A graúna Nêga Véia”
Foi por muito pouco, um tantinho de nada, que João Buretama não pegou a cobra caninana comendo a graúna velha no ninho feito no pé de pau (uma catingueira que disputava a sobrevivência com um pé de avelós – este, conhecido também como “cachorra-magra” de reconhecido valor curativo contra alguns tipos de câncer). A bicha conseguiu fugir mais rápido que pensamento, enquanto Buretama desembainhava o facão Collins de 30 polegadas – quase uma espada.
Foi quando descansava à sombra da catingueira, que João Buretama descobriu o ninho da graúna. Subiu cuidadosamente, e encontrou o ninho, com dois ovos. Acompanhou o choco e quase ajudou no “parto” do casal de filhotes. O macho, dizem os especialistas, nasce sempre primeiro.
João Buretama trabalhava diariamente, cuidando do roçado, onde tinha algumas linhas de mandioca e feijão, sem contar pouco mais de cem touceiras de macaxeira e muitos pés de maxixe, que ficavam mais próximos da vazante do pequeno açude. Dali, tirava o alimento para a filharada e aderentes.
João cuidava de algumas covas de batata doce quando escutou um piado diferente, próprio de ave que foi pega pelo predador. Parou com a enxada, pôs-se a escutar, até descobrir que o som estranho vinha da catingueira. Andou rápido. Andou mais rápido ainda. Quase correndo, encontrou uma cobra caninana se esgueirando entre as folhas secas, consumando a fuga.
João desembainhou o Collins – que mais parecia uma espada – deu alguns golpes no chão, mas a cobra, com a fome saciada, conseguiu fugir.
– Bicha desgraçada! Comeu o meu passarim!
Na verdade, o passarinho comido pela cobra caninana não era de João. Era do mundo, era da natureza, propiciando o equilíbrio entre as espécies e enriquecendo-as. Mas, no interior é sempre assim. Criou, é “dono”.
Quando alguém vê um canário e ele volta ao lugar onde foi visto, ele passa a “pertencer” a quem o viu. Vai continuar solto, voando, cantando. Mas será sempre de quem o viu por uma ou mais vezes. São essas as coisas boas do sertão, que pontificam e diferenciam entre as coisas das cidades asfaltadas e metrópoles.
Dando uma leve pancada na testa, João lembrou dos ovos que tinha visto no ninho. Sabia ele que, provavelmente, o primeiro ovo, que muitos entendem como sendo o macho, já tivera a casca rompida há alguns dias. A fêmea dessa espécie (graúna, chico preto, melro – gnorimopsar chopi) é mais preguiçosa. Demora mais para nascer e a se movimentar em busca do alimento. Há quem afirme que seja por isso que ela – a fêmea – cresce mais.
Pois o filhote havia saído à procura de alimento quando a caninana pegou a mãe no ninho. A aproximação de João Buretama apressou a fuga da cobra que, em parte, tivera um bom alimento.
Atônito, João lembrou que o filhote que acabara de romper a casca do ovo morreria de fome. Com todo cuidado possível, parou o trabalho, pegou a graúna fêmea ainda filhote, e levou para casa. Não tinha gaiola, e aninhou a ave entre alguns panos velhos. Antes de voltar para continuar a labuta, recomendou à mulher que fizesse uma papa de farinha seca com leite de cabra e, com um garrancho improvisado de colher, tentasse dar para a nova inquilina da casa.
De noite, na chegada à casa, a primeira pergunta de João foi pela nova “cria” da casa. Aquele amontoado de carne com alguns “canhões” nascendo, apenas dormia. Se fosse humana, estaria roncando, certamente.
O tempo passou. A graúna cresceu. Ficou coberta de penas e até ensaiou os primeiros voos. João entendeu que chegara a hora de prendê-la numa gaiola, pois ela poderia voar e nunca mais voltar. Aí veio a mágica da natureza. João achava que não ficava bem chamar a graúna de “graúna”, ou simplesmente “passarinha”. Assim, batizou-a de “Nêga véia”. Embora fosse nova, ou apenas uma “adolescente”.
“Nêga véia” pra cá, “Nêga véia” pra lá, e assim os dias se passaram. Num belo fim de dia e João chegou a casa, trazendo uma gaiola de talos de carnaubeira que encomendara ao Zé do Pifo, um desocupado que vivia fazendo aquelas coisas. Muitas sob encomendas.
“Nêga véia” dormia tranquilamente sobre uma tábua, onde também ficavam um vasilhame de barro com água e outro com a comida (milho verde, papa de farinha, arroz cozido). João colocou tudo, inclusive “Nêga véia”, na gaiola, e fechou a porta da dita cuja.
Com o surgimento dos primeiros raios da claridade daquele domingo, João pegou um caneco com água e foi “moiá os óios prumode tirá a remela.” Pegou o café e, com o cachimbo numa mão, e a faquinha de cortar o fumo na outra, sentou-se num tamborete próximo de onde havia pendurado a gaiola com “Nêga véia”. Sentou, e continuou cortando o fumo, enquanto oiava pra gaiola.
A natureza se manifestara, como que por um passe de mágica. “Nêga véia” começou a desfiar um cântico tão maravilhoso que levava qualquer um às lágrimas: fiu-tu-fiu, fiu-tu-fiu-fiu! Repete a mesma coisa várias vezes.
“Nêga véia” nunca havia cantado antes. João parou de cortar o fumo e ficou de olhos arregalados e marejados, espiando e procurando entender aquilo.
Quem conhece a letra da música gravada por Gonzagão: “… furaro os óios, do assum preto, prumode assim, ele cantá mió” com certeza vai entender o que aconteceu.
Ninguém furou os óios de “Nêga véia”. João escutou mais uma vez o cântico de “Nêga véia” e começou a achar que tinha algo de diferente naquilo. Algo fora de rotina. Não era toda graúna que cantava pausado daquele jeito, como se pretendesse dizer algo, como se pretendesse falar com alguém. Como se pedisse alguma coisa. Não era um cântico. Era um lamento.
João tirou “Nêga véia” da gaiola e esticou o dedo indicador da mão direita, como quem pede o pé a um papagaio. “Nêga véia” pousou no dedo de João, e, em vez de voar, pulou para a tábua onde costumava dormir e comer. Viver, enfim. E, imediatamente, parou de cantar.
Finalmente, João entendeu que o cantar de “Nêga véia” era um lamento. Um pedido para sair da gaiola, para continuar solta como manda a Natureza. Assim como quem pretendia dizer que tinha algo a cumprir e, presa, isso ficaria difícil.
Os dias se passaram e “Nêga véia” começou a alçar voos mais altos e mais demorados. No fim do dia, ao entardecer, depois do cântico do Vem-Vem, regressava para casa e, pousada e educadamente sacudindo todas as penas como se tirasse algo do corpo, ficava arrepiada e adormecia. Assim era, até os primeiros raios do novo dia.
Os voos demorados de “Nêga véia” já não incomodavam tanto a João. “Nêga véia” aprendera a sair para procurar alimento, da mesma forma que aprendera a voltar ao fim do dia, cansada, como se voltasse de um dia de trabalho. E era. “Nêga véia” estava trabalhando. “Maquinando” alguma coisa.
Todos os dias, sem que João percebesse, “Nêga véia” voava, voava e, de mansinho, pousava entre os galhos daquela antiga e velha catingueira. A velha catingueira onde nascera e, sabia, onde também perdera a mãe, comida pela caninana.
O calor tórrido e o vento parado faziam do ambiente um mormaço só. A sombra da catingueira era um oásis e, depois de secar o suor com a ponta da camisa, João foi refrescar o corpo na sombra da catingueira, sua velha conhecida. Usando o chapéu de palha como se fora um travesseiro, João olhou para cima e, como que por milagre, viu a ave e a identificou como sendo “Nêga véia”. E era “Nêga véia”, com certeza.
Mas o que “Nêga véia” estaria fazendo ali, naquela fatídica catingueira, depois de tanto tempo? Depois de reconhecer “Nêga véia”, tinha também certeza que ela voaria, e voltaria para casa ao fim do dia, depois do cantar do Vem-Vem.
Mas, olhando mais fixamente, João percebeu que um galho estava mais grosso do que de costume. Fixou o olhar e percebeu que o “galho” se mexia lentamente. Abriu ainda mais os olhos e viu: era aquela mesma caninana miserável que comera a mãe e conseguira fugir e, agora, ali nas suas ventas, começava a armar o bote para pegar também “Nêga véia”.
Com violência hercúlea e a raiva de todos os demônios, João desembainhou o Collins e usou toda a sua força para cortar o galho e, ao meio, a caninana. “Nêga véia” continuava inerte no galho, não tão alto. Antes de alçar voo, “Nêga véia” foi pulando de galho em galho, até que se aproximou da caninana e, percebendo que ali não havia mais vida, voou e voou até chegar próximo da casa de João (e dela).
Quando o Vem-Vem cantou, ao escurecer, “Nêga véia” voou e pousou na tábua onde fora criada. E, como a dar vivas à Natureza por aquilo que pode ser considerada a vingança da morte da mãe, começou a cantar:
– Fi-fiu-tifi, fiu-fi-fiu!