras taludas,
Uns brilhantes...
Também, pelo que ganha o marido, não há
Que admirar. Lá esteve a Gertrudinha Sá;
Essa não era assim; tinha jóias de preço.
Ninguém foi com melhor e mais rico adereço.
Compra sempre fiado. Oh! aquela é a flor
Das viúvas.
Ou suspirou por ela.
Que pretende casar com quanta moça vê.
A Gertrudes! Aquela é fina como quê.
Não diz que sim, nem não; e o pobre do Soares,
Todo cheio de si, creio que bebe os ares
Por ela... Mas há outro.
Há coisas que eu só digo e só confio a ti.
Não me quero meter em negócios estranhos.
Dizem que há um rapaz, que quando esteve a banhos,
No Flamengo, há um mês, ou dois meses, ou três,
Não sei bem; um rapaz... Ora, o Juca Valdez!
A respeito do mar que ali espreguiçava,
E não sei se também a respeito do sol;
Não foi preciso mais; entrou logo no rol
Dos fiéis e ganhou (dizem), em poucos dias,
O primeiro lugar.
Diz que sim; diz até que eles se casarão
Na véspera de Santo Antônio ou São João.
Valsou como um pião e comeu como um boi.
Que, só vê-la comer, tira aos outros a fome.
Sentou-se ao pé de mim. Olha, imagina tu
Que varreu, num minuto, um prato de peru,
Quatro croquetes, dois pastéis de ostras, fiambre;
O cônsul espanhol dizia "Ah, Dios qué hambre!"
Mal me pude conter. A Carmosina Vaz,
Que a detesta, contou o dito a um rapaz.
Imagina se foi repetido; imagina.
Lá porque ela não come ou só come o ideal...
Adeus!
Nem um minuto mais. São dez e meia.
Almoçar?
Um vestido chibante!
Deixando o livro. Adeus! Agora até um dia.
Até logo, valeu? Vai lá hoje; hás de achar
Alguma gente. Vai o Mateus Aguiar.
Sabes que perdeu tudo? O pelintra do sogro
Meteu-o no negócio e pespegou-lhe um logro.
Não tudo; há umas casas, seis,
Que ele pôs, por cautela, a coberto das leis.
Em nome de um compadre; e inda há certas pessoas
Que dizem, mas não sei, que esse logro fatal
Foi tramado entre o sogro e o genro; é natural
Além do mais, o genro é de matar com tédio.
Eu gosto da mulher; não tem mau coração;
Um pouco tola... Enfim é nossa obrigação
Aturarmo-nos uns aos outros.
Brigou com a mulher?
Um quarto para as onze! Adeus! Vou para a Cruz.
(Vai a sair e pára)
Cuido que ela queria ir à Europa; ele disse
Que antes de um ano mais, ou dois, era tolice.
Teimaram, e parece (ouviu-o ao Nicolau)
Que o Mesquita passou da língua para o pau.
E lhe fez um discurso hiperbólico e cheio
De imagens. A verdade é que ela tem no seio
Um sinal roxo; enfim vão desquitar-se.
Desquitar-se!
Foi levada a juízo. Há de ser despachada
Amanhã; disse-o hoje a Luisinha Almada,
Que eu, por mim, nada sei. Ah! feliz, tu, feliz,
Como os anjos do céu! Tu sim, minha Beatriz!
Brigas por um por um vestido azul; mas chega o urso
Do teu tio, desfaz o mal com um discurso,
E restaura o amor com dois goles de chá!
Melhor na terra; mas...
São, em geral; não sei... uns tais aborrecidos.
O teu, que tal?
Carinhos por ti?
Acarinha-me; é terno; Inda estamos na lua
De mel. O teu costuma andar tarde na rua?
Raras vezes.
Duas cordas que vão unidas às caçambas.
Pois olha, eu suspeito, eu tremia de crer
Que houvesse entre vocês qualquer coisa... Há de haver.
Lá um arrufo, um dito, alguma coisa e... Nada?
Nada mais? É assim que a vida de casada
Bem se pode dizer que é a vida do céu.
Olha, arranja-me aqui as fitas do chapéu.
Então? Espero-te hoje? Está dito?
Veio-me de Paris; chegou pelo Poitou.
Vai cedo. Pode ser que haja música. Tu
Hás de cantar comigo, ouviste?
Tenho medo que vá a Claudina Azevedo,
E terei de aturar-lhe os mil achaques seus.
Quase onze, Beatriz! Vou ver a Deus. Adeus!