(08.06.1933 – 04.04.2004)
Raimundo Floriano
(Publicado a 08.06.17)
Afonso Celso aos 18 anos
Aconteceu bem no comecinho de Brasília. Ao amanhecer de belo dia ensolarado, um jipe da NOVACAP - Companhia Urbanizadora da Nova Capital, que fazia o percurso Taguatinga/Plano Piloto, capotou já na saída do Setor de Indústria. Imediatamente, juntou um monte de curiosos, que socorreu o motorista, levou-o para o Hospital Distrital – atual Hospital de Base –, onde ele foi devidamente atendido. Umas três horas depois, quando tomou consciência de si, ele perguntou:
– Cadê Seu Afonso?
Foi uma correria que nem te conto! Médicos enfermeiros, pressurosos, dirigiram-se ao local do acidente, encontrando-o desacordado, no meio de umas moitas de capim. Devido ao grande tempo em que esteve exposto aos raios solares, sua cabeça ficou toda inchada, a cara completamente deformada, parecendo um ET, mas com a agravante de que não se lhe viam os olhos. Mais ou menos assim:
Na época, Afonso era Chefe de Pessoal na NOVACAP, quer dizer, o Homem da Caneta, que assinava a Carteira de Trabalho de tudo quanto era candango. Por isso, o Hospital ficou superlotado de pessoas querendo visitá-lo, do peão ao engenheiro, sendo necessário fazer uma escala para não tumultuar os serviços. Houve um peão, Seu Raimundo Paz, antigo magarefe em Balsas, para quem o Afonso arrumara um gancho, que se emocionou dum tanto ao ver o lastimável estado em que se encontrava o conterrâneo que, ao sair, deixou, na mesinha da sala de espera, uma nota de um cruzeiro! Nunca me esqueço desse lance!
Afonso era duro na queda. Aliás, queda era com ele mesmo!
Doutra feita, bem antes, ainda éramos meninos, eu ia saindo da escola, quando me disseram que ele caíra do pé de imbu de nosso quintal e quebrara o braço. Eu, no caminho de casa, ia imaginando onde colocariam os pedaços do braço, achando que a quebra era igual à de um prato de loiça ou dum copo de vidro. Ao chegar, já o encontrei com o braço direito entalado – não existia gesso por aquelas bandas – e, com a mão esquerda, tocando seu vialejo, como chamávamos a gaita de boca naquele tempo em nosso sertão.
Outras quedas houve, a maior delas com ele perto dos 70, por demais traumática, mas da qual saiu numa boa.
Outra coisa em que ele era craque era em exibir-se! Era a única pessoa, além do Mudo do Salomão, que atravessava o Rio Balsas – largura de 60 metros – mergulhando, chegava à outra margem, dava um sinal com uma das mãos e voltava, isso de um fôlego só! Foi também a única pessoa que vi caminhar descalça sobre brasas avivadas nas fogueiras de São João!
Em Balsas, havia dois pés de eucalipto, um em nossa casa e o outro no Egito, sítio distante cerca de meia légua, cujas folhas eram muito procuradas para chás com fins medicinais. Como ambos tinham caules finos, sem galhos, e copas muito altas, feito tetos de arranha-céus, era necessário alguém que subisse para colhê-las. Em Balsas, só o Afonso era capaz dessa proeza!
Afonso Celso de Albuquerque e Silva, meu irmão, nasceu em Balsas (MA), no dia 8 de junho de 1933. Filho de Emigdio Rosa e Silva, o Rosa Ribeiro, e Maria de Albuquerque e Silva, a Maria Bezerra, era o sexto de uma prole de dez, da qual eu sou o sétimo. Ontem, se vivo fosse, faria 81 anos. Coincidentemente, seu aniversário caía no de outro irmão, o Carioquinha, nascido em 1928. Esta é a foto mais antiga que temos dele:
Afonso é esse à esquerda, encostado no sofá - Eu sou o de macaquinho e cabelo cacheado
Este outro flagrante foi colhido também em nossa infância:
Afonso Celso e Raimundo Floriano
Em 1947, concluído o Curso Primário, Afonso embarcou na carroceria dum caminhão com destino a Goiânia, onde morava nossa avó materna, para prosseguir nos estudos.
Ele sempre gostou de ter seu dinheirinho. Em Balsas, exercia a profissão de sineiro, cobrando 2 cruzeiros de cada comerciante para bater as horas de abrir e fechar as lojas, atividade que me repassou ao sair de lá. E de vestir-se com roupinhas mais ajeitadas, coisas que a minguada mesada paterna era incapaz de suprir, razão pela qual, desde que chegou à capital goiana, paralelamente aos estudos, trabalhou duro para concretizar seus desejos e vaidades.
Como emprego fixo, exerceu a função de repórter fotográfico na Foto HB, do armênio Haroutiun Berberiam. Naquele tempo, as fotos eram coloridas manualmente, no que o Afonso era perito. Como bico, foi hipnotizador, professor de jiu-jítsu, contrarregra radiofônico, ator teatral e gaitista, na Rádio Brasil Central e posteriormente, na Rádio Clube de Goiânia, compondo o elenco efetivo do Carrossel da Semana, badalado programa de auditório.
Em dezembro de 1957, o Carrossel da Semana veio apresentar-se aqui em Brasília, num espetáculo para Juscelino e a candangada, ocasião em que o Presidente o convidou a integrar a equipe da construção da Nova Capital. Convite aceito, Afonso, já com o Segundo Grau completo, foi admitido como Assistente Administrativo da Divisão de Pessoal da NOVACAP.
Dentro de pouco tempo, galgou ao cargo de Chefe de Pessoal e, com o decorrer do tempo, até aposentar-se, foi Diretor de Pessoal da DTUI - Departamento de Telefones Urbanos e Interurbanos e da COTELB - Companhia de Telefones de Brasília, depois TELEBRASÍLIA - Telecomunicações de Brasília.
Seresteiro, paquerador, romântico e apaixonado, casou-se, a 6 de novembro de 1963, com Lígia Magnólia Reis e Silva, que lhe deu três filhos: Luciene, Patrícia e Afonso Celso.
Afonso e Lígia, no dia do enlace matrimonial
Em 1973, Afonso bacharelou-se em Ciências Jurídicas e, ao aposentar-se, montou seu Escritório de Advocacia, onde obteve magnífico êxito, não só na esfera trabalhista, sua maior especialidade, como em outras áreas. Teve como cliente, por exemplo, num processo de emigração, o designer austríaco Hans Donner que, juntamente com a Globeleza - essa vestida como nasceu –, posou com ele para uma foto, troféu exibido e guardado com muito carinho, mas que se perdeu, como muitos outros flagrantes de momentos análogos em que foi partícipe, depois que ele nos deixou.
Afonso curtia a vida. Foi um globetrotter: conhecia todo o Brasil, as 3 Américas – do Norte, do Sul e Central –, o Caribe, o Oriente Médio, e toda a Europa. Tendo uma filha residente em Munique, Alemanha, fez daquela cidade sua base para percorrer os países do Velho Continente.
Tudo o que usava era da melhor qualidade – óculos, relógio, tênis, carro, computador e periféricos –, e suas gaitas, as germânicas Hohner, 64 vozes, em várias afinações, eram compradas diretamente na fábrica. Ei-lo aqui com uma delas:
Afonso e sua Hohner
Além da gaita, Afonso também tocava sanfona e escaleta. Na era do teclado, ele rapidamente se adaptou, incluindo esse instrumento em seu show musical, às vezes até com um solo na gaita, acompanhando-se no teclado, ou vice-versa. Eis o último que possuiu, com sua coleção de gaitas.
Afonso Show, seu teclado e suas gaitas
Afonso era dotado de habilidades incontáveis, dentre elas a prestidigitação, a arte origami, a computação gráfica e o artesanato em madeira, papelão, metal, plástico, isopor e buriti.
Tudo na vida tem início, meio e fim. Embora Afonso Celso fosse duro na queda, havia algo que lhe vinha bagunçando o coreto há certo tempo: o coração! Vez em quando, pregava-nos sustos! E que sustos!
No dia 04.04.04 – repararam na data, não é performática? –, um domingo, Afonso chegou de Palmas, onde mora uma de suas filhas, e, ao meio-dia, telefonou-me convidando para uma grande pescaria, no mês de julho, no Araguaia. Confirmada minha presença, saí para uma festinha de aniversário à qual estavam presentes muitos balsenses. Mais ou menos às 5 da tarde, recebi ligação comunicando-me que ela havia morrido. Foi difícil acreditar, pois eu, ao meio-dia, falara com ele!
Infelizmente, era verdade! Depois do almoço, deitou-se para um cochilo e nunca mais acordou. Caprichos do coração. Consola-nos saber que se foi mansamente, sem muito sofrer.
Esta foi a última foto que tiramos, com os dez irmãos juntos.
Afonso, Raimundo, Bergonsil, José, Rosimar, Pedro
Maria Isaura, Maria dos Mares, Maria Alice e Maria Iris
A 8 de junho de 2003, curtindo as coisas boas da vida, como era de seu feitio, Afonso comemorara a chegada aos 70 em grande estilo, em ágape musical e dançante, com a presença da família, dos confrades do Rotary e de seus amigos leais.
Perpetuando sua memória musical, Afonso deixou-nos este CD, no qual apresenta solos na gaita e no teclado:
Nestes dois flagrantes, vemo-lo em atuação:
Foi o Afonso que me apresentou a gaita com chave e me ensinou a fazer os baixos com a língua, dando a impressão de que se ouvem dois instrumentos. Outra técnica especial dele, com o mesmo objetivo, nunca fui capaz de assimilar: tocar oitavando, o que produz efeito de rara beleza sonora e também nos faz pensar em dois instrumentos a tocar.
Afonso era performático, como se vê no título desta matéria. Músico e Advogado militante residente em Brasília, ajuizava muitas causas nos Tribunais Superiores, como foi o caso do designer alemão Hans Donner, que a ele recorreu em seu processo de naturalização. Aqui vemos um flagrante da visita de Hans a seu escritório, acompanhado de mulher, Valéria Velenssa, a Globeleza, que não perdeu a chance de deixar, na bochecha esquerda do advogado, sua marca registrada.
Ontem, 8 de junho, foi seu aniversário. Como pequena amostra do talento desse querido e saudoso irmão, escolhi, de Ernesto Lecuona, a fantasia Malagueña, em solo de gaita: