11 de junho de 2021 | 05h00
Acqua Movie não é um filme de tese, e nem sequer desesperado ou distópico, como se poderia supor, embora não sonegue imagens fortes ao espectador. Um exemplo é o leito morto de um rio, um cânion tanto belo quanto tétrico, filmado em plano-sequência. Põe em destaque o relacionamento entre uma mãe e um filho pré-adolescente. Duda (Alessandra Negrini) é uma ambientalista e documentarista que vive viajando para fazer seus filmes e não tem lá muito tempo para a família. O marido morre e o filho a convence a levar as cinzas do pai para seu lugar de origem, no Nordeste, onde ele teria manifestado desejo de ser enterrado.
Essa viagem serve também como uma espécie de rito de passagem para o garoto Cícero (Antonio Haddad). Ele é muito ligado à imagem do pai morto (Guilherme Weber), um jornalista de TV famoso. Hostiliza a mãe, sempre dedicada “aos seus índios”, relegando a família a segundo plano. Ao chegar à fazenda em Nova Rocha, se deixa seduzir pelo poder do tio, o sedutor e às vezes ameaçador Múcio (Arnaldo Madeira). E pela promessa de que herdaria, no futuro, tudo aquilo.
Há aí uma engenharia narrativa interessante. Passa pelo que poderíamos chamar de emancipação emocional de um garoto. O trabalho da mãe, em contato com indígenas, lhe parece abstrato e até egoísta. Quando ele mesmo conhecer a realidade, terá outra visão sobre a mãe e seus valores. É um processo de crescimento e reavaliação de perspectivas.
Se passarmos para outro plano, mais geral, podemos imaginar o processo de amadurecimento do jovem Cícero como correspondendo a algo que falta à população brasileira em seu conjunto. Ou, pelo menos, a uma enorme parcela dessa população, que julga os recursos do planeta inesgotáveis, supõe que tudo pode ser destruído em nome do lucro e que povos originários não têm qualquer direito, são preguiçosos e devem ser mensurados em arrobas, como os quilombolas. Aqui, coloca-se em xeque não mais o contraste entre o Brasil moderno e o arcaico, mas o arcaísmo que se deseja passar por moderno.
Essas inquietações críticas não tomam a forma de teses. Deslizam pela narrativa, de modo natural e nada impositivo. Há uma posição do autor e esta é clara e visível. Mas nem por isso adota o tom professoral de “mensagem” ou de ordenação moral. Lê nas entrelinhas quem quiser. Ou puder. Caso contrário, fique apenas com uma história muito bem contada.
Mesmo porque Lírio é o que chamamos de “bicho de cinema”. Alguém capaz de articular em imagens toda a estrutura narrativa, dispensando muletas discursivas inúteis. O filme é todo cheio de ritmo (montagem de Vânia Debs) e muito bem fotografado (Gustavo Habda). Gostoso de ver.
Quem conhece o trabalho anterior do cineasta sabe do seu amor pelo cinema e conhece esse estilo cheio de bossa. Lírio é coautor, com Paulo Caldas, de Baile Perfumado (1997), um dos filmes decisivos da Retomada, vencedor do Festival de Brasília. Em direção solo, fez a ficção Sangue Azul (2014), rodada em Fernando de Noronha, e assina os notáveis documentários musicais Cartola (2007) e O Homem que Engarrafava Nuvens (sobre Humberto Teixeira, de 2009). Acqua Movie é continuação e contraponto de seu Árido Movie, de 2004.
Trabalho de cinéfilo, Acqua Movie é pontuado de homenagens e referências internas. Estrelado por uma paulistana (Negrini), traz em pequenos porém marcantes papéis atrizes emblemáticas do Nordeste, como Marcélia Cartaxo e Zezita Matos. Dois diretores da região fazem pontas. Uma, um pouquinho maior, com direito a fala, do diretor baiano Edgard Navarro, como dono de um boteco ribeirinho. Outra, apenas de passagem, com o cineasta pernambucano Cláudio Assis, como o governador do Estado presente ao enterro fake do ilustre filho da cidade de Rocha.
Acqua Movie fala de coisas sérias, mas não perde o humor, como era típico do ser brasileiro antes que as coisas desandassem e ficassem tão exasperadas por aqui. Numa passagem da história, há um diálogo hilário entre o coronel-prefeito e seu jagunço a propósito do Bolero, de Ravel. Puro nonsense, à la irmãos Marx. O cinema de Lírio é líquido e certo.
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