O autor Leandro Gomes de Barros, Pombal-PB (1865-1918) e seu cordel
* * *
SEGUNDA PARTE
Eis o final formidável
Da história de Cancão,
O ente mais trapaceiro
Que houve nesta nação,
Pra ele tudo era fácil
Sem precisar ser ladrão.
Ficou no outro volume
O Alfredo e o Cancão,
Pedindo esmola ao povo
Para São Sebastião,
Mas o santo nem sequer
Viu a sombra dum tostão.
Ao cabo de quatro meses
O vigário já cismado,
Foi aonde Alfredo disse
Que tinha sido criado,
Lhe disseram que ali
Tempo algum tinha morado.
O padre ficou sem fala
Ao saber daquele horror,
Torceu-se como serpente
No mais tremendo furor,
Subiu o sangue a cabeça
Quase dar-lhe um estupor.
Enquanto isso Cancão
Junto com seu secretário,
Sorria bem satisfeito
Dizendo: que pare otário,
Desta vez nós ensinamos
O padre nosso ao vigário.
Um dia Cancão de Fogo
Consultou o companheiro,
Dizendo: somos felizes
Temos bastante dinheiro,
Já temos mais de três contos
Vamos ao Rio de Janeiro?
– Pode ser que aquele padre
Venha nos incomodar,
E nós estando distante
É fácil de se escapar,
Lá comeremos do bom
Pois temos para gastar.
Alfredo achou muito boa
A ideia de Cancão,
E disse vamos amigo
Sou ave de arribação,
Aonde não me servir
Mudemos de posição.
E seguiram para o Rio
Como Cancão calculou,
Depois de oito ou dez dias
A precatória chegou,
Nem notícia de Cancão
A autoridade achou.
Todos dois estavam em Crato
Cancão disse: companheiro,
Saímos de madrugada
Não se passa em Juazeiro,
E vamos diretamente
Para o Rio de Janeiro.
Passaram em Pernambuco
Entraram pela Bahia,
Dez, doze, quatorze léguas
Tiravam eles num dia,
Vendo a hora e o instante
Que uma onça os comia.
Entraram por matas virgens
No cipoal intrincado,
Um dormia sobre as folhas
Outro dormia trepado,
Comiam frutas da mata
Sempre andavam com cuidado.
Já no Estado do Rio
Um dia deram uma errada,
Dormiram numa fazenda
Saíram de madrugada,
Deixaram o caminho certo
Seguiram por uma estrada.
Cancão disse para Alfredo:
Ouça aguda, e vista alerta,
Para não sermos pegados
Juntinhos de boca aberta,
Aonde nós estivermos
Todo perigo é na certa.
E andaram todo dia
Não viram uma só morada,
Tinham saído do rancho
À uma da madrugada,
Água achavam que bebiam
Porém o que comer nada.
À noite faziam fogo
Um velava outro dormia,
A onça rosnava perto
Cancão de Fogo dizia:
Se está com frio, tem fogo
Se está só, tem companhia.
Às seis horas da manhã
Se levantaram e seguiram,
Eram três horas da tarde
Quando uma casa eles viram,
Cheiro duma feijoada
Chegando perto sentiram.
Cancão lambeu logo os beiços
Alfredo riu sem querer,
E disse para Cancão:
Agora vamos comer,
Uma empreitada dessas
Nós não podemos perder.
Era um lugar esquisito
Somente uma casa havia,
Uma crioula acolá
Com quatro filhos vivia,
Dali até doze léguas
Não tinha uma moradia.
A crioula cozinhava
Era fora do oitão,
Eles viram a panela
Que cozinhava o feijão,
A crioula pisava milho
Estava cozinhando um pão.
Cancão de Fogo chegou
Cumprimentou-a contente,
A negra cravou-lhe os olhos
Que parecia serpente,
O Cancão de Fogo disse:
– Eu pensava diferente!
O Cancão de Fogo disse:
– Não podemos viajar,
Vossa excelência me arrume
O que se possa jantar,
Temos dinheiro e pagamos
O que a senhora cobrar.
A negra olhou e disse:
– Já por ali vagabundo,
Gente branca para mim
É a pior deste mundo,
Você pode se danar
E morrer de olho fundo.
Cancão olhou para Alfredo
E ele compreendeu,
Aquele olhar de Cancão
Alfredo logo entendeu,
De novo olharam pra negra
Ela então se enfureceu.
A negra chamou um filho
Dizendo: João venha cá,
Vá a baixa do capim
E mude a cabra de lá,
E volte com muita pressa
Preciso de você já.
Disse a Cancão e ao outro:
– Vocês vão logo saindo,
Tem aqui um filho meu
Que mata gente sorrindo,
Eles saíram voltando
Por onde já tinham vindo.
O Cancão de Fogo disse:
Nós havemos de voltar,
Para não darmos motivo
A negra desconfiar,
Se ela vir por onde vamos
É fácil de nos achar.
Alfredo então perguntou-lhe
E como se faz agora?
As tripas estão roncando
A fome já me devora.
O que nós vamos fazer
Para a negra dar o fora?
Disse Cancão a Alfredo:
– Para poder conseguir,
Roubar aquela panela
É preciso você ir
Se esconder atrás da casa
Até a negra sair.
– Pra negra sair de lá
Meu plano já está formado,
Faça como estou dizendo
Pro golpe não ser errado,
Vou dizer-lhe mais ou menos
O que tenho planejado.
– Eu pego aquele moleque
E vou com ele à madeira,
A negra há de vir a mim
E você não faça asneira,
Pegue a panela com tudo
E saia em grande carreira.
– Antes da negra chegar
A minha carreira é feia,
Procure a estrada na frente
Me espere a légua e meia,
E procure logo o mato
Aonde se bote a ceia.
Alfredo entusiasmou-se
Com o plano de Cancão,
E disse: aperte esses ossos
És um homem de ação,
Penso até que no diabo
Tu já passaste a lição.
De onde estavam escondidos
Viram um moleque passar,
Alfredo correu depressa
Para poder atocaiar,
A panela que a negra
Tinha de abandonar.
Cancão pegou o moleque
Deitou-lhe o cipó no lombo,
A negra partiu danada
Com o bacamarte no ombro,
Cancão soltou o moleque
Disse: com chumbo não zombo.
A negra ainda atirou-lhe
Mas o tiro não pegou,
A negra uivava de ira
E de que forma ficou,
Depois que chegou em casa
E a panela não achou?
A negra soltava praga
Se rasgava e se mordia,
Puxava irada os cabelos
Babava sangue e cuspia,
Suas pragas reboavam
Só o eco respondia.
– Ah! cachorro da moléstia
Infeliz quem te gerou!
Ladrão, infeliz, infame
Satanás te batizou,
És o monstro mais nojento
Que nosso mundo criou!
Cancão chegou adiante
Voltou por dentro do mato,
Dizendo com seus botões:
– Quem morre de fome é pato,
Quem trabalha deus ajuda
O pão é muito barato.
– Eu não vou morrer de fome
Achando onde comer,
Nem ficar de goela seca
Tendo água pra beber,
Não vou andar compassado
Sendo preciso correr.
Cancão de Fogo saiu
Correndo sem dizer nada,
Ia por dentro do mato
Beirando sempre a estrada,
Onde encontrou o Alfredo
Já com a ceia botada.
Era feijão mulatinho
Com ossada de carneiro,
Cancão quando acabou disse:
– Já vi hotel barateiro,
Enche-se bem a barriga
E não se gasta dinheiro.
Os programas de Cancão
Tinha que se apreciar,
Porque o Cancão dizia:
Nada faz-me admirar,
Aquele que sorrir hoje
Amanhã tem que chorar.
– Bem só pode está o sol
Porque ninguém o alcança,
Haja no mundo o que houver
O sol lá nem se balança,
Enquanto a fortuna dorme
A desgraça não descansa.
– Pai e mãe é muito bom
Barriga cheia é melhor,
A moléstia é bem ruim
A morte é muito pior,
O poder de Deus é grande
Porém o mato é maior.
Disse o Cancão ao Alfredo
Assim se deve roubar,
Não é crime e nem pecado
Eu falei para comprar,
A negra não quis vender-me
Deu-me direito a pegar.
– Se ela fosse de acordo
Como o que eu desejava,
Não ficava sem comida
Eu ainda lhe pagava,
Não açoitava o moleque
E tudo na paz ficava.
Diz Alfredo: e eu calculo
O ódio que ficou nela,
Vê o moleque apanhado
Vê seu fogão sem panela,
Confesso que desmaiava
Só em ver a cara dela.
Depois de terem almoçado
Procuraram descansar,
Na manhã do outro dia
Trataram de caminhar,
Mesmo já faltava pouco
Não queriam demorar.
Afinal chegaram ao Rio
Quando estavam hospedados,
Na mesa estavam almoçando
Chegaram cinco soldados,
Oficiais de justiça
E dois subdelegados.
Alfredo olhou pra Cancão
Cancão também o olhou,
Como quem diz: caro amigo
A nossa hora soou,
É bom logo despedir-nos
Porque a cana chegou.
Ambos ficaram surpresos
Mas sem dar demonstração,
Continuaram comendo
Cada qual na impressão,
Se conviria fugir
Ou entregar-se a prisão.
– Quem é o Cancão de Fogo?
Um dos homens perguntou,
– Sou eu, respondeu Cancão:
– As suas ordens estou,
– Está preso: disse um
O Cancão não se alterou.
O oficial da justiça
Leu claramente o mandado,
Então o Cancão de Fogo
Disse ao subdelegado:
Dê-me licença almoçar
Que ficarei obrigado.
Toda gente do hotel
Prestou grande atenção,
Tudo parou o talher
Olhando para o Cancão,
Até as autoridades
Fizeram admiração.
Quando acabou de almoçar
Pediu a conta e pagou,
Tirou um conto de réis
Ao companheiro entregou,
Disse ao subdelegado
Agora querendo, eu vou.
Alfredo disse a Cancão:
É pena ter que deixa-lo,
Lamento da minha parte
Em não poder ajuda-lo,
Esta é uma das viagens
Que não posso acompanha-lo.
Então lhe disse Cancão:
Você faça o que aprouver,
E veja se pode ir
No lugar que eu estiver,
E demais até um dia
Quando o governo quiser.
Foi Cancão a chefatura
Para ser interrogado,
Disse o chefe de polícia:
– O senhor é viciado,
Como foi no Ceará
O roubo do delegado?
O Cancão de Fogo disse:
– Lá eu não roubei ninguém,
Fui a um mandado dele
Ele não deu-me um vintém,
Eu fiquei com a bengala
Que não sou pai de ninguém.
– Qualquer um faria o mesmo
Pra qualquer um cascudo,
Não era empregado dele
Nunca o vi tão carrancudo,
Ia trabalhar de graça
Sou algum pai de pançudo?
– E Cadê os cem mil réis
Lá do subdelegado?
– Vossa excelência crê nisso?
Isso é plano mal traçado,
Quem é que dar cem mil réis
A quem está denunciado?
– E a roupa do alferes
Que vossa mercê carregou?
– Foi para me defender
Foi isso que me salvou,
Ele, pra que me prendeu
Quando ninguém o mandou?
Disse o chefe de polícia:
– O leve para a marinha,
O Cancão de Fogo disse:
– Essa vontade eu já tinha,
A desgraça ia em viagem
Quando a fortuna já vinha.
– Tomara que me aceitem
Disse ele ao delegado,
A tempos que esperava
Esse momento chegado,
Espero que não descubram
Que eu sofro de puxado.
Então lhe disse a polícia:
– Sinto muito meu rapaz,
Essa história de puxado
É um plano bem sagaz,
Mas desculpe que lhe diga
Seus truques não pegam mais.
Mas o médico da marinha
Estava nesta ocasião,
O recusou por doente
Da laringe e do pulmão,
Achou ser uma injustiça
Não se proteger Cancão.
Às quatro horas da tarde
Cancão de Fogo chegou,
Dizendo: bendito seja
O que me denunciou,
Há males que trazem o bem
Como este agora chegou.
Depois de solto Cancão
Seguiu junto com Alfredo,
Enganado até gatuno
Como estradeiro rochedo
Deu quengada em fazendeiro
Pois Cancão fazia medo.
Enrolou o quanto quis
Depois chegou o momento
Desejando ter família
Arranjou um casamento,
Como ele estava doente
Quis fazer seu testamento.
O TESTAMENTO DE CANCÃO DE FOGO
Nesta história o leitor viu
Quem era Cancão de Fogo,
Era aquele que dizia:
A vida é mesmo que um jogo,
Pra morrer não falta tempo
Pra dar não precisa rogo.
– Roubar a quem tem demais
É forma de caridade,
Tirar dez de quem tem vinte
É forma de regularidade,
Quem não precisa de tudo
Basta ficar-lhe a metade.
– Da forma que vai ao mundo
Só poderá triunfar,
Aqueles que tem astúcia
E não se deixam enganar,
No mar da vida se afoga
Quem nunca soube nadar.
Foi o que Cancão de Fogo
Disse: na hora da morte,
A fortuna tem o peso
Que tem a tirana sorte,
A desgraça quando vem
Não respeita quem é forte.
Quando ele viu que morria
Chamou a mulher pra junto,
E disse: minha mulher
Não precisa chorar muito,
Não há tempo mais perdido
Do que chorar por defunto.
Disse um filho: eu vou chamar
Depressa um facultativo,
Ali tem um médico bom
Inteligente e ativo,
Disse Cancão: é asneira
Dar remédio a quem está vivo.
– Inda que ganhe desta vez
Doutra tenha que perder,
Porque é ordem celeste
Não podemos inverter,
É este o lema da terra
Nascer, crescer e morrer.
– Agora depois de eu morto
Você o manda chamar,
Pergunte quanto ele quer
Para me ressuscitar,
E diga logo: só pago
Se meu pai se levantar.
– Isto não! Disse-lhe o filho
Morrendo, aí se liquida,
Disse lhe Cancão: meu filho
Isso é coisa conhecida,
Aquele que expulsa morte
Não faz com que volte a vida.
A pessoa que tomar
Remédio pra não morrer,
É como quem salga carne
Depois de apodrecer,
Como rezar pra São Bento
Depois da cobra morder.
Chegou um frade e lhe disse:
– Venho ajudá-lo a morrer,
Tenho que agradecer,
Sente-se aí para um canto
Cuide logo em se torcer.
– Torcer como? Disse o frade
Disse Cancão: meu amigo,
O senhor não vem morrer
Para ir junto comigo?
O frade respondeu: votes
Um burro é quem vai contigo.
O Cancão de Fogo disse:
Se eu não tivesse prostrado,
Você tinha que sair
Cortês e civilizado,
E só entraria em casa
Depois que fosse chamado.
– Porque pra eu liquidar-me
Não preciso de vigia,
Embora depois de morto
Leve minha companhia,
Porque o defunto é cego
Só anda se tiver guia.
– Meu irmão, lhe disse o frade:
Eu vim aqui exortá-lo,
O inferno está aberto
E diabo a esperá-lo,
As chamas do purgatório
Estão prontas pra queimá-lo.
– Eu entrei na tua casa
Foi para te confessar,
Pois levas grande pecado
Para o leito tumular,
Vim salvar-te do diabo
Para ele não te levar.
Disse-lhe Cancão de Fogo:
Frade quero que me dê,
Explicações do inferno
Lhe peço a vossa mercê,
No inferno inda haverá
Um diabo como você?
– Eu não mandei-o chamar
Nós não temos amizade,
Eu nunca quis relação
Com cigano nem com frade,
Apenas tenho a dizer-lhe
Dane-se por caridade!
O frade saiu dali
Se benzendo amedrontado,
Dizendo: aquilo é o cão
Em um ente transformado,
Me valha o rosário bento
E o madeiro sagrado!
Cancão chamou a mulher
A quem tinha estimação,
Disse: não chore mulher
Por minha consumação,
Reze para encontrar outro
Marido como Cancão.
– Agora quero que chame
O juiz e o escrivão,
De alguns bens que me restam
Vou fazer uma doação,
Vou fazer publicamente
Minha recomendação.
Encontrou em casa o juiz
Junto com o tabelião,
Foram logo para o quarto
Onde estava o Cancão,
O juiz disse: aqui estou
A sua disposição.
Disse o juiz: o senhor
Tem uns bens para deixar?
– Sim senhor, disse Cancão
Eu não os posso levar,
Se alguém quiser ir comigo
Tem um bom frete a ganhar.
Disse o escrivão: não brinque
Repare que a morte é crua!
– Pode até ser cozinhada
Pode vir vestida ou nua,
Eu brinco aqui com a minha
Você lá respeite a sua.
O juiz lhe perguntou:
Você não tem dois sobrados,
Quer deixa-los pra alguém?
Disse Cancão: estão vexados!
Ou vocês são dois gatunos,
Ou são meus filhos bastardos.
Disse o juiz: ora essa
Entenda essa charada,
Gente em casa me esperando
E o senhor dando massada,
Eu fazendo falta lá
Devido a sua embrulhada!
Disse Cancão: meu amigo
Você assim não vai bem,
Vexames fazem fadigas
Difícil escapar alguém,
Padre, juiz, escrivão
Não fazem falta a ninguém.
Portanto não tenho pressa
Para lhe dar atenção,
Mas depois de tudo feito
E de nossa transação,
O senhor dirá consigo
Como é bondoso o Cancão!
Puxou um papel lacrado
De dentro do travesseiro,
Entregou para o juiz
E disse: veja primeiro,
Veja quem eu constituo
Como meu testamenteiro.
– Sessenta contos de réis
Que tenho depositados,
No Banco Nacional
Três casas e dois sobrados,
Estão fora do testamento
Serão inventariados.
O juiz bem satisfeito
Mostrando contentamento,
Sua voz ficou macia
Quase dar-lhe um passamento,
De ver seu nome gravado
Nas folhas do testamento.
“Ao Doutor João de Cerqueira
“escrivão dos testamentos,
“deixo em Belo Horizonte
“na praça dos Sacramentos,
“a casa número cem
“com todos compartimentos.
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“Ao Doutor João de Lira
“eu deixei em Canta-Galo,
“a casa número seis
“na rua de São Gonçalo,
“e o Sítio dos Ausentes
“na capital de São Paulo”
Disse o juiz: oh! senhor
É muita dignidade!
O senhor dar tanta coisa
Por sua livre vontade,
A mim e ao escrivão
Isso é muita bondade!
– Não doutor, disse Cancão
Meus filhos ficam aí,
Podem precisar um dia
Os senhores são daqui,
Disse o doutor: precisando
Já sabe eu moro ali.
Saíram numa palestra
O doutor e o escrivão,
Dizendo um para o outro
Foi sublime aquela ação,
Só nós dois livraríamos
Dum calote de Cancão.
Morreu o Cancão de Fogo
A mulher participou,
Poucos minutos depois
O juiz se apresentou,
Daí a uns dez minutos
O tabelião chegou.
Disse o juiz a mulher:
– Seu marido já morreu,
Com relação ao enterro
Deixe que quem faz sou eu,
Eu não quero que dependa
Um tostão do que é seu.
Fique com esta importância
Porque talvez necessite,
Mandou fazer catacumba
Fez quem fez todo convite,
Disse à mulher de Cancão
Com a senhora estou quite.
Depois de quarenta dias
Que Cancão tinha morrido,
Procedeu-se o inventário
Foi tudo bem dividido,
Filhos e mulher de Cancão
Cada qual foi bem servido.
O juiz depois pensou
Que havia precisão,
De exigir a escritura
Da família de Cancão,
Chegou lá não encontrou
Quem desse definição.
Mas depois disse consigo:
– Eu tenho provas legais,
Provo com o testamento
Não preciso nada mais,
Tratou de pegar o trem
Partiu pra Minas Gerais.
Saltou em Belo Horizonte
Foi ao hotel, almoçou,
Indagando aonde era
Uma pessoa ensinou,
A rua até era perto
Num instante ele chegou.
Quando o doutor viu o prédio
Sorriu-se aí de contente,
Examinou-o por fora
Achou-o muito excelente,
Tinha cem palmos de fundo
E setenta e dois de frente.
Então batendo na porta
Com pouco um homem chegou,
– Que deseja cavalheiro?
O homem interrogou,
– Sou o dono desse prédio
O homem aí o fitou.
– De qual prédio, meu senhor?
– deste aí que você mora;
– Isto é conto de vigário
É cedo, inda não é hora,
Aí bateu o postigo
Nem falou mais, foi embora.
O Doutor João de Cerqueira
Disse: momentos danados!
Ficou possesso de tudo
Porém minutos passados,
Foi ao cartório e mandou
Dar busca nos registrados.
Foi ao cartório e bateu
Saiu o tabelião,
O doutor disse: me consta
Que o senhor é escrivão,
E eu venho em seu cartório
Decidir uma questão.
E puxou ali do bolso
Os papéis do testamento,
E disse: colega veja
Se acha este apontamento,
Veja se não é legal
Todo este documento.
Encontrou a escritura
Da casa já referida,
Vendida pelo doutor
Félix Teixeira Guarida,
Comprada por uma órfã
Da viúva Margarida.
– Colega, como foi isso?
Pergunta o tabelião,
– Foi o conto dum vigário
Passado por um ladrão,
Disse o tabelião: esse
É igualmente a Cancão.
– Pois foi esse tal Cancão
Que mora no Rio de Janeiro,
Disse o tabelião:
– É esse grande estradeiro,
Quando ele era pequeno
Roubou este mundo inteiro.
– Aqui mesmo uma vez
Uma noite de São João,
Um ladrão veio roubá-lo
Ele roubou o ladrão,
E o gatuno por isso
Acabou-se na prisão.
– O ladrão tinha dois contos
Que de alguém tinha roubado,
E julgando que Cancão
Fosse um vendilhão de gado,
Foi ver se passava um quengo
Foi quem saiu quengado.
Disse o gatuno a Cancão:
– Patrão, eu tenho dinheiro,
Desejava fazer sérias
Transações com o cavalheiro,
Disse Cancão: é preciso
Que eu examine-o primeiro.
O ladrão ficou imóvel
Ficou bastante assombrado,
O Cancão de Fogo disse:
Ladrão, eu sou delegado,
Desde três horas da tarde
Que tenho sido avisado.
O ladrão ali ficou
Sem saber o que fizesse,
Pensou, aquele dinheiro
Se acaso Cancão quisesse,
Seria melhor que ele
Uma escapula desse.
– Meu moço disse o ladrão
Por vida dos nossos pais,
Por vida da vossa mãe
Me deixe aqui em paz.
Me solte que lhe prometo
Nunca hei de roubar mais.
Aí tirou o dinheiro
Disse: senhor delegado,
Pegue dois contos de réis
Aceite do seu criado,
Cancão pegou o dinheiro
E disse: vá com cuidado.
– Botou-lhe um cerco por fora
Adiante denunciou-o,
A patrulha foi atrás
Minutos depois pegou-o,
O gatuno conheceu
Que outro gatuno roubou-o.
O gatuno confessou
Quando a polícia o prendeu,
Procuraram o Cancão
Ele desapareceu,
O gatuno na cadeia
Deu-lhe bixiga e morreu.
– Um preto aqui fazendeiro
No tempo da escravidão,
Botou-o como empregado
E ele uma ocasião,
Foi a um comprador de escravos
E lá vendeu o patrão.
– Meteu o cobre no bolso
E ninguém o pode achar,
O preto viu-se apertado
Para se desembaraçar,
O que Cancão tinha feito
Deu trabalho desmanchar.
– Passou quengada enormes
Com tanta facilidade,
Então nas empresas dele
Tinha tal felicidade,
Que nunca pode cair
Em poder de autoridade.
– Eu não sei como o colega
Mora no Rio de Janeiro,
Não sabia que o Cancão
Era o maior estradeiro,
– Estradeiro não, ladrão
Um falsário verdadeiro!
Também o Dr. Cerqueira
Ficou encolerizado,
Passou em Belo Horizonte
Uma noite incomodado,
Pelo conto do vigário
Que Cancão tinha passado.
Dizia sou escrivão:
Nunca roubei um vintém,
Trinta quarenta mil réis
Não é roubo de ninguém,
O roubo que eu considero
É o que passa de cem!
– Eu fazer o enterro
Do diabo desse ladrão,
Gastei seiscentos mil réis
Sem a mínima precisão,
Dei sepultura ao gatuno
Como se fosse um barão!
– Raios te parta, danado
Deus há de te castigar!
O prejuízo que tive
No inferno hás de pagar!
Tenho fé na Providência
Que lá hás de amargar!
– Quase trezentos mil réis
Nessa viagem gastei,
Quando o diabo morreu
Quantas passadas eu dei,
Gastei meu tempo e dinheiro
Veja agora o que lucrei!
Também voltou apitando
Com a carranca mais feia,
Chegou em casa e deitou-se
Não quis mais saber da ceia,
E lá soube que o juiz
Já tinha ido a cadeia.
Porque foi em Canta-Galo
Ver a casa que herdou,
Na rua de São Gonçalo
A dita casa encontrou,
O morador era dono
Já que ele o intimou.
Como o dono não saiu
Botou a pulso pra fora,
O homem foi a polícia
Prenderam na mesma hora,
E botaram num asilo
Quase que não vai embora.
O escrivão logo cedo
Foi a casa de Cancão,
E disse para a mulher:
Seu marido era um ladrão,
Depois de morrer roubou-me
Eu sendo dele escrivão.
– A senhora viu a casa
Que ele pra mim deixou-a,
Sendo a casa de uma órfã
Que o diabo não comprou-a,
Disse a mulher de Cancão:
– Doutor ele não levou-a.
– O meu marido deixou
O prédio que o senhor diz,
Deixou vinte um Estados
Que tem o nosso país,
Ficou para quem quisesse
Ele nada disso quis.
O doutor corou e disse:
– Também garanto a senhora,
Se Deus botá-lo no céu
Pode esperar a hora,
De uma quengada dele
Que bota até Deus pra fora.
– Porque eu nunca achei
Ladrão fino igual aquele,
Desgraçado do defunto
Que sepultar-se com ele,
Eu acho Cancão capaz
De roubar os ossos dele.
– E a senhora também
Desculpe a minha ousadia,
Vossa mercê herdou dele
Costume e categoria,
Pois a mulher do filósofo
Aprende a filosofia.
A mulher disse doutor:
Meu marido não roubava,
Mas com algum escrivão
Ele se comunicava,
Sendo um pouco inteligente
Muitas coisas decorava.
– Ele chamou os senhores
Quando estava aqui prostrado,
Porque queria imitar
O Cristo crucificado,
Queria morrer também
Com um ladrão de cada lado?
– Como sabe as pessoas
Estando perto de morrer,
Às vezes sentem remorsos
E temem de se perder,
Dizem que no outro mundo
A pessoa há de sofrer.
– O doutor não viu o frade
Vir também por sua vez,
E não viu o meu marido
Que barulho logo fez?
Disse: eu chamei dois ladrões
Não é preciso de três.
Aí lhe disse o escrivão:
– Dê licença eu vou embora,
Sou obrigado a dizer
Que tenho medo da senhora,
Eu acho vossa excelência
Capaz de vender-me agora.
– Até logo, senhor doutor
Disse a mulher de Cancão,
Aqui fico às suas ordens
Se acaso houver precisão,
Tem uma criada aqui
À sua disposição.
– Dana-te cachorra doida!
Disse o escrivão correndo,
O diabo é quem vem mais cá
Ainda estando morrendo,
O quengo do teu marido
Parece que em ti estou vendo!
FIM