11 de junho de 2021 | 05h00
Há tempos, na verdade desde seu primeiro longa – Baile Perfumado, codirigido com Paulo Caldas –, Lírio Ferreira queria trabalhar com Alessandra Negrini. As agendas não coincidiam. Finalmente se acertaram, e ela está no centro de Acqua Movie, o novo longa de Lírio, que estreou nos cinemas na quinta-feira, 10. Pode ser motivo de polêmica dizer que se trata da melhor ficção do autor, mas é. Árido Movie, de 2004, foi um filme importante de Lírio. Não foi um estouro de bilheteria, mas o culto não vem daí.
“O Árido pertence a um momento marcante de minha vida, é um filme pelo qual tenho muito carinho. Caetano (Veloso) disse que é um filme com muitas portas, e que ele não sabia se queria abrir todas. Eu concordo, não é um filme que eu quisesse revisitar, mas aí ocorreu uma coisa curiosa. Há uns dez anos, fui com amigos a um festival na cidade de Triunfo, no interior de Pernambuco. Fomos de carro e, pela primeira vez, cruzei com as obras da transposição do Rio São Francisco. Fiquei fascinado e foi a partir dali que os personagens do Árido começaram a me assombrar.”
O Homem do Tempo morre, o filho é forçado a conviver com a mãe. Caem na estrada – segundo o garoto, o pai queria ser enterrado em Rocha, mas a cidade foi soterrada pelas águas e existe agora Nova Rocha. Mais que uma sequência de Árido Movie, Acqua talvez seja um reboot. Weber volta ao Nordeste para o enterro do pai, no filme anterior. Cícero – seu filho – agora viaja às origens para também enterrar o pai. “Por mais que ele interagisse, na estrada e em casa, a odisseia de Jonas/Homem do Tempo era solitária, individual. Agora mãe e filho vão viver uma experiência transformadora para ambos. Cícero chega a acusar a mãe de preferir ‘seus’ índios a ele. A viagem proporciona uma espécie de (re)descoberta do Brasil, e do amor entre ambos.
Momento ímpar é quando o carro corre paralelo a um cânion, e a câmera de Gustavo Hadba – o diretor de fotografia que substitui Murilo Salles, do primeiro filme – se desloca para o interior do gigantesco canal. “A água era mínima, agora tudo aquilo está inundado, como a cidade. Só sobrou a estrutura da igreja.” Embora o gatilho tenha sido aquela viagem a Triunfo, Acqua só começou a tomar forma anos depois, quando Lírio viajou ao sertão para escrever o novo filme com os amigos Marcelo Gomes e Paulo Caldas. “Numa encruzilhada, tivemos um choque. Naquela desolação imensa havia um painel anunciando a candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência. Para nós, ele era um candidato folclórico, como havia sido o Enéas. Quando estreamos no Festival do Rio, já vivíamos a tragédia desse Brasil sob Bolsonaro.”
Para expressar essa nova era, surgiu o personagem do prefeito, interpretado por Augusto Madeira. Intimidador, ele quer transformar o enterro do Homem do Tempo num evento partidário. Tenta cooptar o sobrinho. Alessandra volta à estrada, em busca da terra dos índios, onde o próprio Cícero terá sua revelação. “As coisas foram se ajustando. Eu queria a Alessandra e dessa vez consegui. Para o Cícero, terminei usando o Antônio Haddad, que pertence a uma família de artistas de São Paulo, meus amigos. Eu o conhecia desde pequeno, e ele, aos 7 anos, já me enquadrava – ‘Tio Lírio, quando vai ter um papel para mim?’ Vê-lo atuar com a Alessandra foi um grande prazer.”
Ela conta: “Surgiu no meio do caminho uma novela, mas dessa vez eu disse que tinha o filme e queria fazer. Foi uma questão de ajustamento de datas. Quanto ao Antônio (Haddad), tenho dois filhos e a Betina é mais ou menos da idade do Cícero. Usei muito da minha experiência como mãe para o papel”. O cinéfilo de carteirinha há de lembrar da frase final de Baile Perfumado: “Os inquietos hão de mudar o mundo”. Essa inquietude faz parte do temperamento do diretor. Os amigos tiram sarro e dizem que um filme de Lírio é muitas vezes, senão sempre, um delírio.
Árido era mais irregular, a inquietude tinha de ser gritada. Acqua investe mais no afeto. Música (de Antônio Pinto, que também é um dos produtores), fotografia (do já citado Gustavo Hadba) e montagem (de Vânia Debbs, que tem sido parceira de Lírio) harmonizam-se de tal maneira que o filme flui como um rio na vida dos personagens (e dos espectadores). O próprio título, Acqua, em vez de Árido, já significa muito. “Ao colocar na tela uma mãe e um filho em busca da reconstrução do afeto num mundo caótico, é claro que o filme tinha de ter essa pegada.”
O afeto transborda. Assim como tinha José Celso Martinez Correia em Árido Movie, Lírio tem agora Edgar Navarro no Acqua. Transgressores geniais, eles o inspiram como artistas e pessoas humanas. “E tem o Ruy Guerra em Sangue Azul, que filmei em Noronha”, ele lembra. O afeto, como a água, está presente em todo o filme, desde a morte do pai, naquele chuveiro.
De novo é um filme com muitas camadas – o amor de mãe e filho, o coronelismo, os índios, o conflito entre o arcaico e o moderno. “Pra gente, Paulo, Marcelo e eu, escrever em loco, no sertão, foi decisivo para que todas essas camadas entrassem organicamente, de forma natural, na nossa história.”