As palavras, como as pessoas, têm manias. Combinam. Brigam. Fazem exigências. Armam ciladas. Um verbo cheio de caprichos é acontecer. Elitista, ele tem poucos empregos. E quase nenhum amigo. Mas, por capricho do destino, os colunistas sociais o adotaram. A moda se espalhou como fogo morro acima ou água morro abaixo.
O pobre virou praga. Tudo acontece. Até pessoas: Phillipe Coutinho está acontecendo na Seleção. O casamento acontece na catedral. O show acontece às 22h. E por aí vai.
Violentado, o verbo vira a cara. Esperneia. E se vinga. Deixa mal quem abusa dele. Diz que o atrevido sofre de pobreza de vocabulário. Para não cair na boca do povo, só há uma saída. Empregá-lo na acepção de suceder de repente.
Acontecer dá sempre a ideia do inesperado, desconhecido: Caso acontecesse a explosão, muitas mortes poderiam ocorrer.
O verbinho de sangue azul sente-se muito bem com os pronomes indefinidos (tudo, nada, todos), demonstrativos (este, isto, esse, aquele) e o interrogativo que: Tudo acontece no feriado. Aquilo não aconteceu por acaso. O que aconteceu?
Xô, abuso
Não use acontecer no sentido de ser, haver, realizar-se, ocorrer, suceder, existir, verificar-se, dar-se, estar marcado para. Se você insistir, prepare-se. É briga certa. Melhor não entrar nessa. Busque saídas.
Uma delas é substituir o verbo: O show acontece (está marcado para) às 21h. O festival aconteceu (realizou-se) no ano passado. O crime não aconteceu (ocorreu). Acontecem (ocorrem) casos de prisão de inocentes durante as batidas policiais. O vestibular está previsto para acontecer em dezembro (previsto para dezembro). Não aconteceu (houve) o rigoroso inverno.
Outra é mudar a frase: A prisão aconteceu ontem. (A polícia prendeu o ladrão ontem.) A divulgação do resultado acontece logo mais. (O resultado será divulgado logo mais.) O início da prova aconteceu às 8h. (A prova iniciou-se às 8h.)