A LANCHA
Raimundo Floriano
Lancha Leopoldo Bulhões: cópia da Rio Poty
Acervo Família Leite Pessoa
A lancha é embarcação que possui algumas características comuns ao vapor: casco de aço, caldeira a lenha, propulsão por máquina a vapor e potente guincho na proa, para a operação das espiadas.
Difere dele em muitos pontos: em vez da caixa de roda, tem instalada em sua popa uma hélice, que a movimenta. Pequena, é provida de apenas um convés, destinado esse às maquinas e a toda a tripulação, transportando passageiros precariamente, e tem como destinação principal a função de rebocador, atrelando-se a ela barcas com as mesmas tonelagens das puxadas pelos grandes vapores.
A Rio Poty foi a maior lancha a navegar na Bacia do Parnaíba, pois seu casco era consideravelmente mais longo que o das outras lanchas em operação na época, medindo 19,5 m de comprimento. Distinguia-se das demais por um segundo toldo, o que, normalmente, só ocorria com vapores e motores. Devido ao seu grande calado, navegava o ano todo só no Rio Parnaíba. No inverno – a nossa estação das águas –, singrava também o Rio Balsas.
Foi construída em Teresina, como se verá no perfil do Comandante Félix Pessoa. Talvez a lancha Leopoldo Bulhões, que ilustra esta matéria, tenha sido fabricada depois dela, sendo-lhe uma espécie de clone.
A Rio Poty marcou profundamente minha infância.
Dos inúmeros rapazotes que auxiliaram minha mãe e a nós todos, os meninos da casa, nas tarefas domésticas de buscar água no rio, lascar lenha no mato, levar as vacas para a quinta pela manhã e trazê-las à tarde, comprar ovos na Tresidela e vender bolos e produtos hortigranjeiros da nossa lavra, um deles, aos 18 anos, entrou para a Marinha Mercante.
Era o Antônio Divino que, por ser atarracado, musculoso e de grande força braçal, ganhou o apelido de Antônio Quebra-Homem. Marinheiro de proa, tinha as mãos asperamente calejadas, devido ao trabalho com cabos de aço, geralmente esgarçados, nas espiadas.
Na época em que se deu o fato que narro, ele navegava na lancha Tambo, propriedade do meu Tio Joãozinho.
Toda vez que a Tambo aportava em Balsas, Quebra-Homem tirava uma tarde de folga para nos visitar. Era notável sua bela figura retinta, sapatos engraxados, boné de marinheiro, óculos ray-ban, uniforme branco impecavelmente engomado.
Ao chegar, nós o recebíamos na varanda, minha mãe servia-lhe um café passado na hora, acompanhado de bolos e doces, e a conversa ia longe, com ele contando suas aventuras, e a meninada boquiaberta a escutar.
No ano de 1946, numa dessas visitas, Quebra-Homem levou de presente para o meu irmão Afonso, três anos mais velho que eu, uma perfeita miniatura da lancha Rio Poty.
Com uns 60 centímetros de comprimento, casco compacto, confeccionado com tamboril – madeira mole como o isopor –, hélice e leme, pintada com tinta a óleo, em tudo se assemelhava ao modelo real. Tinha até uma chapa de chumbo, do tamanho de um palmo, incrustada no fundo do casco, para que lhe servisse de lastro, não a deixando adernar. Era perfeita!
Se ciúme matasse, eu teria sucumbido naquele dia!
Quis o acaso que, pouco depois, ela viesse para a minha posse. Em 1947, o Afonso foi estudar em Goiânia, passando-a para mim. Em fevereiro de 1949, fui estudar em Floriano e passei-a para o Rosimar, meu irmão mais novo. Também ele, nos meados daquele ano, foi estudar em Miracema, deixando-a para ninguém. Assim se encerra a história da lanchinha que tanto nos maravilhou.
A lancha que ficou mais conhecida pela população de Balsas e é lembrada até hoje pelos antigos moradores foi a Rosicler. O motivo disso é que fora fabricada especialmente, com o nome Nazira, para um árabe ali residente, seu Amado Bucar, que depois a repassou para o próprio fabricante, o florianense Afonso Nogueira, que a rebatizou como Rosicler.
Outras lanchas famosas, a Tambo e a Palmira, têm suas fotos postadas no perfil do Comandante João Clímaco. Havia também a Marabá, do Comandante Wenceslau Ribeiro, da qual alguns balsenses ainda se recordam.
As lanchas inspiraram muitos dos nossos conterrâneos, como Seu Pequeno, que chegou a construir duas de madeira, na porta de sua residência.
Essa casa, conjugada com sua usina de beneficiamento de arroz e sua oficina, ocupava todo o quarteirão direito da Praça de São Sebastião, hoje Praça Roosevelt Kury.
Hygino Pedro de Farias era seu nome. De grande inteligência e imaginação fértil, planejava e fabricava máquinas em sua oficina, como a de descaroçar algodão, do qual era exportador. De invento em invento, chegou a perder alguns dedos das mãos! Era, mesmo assim, um obstinado! Nunca desistia!
A primeira lancha de madeira que construiu foi a São Paulo e não se constituiu em grande novidade. Apenas chamava a atenção o progresso da obra, dia a dia, até que ficasse completamente pronta. Aí, sim, foi uma festa para todo mundo da cidade a operação de empurrá-la até o rio, deslizando sobre toras roliças de madeira. Logo depois, foi ela vendida para armadores piauienses.
A outra lancha do seu estaleiro, de cujo nome ninguém mais se lembra, deu o que falar!
Dentro daquela sua fantástica engenhosidade, Seu Pequeno a concebeu para ser propelida por força humana, através de um intrincado sistema de rodas e engrenagens.
No dia da inauguração, porém, devido à exaustão da força propulsora dos homens que giravam as manivelas, a lancha não conseguiu, partindo do Porto do Depósito, ultrapassar o Porto do Martim, uns cem metros rio acima.
Lancha rebocando barca