A MÁQUINA DE CHILREAR E SEU USO DOMÉSTICO
Manoel de Barros
IV. A MÁQUINA DE CHILREAR E SEU USO DOMÉSTICO
O POETA (por trás de uma rua minada de seu rosto
andar perdido nela)
— Só quisera trazer pra meu canto o que pode ser
carregado como papel pelo vento
A LUA (com a noite nos lábios)
— Pelo nome do rosto se apostava que era cálido
O PÁSSARO (olhos enraizados de sol)
— Ainda que seu corpo permanecesse ardendo, o
amor o destruiria
O CÓRREGO (perdido de borboletas)
— O dia todo ele vinha na pedra do rio escutar a
terra com a boca e ficava impregnado de árvores
O PÁSSARO (em dia ramoso, roçando seu rosto na erva
dos ventos)
— Há réstias de dor em teus cantos, poeta, como um
arbusto sobre ruínas tem mil gretas esperando chuvas…
O CÓRREGO (apertado entre dois vaga-lumes)
— … como no fundo de um homem uma árvore não
tem pássaros!
O MAR (encostado na rã)
— Em cima das casas um menino avino assobia
de sol!
O SOL (sobre caules de passarinhos e pedras com
rumores de rios antigos)
— Iam caindo umas folhas de mar sobre as casas
dos homens
A ESTRELA (sentada nos ombros de Ezequiel, o
profeta, em Congonhas do Campo)
— … e o silêncio escorava as casas!
O POETA (se usando em farrapos)
— Meu corpo não serve mais nem para o amor nem
para o canto
O CARAMUJO (olhos embaraçados de noite)
— E a Máquina de Chilrear, Poeta?
A ÁRVORE (desinfluída de cantos)
— É possessão de ouriços
A RÃ (de dentro de sua pedra)
— … sua voz parece vir de um poço escuro
O PÁSSARO (cheiroso som de asas no ar)
— Ela está enferrujada
A ÁRVORE (apoderada de estrelas)
— Até o chão se enraíza de seu corpo!
O CÓRREGO (no alto de seus passarinhos)
— Ervas e grilos crescem-lhe por cima
O PÁSSARO (submetido de árvores)
— A Máquina de Chilrear está enferrujada e o limo
apodreceu a voz do poeta
CHICO MIRANDA (na rua do Ouvidor)
— O poeta é promíscuo dos bichos, dos vegetais,
das pedras. Sua gramática se apoia em contaminações
sintáticas. Ele está contaminado de pássaros, de
árvores, de rãs
A ESTRELA (com ramificações de luar)
— Muitos anos o poeta se empassarou de escuros,
até ser atacado de árvore
O POETA (lesmas comendo seus cadernos relógios
telefones)
— Ai, meu lábio dormia no mar estragado!
O MAR (restos de crustáceos agarrados em suas pernas)
— Parecia ter dado à praia como um pedaço de pau
A FORMIGA (carregando um homem na rua, de
atravessado)
— Eu vi o chão, era uma boca de gente comida de
lodo!
O POETA (ventos o assumindo como roupas)
— Os indícios de pessoas encontrados nos homens
eram apenas uma tristeza nos olhos que empedravam
O CARAMUJO (se tirando de escuros, cheirando a
seus frutos)
— Restos de pessoas saindo de dentro delas mesmas
aos tropeços, aos esgotos, cheias de orelhas enormes
como folhas de mamona
O CÓRREGO (mudando de passarinhos entardecentes)
— Mas o que trinca está maduro, poeta
O POETA (ensinado de terra)
— Amar é dar o rosto nas formigas
A PÁSSARA (nas frondes do mar)
— Meus filhos também construíram suas casas com
vigas de chuva
FRANCISCO (cumprimentando aos arbustos)
— Olhai os cogumelos pondo as bocas!