A cena se repete quase todos os dias. O deputado e o presidente de um dos partidos mais tradicionais da Venezuela fazem exercício pela manhã, às vezes batem uma bolinha no jardim, passam horas nas redes sociais e em contato com colaboradores e parceiros políticos através de aplicativos como WhatsApp e o russo Signal. A rotina imposta pela perseguição que levou à reclusão numa embaixada termina, geralmente, com algum filme ou séries de TV, entre elas a espanhola “A Casa de Papel”. Se for domingo, o capítulo semanal de “Game of Thrones” é imperdível.
Assim vivem, há mais de um ano e meio, o deputado Freddy Guevara, figura de peso do partido Vontade Popular (VP), o mesmo ao qual pertence o presidente da Assembleia Nacional (AN) Juan Guaidó, e Roberto Enríquez, presidente do Copei, na residência do embaixador chileno em Caracas. São os veteranos de um grupo que hoje já chega a pelo menos sete pessoas que se refugiaram em sedes diplomáticas na categoria de “hóspedes”, não reconhecida pelo direito internacional, mas usada pela oposição para driblar a repressão e aceita pelos países que receberam políticos — até agora Chile, Itália, Espanha, México e Argentina — que corriam risco de prisão. Em todos os casos, o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), controlado pelo governo Nicolás Maduro, suspendeu suas imunidades parlamentares e os acusou de delitos como traição à pátria e instigação ao ódio, entre outros.
Existem fortes versões sobre a presença de entre 15 e 25 militares, entre eles um general da Guarda Nacional Bolivariana (GNB), na Embaixada do Panamá. Seriam oficiais que aderiram à tentativa de levante militar liderada por Guaidó em 30 de abril passado, junto ao fundador e presidente do VP, Leopoldo López, que escapou da prisão domiciliar graças à adesão do então diretor do Serviço Bolivariano de Inteligência (Sebin) ao fracassado plano, Manuel Cristopher Figuera, que está foragido. Os militares tentaram, primeiro, esconder-se na embaixada brasileira, mas não conseguiram chegar até lá pela presença de agentes do Sebin. Já López agora está recluído na Embaixada da Espanha junto com a mulher, Lilian Tintori, e a filha mais nova do casal, enquanto os outros dois filhos estão fora do país.
Os hóspedes estão proibidos de falar com a imprensa sem autorização das chancelarias dos países que os acolheram e tentam evitar qualquer atividade que possa incomodar os anfitriões. Procurado pelo GLOBO, o deputado Américo De Grazia comentou apenas que “aqui (na embaixada da Itália) nos tratam muito bem”. Junto a ele está a deputada Marianella Magallanes. Nas últimas duas semanas, o TSJ derrubou a imunidade parlamentar de 13 deputados. Alguns dos perseguidos, entre eles Juan Andrés Mejía e Miguel Pizarro, continuam na clandestinidade. Outros pediram refúgio em embaixadas. Para alguns é uma nova realidade, que esperam que seja efêmera.
— Freddy passou a meditar com base em um livro de ensinamentos de Abraham Lincoln, lê muito e continua fazendo política porque estamos numa ditadura 2.0, as novas tecnologias ajudam — revelou uma fonte.
O deputado fala quase diariamente com Guaidó, López e outros dirigentes políticos. No plano original dos partidos opositores, era Guevara quem assumiria a Presidência da AN em janeiro de 2019, ano em que o VP devia ocupar o cargo, antes exercido por Henry Ramos Allup (em 2017, da Ação Democrática e agora também com a imunidade suspensa pelo TSJ) e Julio Borges (2018, do Primeiro Justiça e desde o ano passado no exílio). Mas o deputado optou por esconder-se numa embaixada para evitar a prisão, e a responsabilidade acabou ficando nas mãos de Guaidó.
Posição vulnerável
Hoje, quem tem mais visibilidade é o presidente da AN, proclamado “presidente encarregado” pelo Parlamento em 23 de janeiro passado e reconhecido como tal por mais de 50 países. Mas engana-se quem pensa que Guaidó é quem comanda a agenda opositora. Cada passo é debatido por pelo menos quatro pessoas: o presidente da AN, López, Guevara e Carlos Vecchio. Dos quatro, apenas Guaidó está livre e dentro da Venezuela. Guevara e López estão em embaixadas, e Vecchio, no exílio há mais de três anos, este ano tornou-se embaixador do “governo interino” nos EUA.
De dentro da embaixada, Guevara ajudou a planejar a operação de 30 de abril passado. Ele sabia das negociações com militares chavistas, com o presidente do TSJ, Maikel Moreno, e com o ministro da Defesa, general Vladimir Padrino López. Quem o visitou recentemente diz que o deputado continua otimista e insiste em que a saída da crise venezuelana será “uma ruptura dentro das Forças Armadas”.
Como hóspedes não reconhecidos pelo direito internacional, os opositores estão numa posição vulnerável. Fontes argentinas disseram que se “o governo chavista tocar a campainha e pedir Blanco, ele deverá ser entregue”. Já colaboradores de Guevara asseguraram que o Sebin já bateu na porta da embaixada chilena, e o governo do Chile negou-se a deixá-los entrar. Como tudo na Venezuela, a situação dos refugiados em sedes diplomáticas é confusa, contraditória e incerta. Enquanto isso, só resta militar através das redes sociais e passar o tempo fazendo política virtual e assistindo às mesmas séries a que qualquer pessoa assiste, do lado de fora.