A MÚSICA DO MORTO
Catulo da Paisxão Cearense
Eu vinha do sertão e era o meu guia
um caboclo de gestos altaneiros,
que, segundo ele próprio me dizia,
era a flor dos mais célebres gaiteiros.
Ao passo dos cavalos madraceiros,
a história passional me referia
do seu mestre de canto e de harmonia,
que foi sempre o primeiro entre os primeiros.
O gaiteiro, o seu mestre bem amado,
tinha sido atrozmente desprezado
pela mulher mais linda do sertão.
Fazia muito tempo que morrera,
e a gaita divinal emudecera,
como emudece a voz de um coração.
II
Era uma noite astral de primavera!
Noite aromal, de rústica pureza,
e tão cheia de luz que se dissera
que era a Festa Natal da Natureza.
A serra em que eu nasci, lá, bem distante,
se sumia tão meiga e tão veloz!
No caminhar, pausado mas constante,
nós fugíamos dela e ela, de nós!
Ao sol do meu sertão, que a terra incrua,
já tinha dito adeus, no fim do dia!
Mas o sol, que se foi, deixou-me a lua,
que é o sol argênteo da Melancolia.
O caboclo falava do seu mestre,
sem guardar um momento, um só, de tréguas,
e entre o verdor do matagal silvestre
nós já tinhamos feito bem seis léguas.
De repente, avistei à luz nevada
do clarão do luar, suave e etéreo,
os braços de uma cruz, meio inclinada,
como o emblema feral d’um cemiterio.
Saltando para o chão, rapidamente,
com a mão esquerda as rédeas segurando,
com a direita, n’um gesto reverente,
o caboclo me disse, a cruz mostrando : —
«Patrão! Pequena pausa permiti!
Não vos molestareis, certo, comigo!...
N’um grabato de terra dorme ali
meu grande mestre!... o meu saudoso amigo!
Era um belo rapaz! Era um portento!
Pois que ninguém, ninguém melhor sabia
tirar, como ele, um som neste instrumento,
com mais amor, mais arte e melodia.
Não passo por aqui, sem que, primeiro,
soluce, nesta gaita dolorida,
este canto de amor, o derradeiro,
que ele fez pra mulher, que amou na vida.»
E a gaita dedilhando, ali, de bruços,
gemeu, com tanta mágoa, que é de crer
que o finado, escutando os seus soluços,
despertasse e chorasse de prazer!
Porque a voz do instrumento apaixonado
de longe para nós repercutia,
com o se o morto, o mestre idolatrado
respondesse da campa em que dormia.
E a galope partimos pela estrada!
mas, no deserto da amplidão sonora,
por muito tempo, ainda, ouvi, magoada,
a voz da gaita, pela noite a fora.
A lua, em que o sertão todo se espelha,
tramontava no albor da extrema-unção,
como tramonta uma saudade velha
no horizonte sem fim do coração.
Minh'alma;... que por ti soluça e chora
o fel de um pranto ardente e delirante,
inda agora repete, a todo o instante,
estes versos que eu vou dizer-te agora.
— Aquela voz monótona e chorona
da gaita do gaiteiro, dolorida,
era tal qual essa outra voz sentida
do humano coração, que é uma sanfona,
e vive, — quando o Amor, triste, o abandona,
quando a Esperança morre, emurchecida,
proseguindo o seu longo itinerário,
no deserto do peito, solitário,
— a sanfonar a musica da vida.