Poeta Antonio Francisco, um talentoso potiguar de Mossoró, é também xilógrafo e compositor
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A OITAVA MARAVILHA – UM CORDEL DE ANTONIO FRANCISCO
Como na antiga Grécia,
O Nordeste também tinha
Os seus deuses mitológicos –
Deus da chuva, deus da vinha,
Do verão, da primavera,
Mas, o mais famoso era
Cafuné – deus da morrinha.
Filho de uma caipora
Com uma alma de gato.
Ombros largos, braços longos,
Perna curta, do pé chato.
Vivia pela caatinga
Mascando e bebendo pinga
E caçando peba no mato.
Mas, quando um dia, ele soube
Que Hércules tinha apartado
Toda a África da Europa,
Disse meio enciumado:
– “Eu vou mostrar a Teseu,
A Hércules e a prometeu
O gás que eu tenho guardado.”
Botou três quilos de fumo
No bolso do seu calção,
Lavou os pés num barreiro
E disse olhando o verão:
– “Eu vou pra Minas Gerais
Mostrar o que um deus faz
Com uma enxada na mão.”
Andou em Minas Gerais –
Norte, Sul, Leste e Oeste.
Furou aqui e ali
E disse depois do teste:
– “Aqui tem água pra dar,
Para destruir e matar
A sede do meu Nordeste.
Se eu conseguir levar
Daqui para o Maranhão
Um rio de água doce,
Rasgando a cara do chão
Sem deixar nenhuma ilha
Vai ser uma maravilha
Para o povo do sertão.”
Foi na serra da Canastra,
Se abaixou, deu um risco,
Depois fez uma enxada
Da pedra de um corisco,
Tomou uma pra esquentar
E começou a cavar
O leito do São Francisco.
Na primeira enxadada
A terra toda tremeu,
A lua mudou de canto,
O Sol com medo desceu,
O nhambu perdeu um dedo,
O tetéu depois do medo
Nunca mais adormeceu.
O pavão perdeu a voz,
O macaco ficou pabo,
O papagaio falou,
O guaxinim ficou brabo,
A preguiça deu o prego,
O morcego ficou cego
E o preá perdeu o rabo.
Voou uma pedra enorme
Na direção da Polônia,
Pegou na Torre de Pizza,
Desviou pra Macedônia,
Rodando como um pneu,
Só o vento suspendeu
O Jardim da Babilônia.
Passou por cima do Ártico,
Deixou a água mais fria,
A noite ficou mais longa
Reduziu a luz do dia,
Da África passou de lado
Deixando o facho empenado
Do Farol de Alexandria.
Bateu no Túmulo de Máusolo,
Rodou e pegou efeito…
Entre o Japão e a China,
Passou tão veloz de um jeito
Que, até hoje, os japoneses
E nunca mais os chineses
Abriram os olhos direito.
Passou por cima de Roma
Deixando o seu povo aflito.
Caiu no norte da África,
Num lugar muito esquisito.
Deram vários riscos nela,
Depois fizeram com ela
As Pirâmides do Egito.
Era a enxada subindo,
Descendo e cortando o chão.
Foi, não foi, subia um pau
Rodando como um pião.
Tinha desses que passava,
Todo planeta e chegava
Num minuto no Japão.
Voou um pé de jurema
Por cima da Argentina,
Passou pelo oriente
Arregaçando a campina.
Como se fosse um tufão
Quase que bota no chão
Toda a Muralha da China.
Pelo colosso de Rodes
Passou por cima tremendo,
Atravessou a Turquia
Soprando o chão e varrendo,
Só o Templo de Diana
Passou mais de uma semana
Se balançando e gemendo.
Passou por Júpiter e Olímpio
Rodando a sua coroa.
Atravessou Hong Kong,
Formando rio e lagoa,
Ilha, baía e canal,
Foi cair em Portugal
A cem léguas de Lisboa.
E ficou ali no mato,
Rodando como um funil.
Quando parou de rodar
Veio alguém muito sutil,
Fez dela uma caravela,
Botou Cabral dentro dela
E mandou para o Brasil.
Logo correu a notícia
Circulando a região
Que tinha um deus nordestino
Com uma enxada na mão
Com fé, amor e carinho,
Cavando um rio sozinho
De Minas pro Maranhão.
Deus da vinha quando soube,
Disse logo: – “É Cafuné.
Tanto cavava com a mão,
Como escavacava com o pé
E é o único deus de bem
Por aqui que ainda tem
No peito um pouca de fé.”
Deus da chuva comentava:
– “Cafuné está maluco!
Cavar um rio sozinho,
Vai morrer velho e caduco.
Se a enxada não quebrar
E a sorte lhe ajudar
Talvez chegue ao Pernambuco.”
Deus da seca gritou alto:
– “Perto dali eu não chego.
Se eu ajudar a cavar,
Vou perder o meu emprego.
E além disso, eu sou sem fé…
Que se vire Cafuné
Pra dar uma de deus grego.”
Era Cafuné na frente
Com a enxada na mão,
Os braços feito um moinho
Rodando e cavando o chão
E a água atrás correndo
Como uma cobra lambendo
O fundo do seu calção.
Com três horas de trabalho
Cafuné parou pra ver
O rasgo que tinha feito
E disse: – “Se eu não morrer
E manter esse rojão,
Vou chegar no Maranhão
Antes do anoitecer.”
E continuou cavando
Até o final do dia.
Parou, limpou a enxada,
Comeu uma melancia,
Foi dormir desanimado,
Pois só tinha atravessado
A metade da Bahia.
Acordou todo quebrado,
Com pouca disposição.
Passou o dia inteirinho
Com a enxada na mão,
Mas, quando olhou para trás,
Não tinha cavado mais
Do que dez léguas de chão.
E continuou cavando
Doze anos sem parar.
Mas, cansado como estava,
Cavava tão devagar
Que às vezes passava um mês,
Quatro, cinco e até seis
Cavando o mesmo lugar.
Caía e se levantava,
Se levantava e caía.
A enxada muito cega,
E ele cego de guia.
Cansado e manco dum pé,
Até que enfim Cafuné
Atravessou a Bahia.
Quarenta anos depois,
Cansado, velho e caduco,
Se arrastando feito cobra,
Cavando como um maluco,
Não chegou ao Maranhão,
Morreu cavando com a mão
O sertão de Pernambuco.
Morreu sem ter conseguido
Fazer a transposição
De trazer o São Francisco
De Minas pro Maranhão,
Mas aqueceu nossa fé…
Obrigado, Cafuné!
Valeu a sua intenção.
Agora, pergunto eu:
Se vamos ficar em pé
Contando estrelas no céu
E deixando a nossa fé
E a vontade esfriar
Ou vamos continuar
A obra de Cafuné?
Vamos salvar o Nordeste,
Irrigar milha por milha,
Afogar no São Francisco
A fome que nos humilha.
Vamos banir essa peste,
Concluindo no Nordeste
A oitava maravilha.