Conheci pessoalmente Regina Duarte às vésperas da estreia da minissérie Chiquinha Gonzaga. Diretor de redação da revista Época, marquei um encontro no Rio com a estrela da Globo para preparar a reportagem de capa. A conversa vespertina em seu apartamento durou duas horas. Quando terminou, bateu-me a sensação de que, pela primeira vez em muitos anos, havia entrevistado alguém que dissera a verdade o tempo todo. Naquele momento, à admiração que sempre tive pela grande atriz somou-se o encantamento pela bela mulher que alcançara a graça a tão poucos concedida: a integridade absoluta. Essa virtude raríssima ditou-me o parágrafo de abertura, abaixo reproduzido:
Um agiota da Florença medieval talvez examinasse, espontaneamente, a hipótese de oferecer-lhe empréstimos sem garantia. Um espião a serviço da velha União Soviética poderia sentir-se tentado a transformá-la em confidente. E é provável que o carcereiro de San Quentin lhe entregasse o chaveiro do corredor da morte se ela ponderasse que todo ser humano merece uma segunda chance. Nenhum desconfiado congênito, nenhum pessimista profissional estará livre de exibir essas fendas na couraça depois de exposto a Regina Duarte. Só pode ser verdade o que diz alguém com esse rosto de primeira comunhão e essa voz que eterniza a primavera. É, sobretudo, impossível duvidar de quem sorri assim. Adicionem-se a esses trunfos os dotes de grande atriz e não será difícil compreender por que o país, desde sempre, acredita no que Regina diz e no que dizem os personagens que interpreta.
Parágrafos adiante, a reportagem descreve a Regina que vi pela primeira vez:
A mulher que abre a porta ao primeiro toque da campainha é uma artista, mas parece normal (tão normal que sabe atender pessoalmente à campainha). Está vestida como um ser humano normal que acabou de chegar do dentista: ninguém desmata a selva dos cabides na hora de submeter-se a suplícios. Saia verde-claro, blusa em tom verde ligeiramente mais brando e bolinhas brancas, sandálias com saltos que não denunciam o desejo de chegar à estratosfera. Nada que desperte atenções especiais, nada que realce o corpo bem desenhado. E se Regina, cabelos escorridos pelas faces, estiver vivendo o papel de dona-de-casa-sem-vaidades-que-logo-vai-virar-a-estrela-da-noite?
Mencionei essa hipótese em tom amável, mas imediatamente emergiu a mulher boa de briga camuflada pela suavidade da eterna Namorada do Brasil:
“É um grande equívoco acreditar nessa história de que os atores passam o tempo todo representando”, reagiu Regina com evidente desconforto. Ergueu-se da cadeira de praia, acendeu o primeiro dos dois cigarros que fumaria em duas horas de conversa e voltou as costas para a mesa da varanda onde eu estava. A voz tornou-se ligeiramente mais aguda. Mas o olhar não traía qualquer vestígio de raiva quando Regina voltou a sentar-se. “É no palco que boto para fora o meu lado camaleônico”, disse. “E é por usar o palco que artistas não precisam mentir.”
Depois daquela tarde no Rio, reencontrei-a poucas vezes. Mas continuei a seguir de perto a atriz brilhante e a paulista do interior que rima coerência com valentia. Passados tantos anos, constato que o retrato produzido pela reportagem dispensa retoques. Cada vez mais lúcida e contemporânea do mundo ao redor, Regina não mudou. Nesta semana, ela começou a fase de ensaios que lhe dirão se vale a pena assumir no palco federal o papel de secretária especial da Cultura. Do desfecho da peça que estreou há um ano depende o futuro do Brasil. Tomara que a mulher que não mente aceite melhorar o rosto e a alma do elenco.