15 de junho de 2021 | 05h00
A atriz Ana Cecília Costa se lembra como se fosse hoje. Em 2015, logo depois de uma apresentação da peça A Língua em Pedaços em uma unidade do CEU (Centro Educacional Unificado), na periferia paulistana, uma menina de 9 anos parou na sua frente e perguntou: “Esse homem é da polícia, não é?”. A artista, que interpreta Santa Teresa d’Ávila (1515-1582), pensou e respondeu, impressionada com a leitura da garota em relação ao inquisidor que interroga a religiosa acusada de subversão e heresia: “Sim, quer dizer, é como se fosse um policial”.
Não foram poucas as conexões estabelecidas por espectadores entre os dois personagens do texto do espanhol Juan Mayorga e fatos cotidianos desde a estreia do espetáculo, dirigido por Elias Andreato, em maio daquele ano no Centro Cultural Banco do Brasil. O embate entre a carmelita e o algoz que a acusa de trair os princípios da Igreja Católica no século 16 provocou reações, segundo a atriz, de pessoas que enxergaram coincidências com o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, os pedidos de intervenção militar e o avanço das ideias conservadoras. “Teresa foi julgada pelo fato de ser uma mulher e argumentavam que ela deveria estar possuída pelo demônio porque jamais alguém do sexo feminino seria tão inteligente e articulada”, conta.
Além de religiosa e poeta, Teresa d’Ávila foi uma empreendedora, fundando dezessete conventos das carmelitas descalças na Espanha. “Se essa mulher realizou tudo isso lá no século 16, por que não vou conseguir produzir uma peça para contar a sua história?”, perguntou-se Ana Cecília a si mesma, logo depois de ler a biografia da monja, O Livro da Vida, em um intervalo das gravações da novela Joia Rara, em 2014. Por intermédio de um amigo, o ator Washington Luiz Gonzales, ela descobriu a peça de Mayorga, recém-lançada e premiada na Espanha, e, com os direitos na mão, procurou Andreato sem nem o conhecer pessoalmente. Estava obstinada, como Teresa, a colocar em práticas ideias que julga necessárias. “Ana acredita em tudo o que fala e, quando ela me descreveu que o foco da peça era sobre Teresa e o inquisidor, uma atmosfera questionadora e não só religiosa, comecei a procurar uma sala para começar a ensaiar de imediato”, declara o diretor.
As primeiras pesquisas foram sugeridas pelas monjas carmelitas de Salvador, na Bahia natal de Ana Cecília. “Elas me receberam desconfiadas, mas saí de lá com vários livros e uma visão diferente daquelas mulheres que vivem presas, afastadas do mundo por causa de uma vocação e isso, de certa forma, as aproxima dos atores”, divaga a artista. Durante as viagens de A Língua aos Pedaços por cidades como Brasília e Belo Horizonte, a atriz mostrou o espetáculo nos mosteiros e, em uma apresentação em um retiro para padres e bispos em Itaici, no interior paulista, a convite do cardeal Dom Odilo Scherer, ela viveu uma das maiores emoções de sua carreira. “No final, todos se levantaram e cantaram Salve Rainha como agradecimento.”
Depois de A Língua em Pedaços, Ana Cecília protagonizou outra peça de viés crítico de Juan Mayorga, A Tartaruga de Darwin, dirigida por Mika Lins, em 2017. Com autorização do dramaturgo, ela fez uma versão em forma de monólogo de A Tartaruga de Darwin para estrear em breve em um projeto batizado de Trilogia Mayorga, talvez ainda no segmento online. Além de A Língua em Pedaços e A Tartaruga de Darwin, a trilogia se completa com Entre Árvores, texto intimista, que Ana Cecília vai só dirigir. “Sou uma pessoa em permanente busca espiritual, católica de formação, e encontrei um norte em Teresa d’Ávila. Depois dela, sinto que abracei a minha carreira também como produtora para falar aquilo que sinto.”