A NOIVA DO DONATO
Humberto de Campos
- Foi um caso espantoso, único, inacreditável, Sr, conselheiro, esse de que fui testemunha, e que eu lhe conto, embora o senhor já o tenha lido no "D. Quixote".
E puxando o relógio, para ver se ainda havia tempo, o ilustre advogado santista começou, em estilo rápido, vivaz, nervoso, pictural, a referir-me a horrível história, sob o alpendre da Central, à hora, quase, do noturno de luxo:
- "Era no sítio do "Pau d'Alho", em Vila Bela, onde se haviam casado, naquele dia, o Donato e a Rosinha. Um despotismo de gente, como o senhor não imagina. A Vila, as cercanias, a redondeza toda, no "Pau d'Alho". Até veio gente de Ubatuba! Calcule!"
Uma olhadela ao relógio, e continuou, telegráfico:
"Violeiro: o Chico Messias. Dança-se "baile" no terreiro. Chico Messias tira da toeira* uma coriza lacrimosa, de valsa sem motivo."
E acrescentou, num parênteses:
"O caiçara diverte-se sem sorrir. Diverte-se por obrigação. Sua alegria é uma hipótese triste, socavada de ancilóstomos*."
E reatou, descritivo, unindo o gesto à palavra, dando voltas no meio do alpendre:
- "Damas e cavalheiros vão e vem, e tornam a ir, e tornam a vir, e dão-se as mãos, e balanceiam, e remoinham, e desnalgam-se*, numa choréa que tem passos de lanceiros, atitudes de Pedowa e desengonços tupinambás."
Outra interrupção, para um surto histórico:
"D. Pedro Fernandes Sardinha, quando foi do seu caso com os Aimorés, devia ter assistido a paulovices muito semelhantes."
E tornando, com uma soberba vivacidade de descrição:
"Ela, a noiva, dentro do vestidinho clássico, de manzuk branco, o filó pendente da mão. Tem olhos baixos e constrangidos de protagonista. Ele, traz a fatiota* de elasticotine, que tem reflexos envernizados e o suplemento da gravata escura, de tricô frouxo, escorrida pelo "adão"*.
E descreve a festa:
- "Ambos assistem sem apetite o apetite dos convidados. Há um mastigo odioso de bocados grandes, e o cair do bocado, goela abaixo, com um rumor de rã assustada em pântano adormecido. Comem! E comem!
Nova consulta ao relógio, e a descrição despenhou-se, para ganhar tempo:
"Hora da sobremesa. O Inocêncio, professor publico, vai falar! Recuo de cadeiras; engolir de últimos bocados; bigodes engordurados que se chupam. - Atenção, senhores! O Inocêncio vai falar."
Como se estivesse na festa, eu próprio me empertigo, e o ilustre viajante repete, assombroso:
"Vai falar o Inocêncio. E começa tan, tan, tan, e meus senhores, e o himeneu, e a família, e o tugúrio*, e mais isto, e mais aquilo e... e.... e o Inocêncio perde o fio, e embrulha, enrola, engole, mastiga, encaroça, embatuca. Estende-se um vágado* coletivo, pesado como um paralelepípedo. O Inocêncio, que empunha o copo, guina a boreste gorgolões de cerveja."
Noutro parênteses, o meu amigo sentencia, outra vez:
- "Há situações que obstruem a vida como caroços de jabuticaba!"
E engatando, de novo, com os olhos no trem, desabou, história abaixo:
- "Coitado do Inocêncio! Felizmente, o Dito Pintassilgo, que lhe estava ao lado, encontrou uma saída. Levanta-se, sorri, braceja, e, alto e sonoramente:
- "Viva a noiva!
"O viva desonerou aquele constrangimento, como um laxativo. Um alívio geral.
- "Viva!...
"E o Dito prosseguiu, vitorioso:
- "Viva os óio da noiva!
- "Vivôooo!
- "Viva os dente biturado da noiva!
- "Viva!
- "Viva o pescoço da noiva!
- "Viva!
- "Viva os peito da noiva!
- "Viiiiva!
Tomando fôlego, o narrador continuou, elétrico:
- "Os vivas desciam, conselheiro, assustadoramente, noiva abaixo. O noivo, o Donato, piscou, por três vezes, os olhos, apreensivo. De repente, remexe-se, mergulha a mão pela cinta, toma da garrucha trochada*, coloca-a à sua frente, na mesa, e, com aquele sorriso seu, desdentado, e a vozinha gutural, oitava acima:
- "Oie, seus convidado: não é por nada: mas eu queria apreveni, que os "viva" que passá do imbigo da noiva pra baixo... eu sapeco!"
Último apito. Um pulo do meu amigo, um barulho de ferragens, um resfolegar fatigado de máquinas. E o trem desapareceu.