21 de maio de 2019 | 03h00
Depois de ter distribuído pelo WhatsApp um texto segundo o qual o País é “ingovernável” sem os “conchavos” políticos e de dizer que conta “com a sociedade” para “juntos revertermos essa situação”, o presidente Jair Bolsonaro voltou a fazer apelos diretos ao “povo” contra o Congresso – em relação ao qual nutre indisfarçável desprezo, embora tenha sido obscuro parlamentar durante 28 anos.
Ao cabo de cinco meses de governo, em que todos os indicadores sociais e econômicos apresentaram sensível deterioração, fruto de sua inação administrativa e da descrença generalizada e cada vez maior na sua capacidade de governar, Bolsonaro começa a flertar com a “ruptura institucional”, expressão que apareceu no texto que o presidente chancelou ao distribuí-lo na sexta-feira passada.
Ao comentar o texto de teor golpista que passou adiante pelo WhatsApp, Bolsonaro disse que “esse pessoal que divulga isso faz parte do povo e nós temos que ser fiéis a ele”. E completou: “Quem tem que ser forte, dar o norte, é o povo”. Ora, o mesmo povo que o elegeu para se ver livre das proezas lulopetistas elegeu 81 senadores e 513 deputados, além de legisladores e governantes estaduais.
Depois, divulgou em seu perfil no Facebook o vídeo de um pastor congolês que diz que Bolsonaro “foi escolhido por Deus” para comandar o Brasil. “Pastor francês (sic) expõe sua visão sobre o futuro do Brasil”, explicou o presidente, que completou: “Não existe teoria da conspiração, existe uma mudança de paradigma na política. Quem deve ditar os rumos do país é o povo! Assim são as democracias”. O ilustre salvador talvez conheça a história do Congo, porque a do Brasil ele definitivamente ignora.
No vídeo que Bolsonaro endossou, o tal pastor, um certo Steve Kunda, diz que, “na história da Bíblia, houve políticos que foram estabelecidos por Deus”, como “o imperador persa Ciro”, e que “o senhor Jair Bolsonaro é o Ciro do Brasil, você querendo ou não”. E o pastor lança um apelo aos brasileiros: “Não passe seu tempo criticando. Juntem as forças e sustentem esse homem. Orem por ele, encorajem-no, não façam oposição”.
Em condições normais, tal exegese de botequim seria tratada como blague, mas não vivemos tempos normais – pois é o próprio presidente que, ao levar tais cretinices a sério, parece de fato considerar sua eleição como parte de uma “profecia”. O resumo dessa mixórdia mística é que Bolsonaro acredita ser um instrumento de Deus e o porta-voz do “povo” – nada menos. Portanto, quem quer que se oponha a Bolsonaro – puxa! – não passa de um sacrílego.
Com 13 milhões de desempregados, estagnação econômica e perspectivas pouco animadoras em relação às reformas, tudo o que o País não precisa é de um presidente que devaneia sobre seu papel institucional e político e que, em razão disso, estimula seu entorno e a militância bolsonarista – a que Bolsonaro dá o nome de “povo” – a alimentar expectativas sobre soluções antidemocráticas, como um atalho para a realização de “profecias”.
O reiterado apelo de Bolsonaro ao “povo” para fazer valer uma suposta “vontade de Deus” envenena a democracia e colabora para a ampliação da cisão social entre os brasileiros e destes com a política. A esta altura, parece cada vez mais claro que Bolsonaro não estava para brincadeira quando disse, em março, que não chegou ao governo para “construir coisas para nosso povo”, e sim para “desconstruir muita coisa”. Espera-se que a democracia brasileira e suas instituições resistam a essa razia.