A estilista carioca Ligia Parreira costumava ver Gloria Coelho como uma referência. Chegou a gastar uma parte significativa de seu salário em um casaco da designer, arrematado nas araras de liquidação da extinta multimarcas Novamente, na Rua Sete de Setembro, no Centro do Rio. Depois de ler numa entrevista, em 2009, em que a criadora afirmara que “já tinha negro demais” na São Paulo Fashion Week (costurando, fazendo modelagem) e que eles não precisavam estar também na passarela, a peça perdeu o brilho. “Percebi ali o apartheid e passei o look para frente, nem sei para quem. Essas pessoas não mudam. Tanto que modelos acabaram de compartilhar práticas racistas cometidas por ela”, diz Ligia.
Dona da grife Devassas.com, a carioca do Méier afirma que não ficou “chocada” com os relatos publicados no Instagram pelo movimento Pretos na Moda e no perfil anônimo Moda Racista, que saiu do ar após o estilista Reinaldo Lourenço, ex-marido de Gloria e alvo de diversas denúncias, entrar na Justiça pedindo que a página fosse removida. A solicitação foi negada, mas a página sumiu da rede social — o que não significa que o conteúdo deva ser esquecido. À ELA, Lourenço declarou que errou e não tinha problema em admitir isso: “Estou acompanhando os protestos e as reivindicações. Eu e minha marca faremos parte dessa necessária transformação. Os próximos castings serão diferentes, com mais atenção à diversidade racial”. Indignada, Ligia acrescenta: “Parece que a indústria não nos absorve. Meu sonho é dar uma entrevista em que eu não precise falar sobre preconceito. Mas a branquitude não deixa. Tenho de justificar minha presença constantemente, a razão de estar ocupando esse lugar.”
Para a estilista baiana Carol Barreto, a moda brasileira é um reflexo da sociedade. “A lacuna racial deve-se ao processo histórico. A posição de criador é de um poder extremo, de total privilégio. O homem branco está no topo da pirâmide, comandando as grifes; e a população não branca está na base, executando trabalhos braçais. O Brasil não deseja esse deslocamento de um modo geral. Meu trabalho é ativista justamente por isso. Quero contribuir para um futuro de mudanças, em que todos tenham as mesmas oportunidades.”
Autodidata, Carol apresentou seu primeiro desfile no campus da Universidade Estadual de Feira de Santana, em 2001. À época estudante de Letras, ela festejou a diversidade na passarela. “Atingi meu objetivo político, mas não gerei notícia. Mostrei que também somos competentes, e que o negro pode ser estilista, modelo, stylist e fotógrafo. Não precisamos estar sempre na subserviência.” Por meio de sua roupa, a baiana debateu temas urgentes como a escravidão. “A vida inteira recebi olhares questionadores, na moda principalmente. O racismo nunca é declarado. Ele usa estratégias sofisticadas para oprimir e excluir o outro.”
Sucesso na São Paulo Fashion Week, o mineiro Luiz Cláudio Silva, da Apartamento 03, jamais imaginou estar no evento. “Não havia ninguém como eu lá”, explica. “Nós, pretos, vivemos à margem e, quando chegamos ao centro, não temos a possibilidade de errar. Se errarmos, seremos apontados. Temos de ser 10 mil vezes melhores do que os brancos”, acrescenta ele, que, em 2018, levou à temporada paulistana um casting só com modelos negras. “Não dá para ter só uma ou duas meninas pretas num desfile no Brasil. Foi bonito ver as garotas se olhando no espelho, trocando experiências. Uma delas segurou o choro para não borrar a maquiagem ao se dar conta do que estava acontecendo. Nós temos isso. Quando encontramos um igual na rua, nos cumprimentamos. É como se fosse: ‘Estou aqui também. Você não é o único’.”
Editora de moda da revista “Glamour”, Luanda Vieira não enxergava a cor de sua pele como “obstáculo”. E isso tem muito a ver com a educação que teve em casa. “Meus pais optaram por me criar sem falar em racismo. Se fosse alvo de comentários maldosos na escola, eles me tiravam daquele ambiente. Ser negra não era uma questão. O trabalho me abriu mais os olhos”, conta. Parte importante da engrenagem, Luanda confessa que se vê “solitária”. “Minha luta é para abrir espaço. Quero uma moda diversa”, reclama ela, afirmando que ficou “desesperançosa”, num primeiro instante, com os relatos de racismo na indústria. “Achava que não daria em nada. Mas as modelos não foram ignoradas. Elas foram extremamente corajosas e resgataram a esperança. E a esperança move.”
Uma das fundadoras do movimento Pretos na Moda, a manequim mineira Camila Simões conta que uma “força ancestral” a impulsionou a denunciar os casos de racismo na moda brasileira. “Não vou dizer que não tive medo. Eram coisas sérias que poderiam reverberar de forma ruim na minha carreira, mas era necessário. Há séculos, pedimos para sermos ouvidos”, observa a moça, que teve problemas com Gloria Coelho. “Ela me pré-selecionou para um de seus desfiles. Durante a prova de roupa, insinuou que eu estava andando sexy demais, e isso não estava ocorrendo. No fim, acabei sendo cortada. Acho que fez isso para me machucar. Foi uma ferramenta de tortura.”
Numa espécie de manifesto, a designer se desculpou e se comprometeu a incluir mais modelos afrodescendentes e indígenas nas suas apresentações: “Reconheço que por séculos a moda privilegiou padrões de beleza eurocentristas, e que eu ou pessoas da minha equipe no passado possamos ter compactuado com isso”. A próxima edição da São Paulo Fashion Week, marcada para outubro, deve ser diferente. Camila afirma que Paulo Borges, diretor do evento, garantiu que metade do casting será negro. “Inclusão é a palavra-chave. Estamos trilhando um caminho de mudanças”, resume a modelo.
Há uma década circulando pela indústria, a modelo e influenciadora paulistana Rita Carreira diz que muita gente sabia das práticas racistas, mas se calava. “Vivemos num país preconceituoso e oportunista. Minha impressão é de que as marcas colocam as meninas pretas por cota, não por desejarem isso. Já fizeram cara feia enquanto eu desfilava. A negra também é a última na fila da maquiagem no backstage de um desfile. Nossa cara fica toda cinza porque os profissionais não têm base no tom certo, e nem mexem nos cabelos”, desabafa. “Tive de resistir. Fizeram de um tudo para eu desistir, ainda mais sendo gorda e preta. Quero apenas existir, sem me preocupar com a cor da minha pele. É exaustivo correr atrás de oportunidades e encontrar as portas fechadas.”
Tida como “rebelde”, a maquiadora carioca Laura Peres levanta a bandeira da igualdade racial desde que começou a atuar no meio, em 2010. “Os racistas não dormem, nem a gente. Enquanto ocupo esse espaço, tenho poder de transformação”, pontua a beauty artist. Ela faz questão de montar equipes somente com pretos e pardos em grandes eventos como o Veste Rio, no qual a estilista brasiliense Lia Maria, da Diáspora 009, é destaque. “Sempre pedi representatividade. Nossa figura é sub-representada frequentemente. Estamos no cantinho da foto, naquela parte que quase é cortada. E nós podemos ser protagonistas, sim, e sermos considerados belos. A beleza é multifacetada”, diz Lia, em tom doce e firme. “Queremos a possibilidade de sonhar. A violência diária está nos aniquilando. Durmo e acordo rezando para não ser ‘assassinada’ por essas práticas genocidas. Não vamos mais tolerar desvalorização e o tratamento que nos foi dado até aqui.”
Presente nos bastidores do Veste Rio e em campanhas e editoriais de moda, a fluminense Salvadora Nascimento encontrou no setor uma válvula de escape para a depressão. “Era auxiliar de serviços gerais num hotel e fui dispensada assim que voltei de uma licença médica. Estava fazendo obra e com crediário na praça. Vi num curso de costura, na Cidade do Samba, uma alternativa. Fiz fantasias para a Unidos de Vila Isabel em seu último campeonato, em 2013. Hoje, sou camareira. O que nos falta é acesso à educação. Só conquistei meu diploma de ensino médio aos 60 anos. Queria ter estudado na juventude, mas precisei trabalhar em casa de família. Tinha de dormir lá e os patrões não aceitavam o fato de eu desejar ir à escola. Falavam que, para ser doméstica, bastava saber ler e escrever o próprio nome.”
Ao olhar para trás, o estilista baiano Isaac Silva cita Luiz de Freitas, designer negro que revolucionou o guarda-roupa do homem na década de 1980, com a Mr. Wonderful. “É preciso lembrar das pessoas que vieram antes de nós. Não podemos apagar nossa história”, pontua. “A moda é o mercado perfeito, mas há alguns agentes desumanos no meio”, acrescenta ele, que estreou na SPFW em outubro do ano passado. “Encarei o momento com responsabilidade. A visibilidade foi enorme e a marca deu um salto em vendas.”
Natural de Cabo Verde e radicada no Rio há 25 anos, Angela Brito debutou nas passarelas paulistanas na mesma edição de Silva, apresentando uma África contemporânea. “Minha grife mostra o negro como ele é: alegre, elegante e bonito. Não somos somente dor”, explica. “Temos uma luta comum. Nascer com essa cor é carregar uma pele política.”
O stylist carioca Hugo Machado conclui: “É uma batalha diária, não sabemos o que vai acontecer”.