A MALDIÇÃO DA COR
A. C. Dib
A miserável vida de Carolina Maria de Jesus, moradora de rua e, nas horas vagas, escritora, nada deixa a dever à dos mais famélicos e maltratados personagens de Victor Hugo. De fato, a autora de Quarto de Despejo, obra celebrada ─ internacionalmente ─ como marco da chamada “literatura documentária de contestação” (característica dos anos sessenta/setenta do último Século), teve a pobreza por companheira de vida e da morte. Diário de Bitita, seu outro romance, é o retrado dessa existência paupérrima, permanentemente fustigada pelo feroz racismo dos primeiros anos da República, pela injustiça, pela fome, pela humilhação e pela aguerrida luta por sobrevivência, em um mundo marcado pela desigualdade e total falta de esperança e de oportunidades. Retrato este, tingido em cores lúgubres da brutal realidade, que a saudosa autora conheceu na própria carne.
Os primeiros anos de vida, equivalentes aos primeiros capítulos do diário, apresentam as doces ilusões e sonhos, característicos da infância. Não obstante, a infante Bitita já sinaliza possuir espírito crítico e contestador, viva curiosidade, imaginação criadora e inventividade, em meio a um mundo de adultos desiludidos, acomodados, acovardados e esmorecidos. Libertos os negros, a República ─ recém-parida ─ não lhes conferiu meios de sobrevivência dignos. Morando em taperas de pau-a-pique, desempregados ou subempregados e sub-remunerados, padecendo pela fome, pelas doenças e pela ignorância funesta, alguns se entregam ao álcool, outros, vencidos, desistem da luta e da vida e meninas buscam remédio na prostituição, ou ─ as mais afortunadas ─ no casamento com um homem bom e laborioso. Poucas ─ e precárias ─ são as opções. Para agravar ─ “nada é tão ruim que não possa piorar” ─, além das hercúleas adversidades econômicas e de trabalho, essas pessoas ainda enfrentam a permanente desconfiança e aterradora perseguição policial, ou, perseguição renhida por parte de uma polícia analfabeta, rota e pouco apegada à letra da lei, que via na gente pobre e negra potenciais criminosos.
A vida da adolescente e jovem adulta não se mostra mais amena ou fácil. Descortinam-se, à sua frente, patrões desleais, trabalhos mal e parcamente remunerados e a mais absoluta ausência de direitos que contemplem o labor. Ainda assim, a jovem Bitita mantém vivo seu espírito livre e criativo, suas expectativas e sonhos e a boa disposição de resistir às intempéries da natureza social. Não se revolta, mas, ao contrário, preserva o coração largo, generoso e agradecido a todos os que lhe estendem a mão ‒ por mais tacanho que seja o gesto.
O relato termina inconcluso, com a ida de Bitita para São Paulo, em busca de melhores dias. Fica em aberto seu “final”: que o leitor o idealize. Permanece, enfim, um retrato cru da triste realidade dos negros, num Brasil subdesenvolvido e arcaico. Antes, formalmente cativos, e, depois, então, acorrentados à vala opressora da total miséria.
A narrativa se faz em linguagem simples, coloquial e direta. Seguramente, Bitita tem muito de sua criadora, Carolina Maria de Jesus. A experiência pessoal da autora teria pesado e projetado a construção da personagem. E isso se a própria vida da heroica autora ─ que, em meio a adversidades extremas, ainda encontrava tempo e condições psíquicas de produzir obras literárias, sensíveis e inspiradas ─ não se fizer tingir por cores mais tristes que a de sua Bitita.
Se a vida não lhe sorriu ─ refiro-me à autora ─, se lhe subtraiu meios dignos de subsistir, não lhe alquebrou a coragem e o talento de criar, a liberdade de pensar, a ousadia da expressão e o desejo de registrar o que viu e viveu. E a Literatura ─ com sua magia artística ─ lhe facultou gravar o nome na rocha ígnea dos autores pátrios. Isto ninguém lhe tira.