A pomba branca da Paz
Segundo dados oficiais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), este país continental “tinha”, de acordo com o mais recente censo demográfico, pouco mais de 213 milhões, que poderia ser acrescentado com mais de um milhão de não-registrados oficialmente – e, isso, já descontando, também, as mais de 600 mil vítimas recentes creditadas à C-19.
Produzir alimentos para essa gente toda, convenhamos, é tarefa hercúlea.
Isso, por si só já seria difícil, não fosse também a diferença de clima e precipitação pluviométrica nas diferentes regiões. Lugares que o excesso de chuvas castiga, e lugares onde não cai um único pingo. E, nesses lugares onde não cai um único pingo, a vida com base na agricultura ou na pecuária é um castigo. A chuva e a água são dádivas divinas.
Quem nasceu, cresceu e ainda vive onde a chuva molha mais que o que deveria, não faz a mínima ideia do sofrimento de quem nasce, vive e não consegue sair de onde não cai um único pingo.
Os sortudos e abençoados das regiões ricas em tudo, ainda por cima aderem à idiotice do “politicamente correto” e tudo que lhes empurram pelo ouvido como se um cotonete fosse, acreditam e defendem. Nunca passaram um único dia sem três ou quatro banhos, imagine sem a disponibilidade de uma caneca d´água para beber.
“Acauã, acauã vive cantando
Durante o tempo do verão
No silêncio das tardes agourando
Chamando a seca pro sertão
Chamando a seca pro sertão
Acauã”
Carregado especialmente de uma emoção social e humana, o reconhecimento de quem um dia viveu ou foi obrigado a enfrentar os dissabores do dia a dia regional do trecho por onde hoje semeiam vida as águas da transposição do Rio São Francisco. Não há nenhuma conotação política nesta minha afirmação – reconheço e agradeço.
Dito isso, vamos ao factual.
Viriato Souza, era um cearense nascido em Orós, mais propriamente em Guassussê, distrito municipal, onde a população que ali sofria era de aproximadamente 2.880 habitantes. Situado a cerca de 18 km da sede municipal, o distrito oferecia naqueles tempos idos dos anos 50 e 60, entre outras opções de lazer, a oportunidade de um delicioso banho – nos dias atuais – no pequeno riacho que corta o distrito conhecido como “Balneário do Trapiá”. Antes, o que é hoje o Trapiá, não passava de uma lagoa de chão rachado.
Durante a seca braba, de matar de fome, a preocupação maior era com a alimentação. E, procurar o que comer, fosse o que fosse, era a labuta diária dos sofredores.
Viriato fazia isso. Caçava e matava “avuantes”, que outros conhecem como “ave de arribação” (arribaçã, para os matutos). A ave era comum naquelas paragens, por conta da escassez de alimento – também para elas. Voavam em magotes, daí ser conhecida por ali, também, como “pomba de bando”.
É uma pomba. Um pouco maior que uma rolinha e menor que um pombo comum.
– “Quem quiser matar mais de um cento de avuantes, basta atirar e acertar na primeira que vai avuando na frente, pois as outras vão acompanhar” – dizer do matuto cearense.
“Avuante” (pomba de bando ou arribaçã)
“Acauã,
Teu canto é penoso e faz medo
Te cala acauã,
Que é pra chuva voltar cedo
Que é pra chuva voltar cedo
Toda noite no sertão
Canta o João Corta-Pau
A coruja, mãe da lua
A peitica e o bacurau.”
Como dito acima, sem chuva que fizesse nascer e crescer o que fora semeado (na verdade, jogado fora) no roçado, Viriato não tinha outro trabalho, a não ser caçar.
Diferente do que teorizam alguns que nunca passaram fome, “caçar para comer e dar de comer aos dependentes, não é maldade”. É a mais digna forma de sobrevivência.
Viriato caçava camaleão (iguana), mucura, teiú e até cobra se aparecesse. Diferentemente dos sulistas que vão aos restaurantes e saboreiam salmão, truta, atum, lagosta e camarão ou até o “scargot”, Viriato andava em todos os córregos à procura de aruás.
“Na alegria do inverno
Canta sapo, gia e rã
Mas na tristeza da seca
Só se ouve acauã
Só se ouve acauã
Acauã, Acauã…”
Faça por onde, e Deus certamente te ajudará. Dizem os antigos mais antigos que eu. Viriato encontrou numa moita de mofumbo, um ninho de galinha d´angola com mais de duzentos ovos.
– Não são meus! Não vou mexer.
Mais à frente, Viriato encontrou algumas galinhas mariscando o chão na tentativa de descobrir alimento para os pintos. Viriato resolveu que também não deveria se apossar do que não lhe pertencia. Continuou andando. Foi quando levantou a vista e viu a casa onde moravam Ambrósio e Quitéria.
Antes mesmo de se anunciar, Viriato observou que, distante da casa havia um pombal. Os proprietários mantinham aquele pombal um pouco distante da casa, para evitar a proliferação de doenças que os pombos transmitem.
Pombo Correio
Quando pensava em desistir de fazer uma bobagem, Viriato lembrou o que deixara em casa para a mulher Cícera e os oito filhos comerem, o mais novo com apenas 10 meses de idade. Naquele momento a fome falou mais alto. Falou tão alto que deu para escutar o eco, ainda que naquelas imediações não existissem “cânions”. Só fome e seca.
Com o saco que carregava para servir de matulão e carregar alguma caça abatida, Viriato cobriu a passagem de várias casas de pombos. Dali foi pegando e torcendo o pescoço de cada um – eram todos pombos correios, que Ambrósio criava para vender por alto preço.
Entre os que foram pegos, havia até um beleza de pomba branca, que Ambrósio recebera encomenda de Orós para os festejos do Divino Espírito Santo.
No caminho de volta à casa, Viriato procurou uma boa sombra de catingueira, sentou e “depenou” os oito pombos, para dificultar que Cícera percebesse.
E todos foram devidamente assados e comidos, como se avuantes fossem.
Matar algo para matar a fome