Caminhando para a roça
Voltamos ao ano de 1957. Povoado de Queimadas, município de Pacajus, naquela época distante de Fortaleza, a capital, por cerca de 40 minutos, em viagem de ônibus intermunicipal. Hoje, parte da RMF (Região Metropolitana de Fortaleza), e o tempo gasto, segundo informações, varia entre 15 e 20 minutos.
Para quem a viveu – como eu – aquela foi a mais terrível seca que assolou o sertão cearense e o Estado, como um todo. O mais forte teste de sobrevivência humana. Os animais que dependiam do pasto, poucos sobreviveram.
Camaleão virou bicho cinzento pela falta da clorofila encontrada nas folhas que lhe serve de alimento.
Já morando em Fortaleza, obrigatoriamente e por não ter outro destino, eu corria para “passar as férias escolares” na casa da Vovó. Era um martírio para o casal, que, por afinidade e hereditariedade, “socorria” os filhos e netos. Foi a partir daquele 1957, que os filhos e netos começaram a “socorrer” os avós. Era, entendíamos, a “paga” pelo carinho e tratamento recebido na primeira infância.
Eis que, num dia qualquer que a memória já não me permite lembrar, o galo cantou acordando as poucas galinhas (mais da metade havia sido consumida para debelar a fome) e os chocalhos dos bodes e cabras no chiqueiro, em sinfonia sem programação, acompanhavam os berros em ópera dos cabritos. Era o amanhecer anunciado para mais um dia de labuta e sofrimento espiritual.
Café com nada, pois a pouca farinha de mandioca teria outra serventia e a arrumação do “mantulão” (um bornal costurado à mão, com pedaços de pano de saco de açúcar) com o dicumê dos “trabaiadores” por todo aquele dia de mais enfrentamento.
Meio litro farinha seca (o litro, era um cubo de madeira, tão usado quanto o cumprimento de bom dia, boa tarde e boa noite), e a metade de uma rapadura. A sobremesa era água gelada colocada numa quartinha exposta na janela para esfriar durante a noite. Nada mais que isso.
Rapadura que serviu de principal alimento durante anos
Debaixo de um sol causticante, o trabalhador, entretido, não tem preocupação com “o passar das horas”. Tem mais o que fazer e quer terminar aquela tarefa. Mas, o corpo tem suas manifestações repentinas.
As tripas “roncam” e, diferentemente do cantar do galo e do chocalho dos bodes e cabras no chiqueiro, despertado pelo barulho das tripas, Vovô retira o chapéu da cabeça, limpa o suor com a manga da blusa e espia para o sol do meio-dia, vaticinando:
– Valei-me Nossa Senhora, já é quaje meio-dia. Vamos forrar o estambo Zé!
Procuramos uma sombra que quase não existia por conta da seca, e espalhamos as folhas e os garranchos, parecendo que queríamos “pôr a mesa” com o dicumê.
Vovô abre o bornal, e dele tira uma rapadura, e…… farinha! Nada mais que isso.
Farinha seca de mandioca
Vovô pega a faca peixeira e corta a rapadura em pedaços. Um pedaço, dois pedaços, três pedaços, e a gente vai comendo. Uma mancheia de farinha seca, outra mancheia e, agora um e até três goles da água da cabaça. Fim do almoço. Agora um descanso de mais ou menos trinta minutos.
Silêncio profundo. O silêncio é tão grande, que dá para ouvir os gravetos das árvores quebrando e os teiús correndo sobre as folhas secas. Coisas da seca no sertão.
Cabaça com água e arrolhada com sabugo de milho
Março chegou. Trazido pela força das orações dos sertanejos. Veio o dia consagrado a São José. Nada de chuva. O açude mais próximo distava umas cinco ou seis léguas e os necessitados, montados em jumentos, transportavam o líquido e alguns até faziam daquela necessidade o seu ganha pão. É o sertão nordestino. É a seca braba que dizima tudo, inclusive vidas humanas, formando um cenário diferente com carcaças de animais.
Na volta para casa, aquele barulho conhecido dos chocalhos dos bodes e cabras. É o sertão. É a seca que vitima tantos. Mas, o homem nordestino jamais perde a Fé.