A TERNURA DO MAR
Vicente de Carvalho
No firmamento azul, cheio de estrelas de ouro
Ia boiando a Lua indiferente e fria.
De penhasco em penhasco e de estouro em estouro,
Em baixo, o mar dizia:
“Lua, só meu amor é fiel tempo em fora.
Muda o céu, que se alegra à madrugada, e pelas
Sombras do entardecer todo entristece, e chora
Marejado de estrelas;
Ora em pompas, a terra, ora desfeita e nua
— Como a folha que vai arrastada na brisa —
Aos caprichos do tempo inconstante flutua
Indecisa, indecisa.
Desfolha-se, encanece em musgos, aos rigores
Do céu mostra a nudez dos seus galhos mesquinhos,
A árvore que viçou toda folhas e flores,
Toda aromas e ninhos;
Cóleras de tufão, pompas de primavera,
Céu que em sombras se esvai, terra que se desnuda,
A tudo o tempo alcança, e a tudo o tempo altera...
— Só meu amor não muda!
Há mil anos que eu vivo a terra suprimindo:
Hei de romper-lhe a crosta e cavar-lhe as entranhas,
Dentro de vagalhões penhascos submergindo.
Submergindo montanhas.
Hei de alcançar-te um dia... Embalde nos separa
A largura da terra e o fraguedo dos montes.
Hei de chegar aí de onde vens nua e clara
Subindo os horizontes.
Um passo para ti cada dia entesouro,
Há de ter fim o espaço, e o meu amor caminha...
Dona do céu azul e das estrelas de ouro,
Um dia serás minha!
E serei teu escravo, à noite, pela calma
Rendilharei de espuma o teu berço de areias,
E há de embalar teu sono e acalentar tua alma
O canto das sereias.
Quando a aurora romper no céu despovoado,
Tesouros a teus pés estenderei, de rastros.
Ser amante do mar vale mais, sonho amado,
Que ser dona dos astros.
Deliciando-te o olhar, afagando-te a vista,
Todo me tingirei de mil cores cambiantes,
E abrir-se-á de meu seio a brancura imprevista
Das ondas arquejantes.
Levar-te-ei de onda em onda a vagar de ilha em ilha,
Tranquilas solidões, ermas como atalaias,
Onde o marulho canta e a salsugem polvilha
A alva nudez das praias.
Ao longe, de repente assomando e fugindo,
Alguma vela, ao sol, verás, alva de neve:
Teus olhos sonharão enlevados, seguindo
Seu voo claro e leve;
Sonharão, na delícia indefinida e vaga
De sentir-se levar sem destino, um momento,
Para além, para além, nos balanços da vaga,
Nos acasos do vento.
Far-te-ei ver o país, nunca visto, da sombra,
Onde cascos de naus arrombadas, a espaços
Dormem o último sono estendidos na alfombra
De algas e de sargaços.
Opulentos galeões, pelas junturas rotas,
Vertem ouro, troféus inúteis, vis monturos,
Que foram conquistar às praias mais remotas,
Pelos parcéis mais duros.
Flâmula ao vento, proa em rumo ao largo, velas
Desfraldadas, varando ermos desconhecidos,
Rudes ondas, tufões brutais, turvas procelas,
Sombra, fuzis, bramidos,
Todo o estranho pavor das águas afrontando,
Altivos como reis e leves como plumas,
Iam de golfo em golfo, em triunfo arrastando
Uma esteira de espumas.
Ei-los, carcaças vis d’onde o ouro em vão supura,
Esqueletos de heróis, dei-os em pasto à fome
Silenciosa e sutil da multidão obscura,
Dos moluscos sem nome.
Essa estranha região nunca vista, hás de vê-la,
Onde, numa bizarra exuberância, a flora
Rebenta pelo chão pérolas cor de estrela
E conchas cor de aurora;
Onde o humilde infusório aspira às maravilhas
Da glória, sonha o sol, e, dos grotões mais fundos
De meu seio, levanta a pouco e pouco as ilhas,
Arquipélagos, mundos.
Lua, eu sou a paixão, eu sou a vida. Eu te amo,
Paira, longe, no céu, desdenhosa rainha!
Que importa? O tempo é vasto, e tu, bem que reclamo!
Um dia serás minha!
Embalde nos afastai, embalde nos separa
A largura da terra e o fraguedo dos montes:
Hei de chegar aí de onde vens, nua e clara
Subindo os horizontes.”
Na quietação da noite apenas tumultua
Quebrada de onda em onda a voz brusca do mar
Corta o silêncio, agita o sossego, flutua,
E espalha-se no luar.