26 de setembro de 2020 | 05h00
O jovem repórter Robert Lipsyte, do New York Times, foi destacado para ir ao Miami Beach Convention Hall, em 25 de fevereiro de 1964, para cobrir a luta entre o campeão dos pesos pesados, Sonny Liston, e o desafiante Cassius Marcellus Clay. Logo que chegou a Miami, o jornalista recebeu um telefonema de seu editor, que o aconselhou a decorar o trajeto do ginásio até o hospital mais próximo, pois a vitória de Liston deveria ser rápida e massacrante. A bolsa de apostas confirmava a previsão da imprensa: o campeão era o favorito na proporção de 7 por 1.
O fortíssimo Liston era o sucessor do lendário Joe Louis, campeão de 1937 a 1949. Um verdadeiro peso pesado. Sanguinário, violento e dono de golpes avassaladores de todos os tipos. E ele sabia usar o medo que passava para as pessoas: "Minha mão esquerda vai descer tão fundo na garganta dele (Clay) que precisarei de uma semana para tirá-la de volta."
O médico Ferdie Pacheco, que esteve ao lado de Clay em suas lutas com Joe Frazier e George Foreman, admitiu que nunca havia visto Clay tão nervoso para uma luta. Para combater esta ansiedade, o falastrão lutador de Louisville resolveu tentar mexer com os brios do adversário.
Clay chegou a fazer um poema para o "urso feio" e foi até o aeroporto esperar seu adversário para xingá-lo de idiota, bobo e prever um nocaute no oitavo assalto. Os jornalistas consideravam apenas bravatas, mas apreciavam Clay por ser bonito, inteligente e capaz de fornecer uma bela matéria todos os dias.
Na pesagem, Ali desafiou tanto Liston que a Comissão Atlética da Flórida chegou a cogitar que o desafiante estaria sofrendo um surto psicótico. Sua pressão foi a 20 por 10 e os batimentos cardíacos atingiram 120 por minuto.
Dias antes da luta, os organizadores promoveram a visita dos Beatles em uma das sessões de treinos de Clay, em Miami. O início do encontro foi tenso. "Acho que poderíamos fazer uma turnê e ficarmos ricos. Você não é tão estúpido", disse o boxeador para John Lennon, que deu o contragolpe. "Mas você é." No final, fotos foram registradas com os cantores recebendo "socos" e aplicando "golpes" no pugilista em clima amistoso.
A certeza do público na vitória de Liston, a tempestade que caiu em Miami naquele dia e a ameaça de atentado ao ativista Malcom X, amigo de Ali e presente ao Miami Beach Convention Hall, fez com que pouco mais de 10% dos 15 mil ingressos fossem vendidos. Liston tinha bolsa de US$ 1,3 milhão, enquanto Clay ficaria com US$ 630 mil.
Desde o início, Clay surpreendeu a todos, ao "bailar como uma borboleta e picar como uma abelha", característica que iria marcar sua brilhante carreira. "Acho que tivemos uns dos melhores rounds iniciais da história", disse Joe Louis, sentado nas primeiras fileiras e comentando para a transmissão em circuito fechado.
Desnorteado, Liston teria usado, com a ajuda de seus técnicos, um produto em suas luvas que prejudicou a visão de Clay do terceiro ao quinto assalto, algo semelhante com que ele fora acusado nos duelos com Eddie Machen e Cleveland Williams. Recuperado do problema momentâneo, o desafiante aplicou uma verdadeira surra no campeão, que desistiu de voltar para o sétimo assalto. "Mas que diabo é isso?", esbravejou Rocky Marciano, campeão dos pesos pesados de 1952 a 1955, único a abandonar os ringues invicto após 49 lutas, revoltado, a poucos metros do ringue, com o fato de o campeão abandonar a disputa.
Clay dançou, pulou, gritou. "Eu choquei o mundo. Sou o melhor de todos", disse ainda em cima do ringue. Na entrevista coletiva, mais calmo afirmou que lutaria só até ganhar um bom dinheiro e que seu irmão mais novo, Rudy,, não precisaria mais calçar as luvas. Dois dias depois, Clay anunciou sua conversão ao islamismo e a adoção do nome Muhammad Ali. Lutou até 1981 e mesmo diagnosticado com a doença de Parkinson seguiu como ativista das causas contra o racismo e igualdade social até sua morte em 2016, às 74 anos.