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Dário acordou inquieto, naquele sábado, sentindo uma espécie de angústia, que lhe apertava o peito. Levantou-se da cama silenciosamente, para não acordar Marta, a esposa, e foi até a cozinha, onde tomou um copo de leite gelado com dois biscoitos de água e sal, a título de café da manhã.
Depois de verificar algumas mensagens no celular, tentou adiantar o trabalho da semana, no computador de casa, mas sem sucesso. Precisava fazer alguns cálculos complexos, para o projeto da construção de um prédio, mas lhe faltava concentração para realizar o serviço.
O raciocínio não fluía, o pensamento era disperso. Lembrava de cenas da sua adolescência, da casa onde morava com seus pais, durante a infância, de um gato que lá havia… Pensamentos em profusão que o afastavam daquilo que pretendia fazer.
Sem nada produzir de relevante, desistiu de continuar com o trabalho; já perto do meio-dia, foi almoçar, deixando o computador ligado e alguns papéis sobre a mesa. Talvez retomasse à tarde.
Mal falou com Marta, durante o almoço. Ela não estranhou, porque imaginou que ele estava apenas preocupado com o trabalho. Apesar de serem casados há apenas dois anos, já se acostumara a vê-lo assim, quando estava pressionado pelo prazo de entrega de um projeto.
Eram quase três da tarde quando ele se acomodou em uma poltrona, na varanda de sua casa, diante do amplo jardim, aproveitando a companhia daquele que considerava ser seu melhor amigo.
Parecia que, a partir daí, encontraria alguma paz interior, mas isso não aconteceu. Permanecia incomodado pela agitação que o afligia, desde as primeiras horas da manhã. Desta feita, passaram a povoar sua mente imagens de situações desconhecidas, mas tão nítidas que não pareciam pensamentos e, sim, registros de sua memória. Lembranças.
Atormentado com aquilo, Dário olhou para o amigo, e falou. Primeiro lentamente, como se se esforçasse para encontrar as palavras; depois, rapidamente, como se não precisasse pensar no que dizia:
“Houve um tempo em que avançávamos juntos no campo de batalha. Lado a lado, ombro a ombro. O meu escudo era o teu escudo, como o teu era também o meu. E o inimigo que surgisse pela frente seria destroçado pela ponta de nossas lanças, como se essas fossem as presas de um animal feroz.
Éramos um bloco, um todo, uma unidade.
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Mas, sabíamos que, se um de nós caísse ferido, era dever do outro seguir em frente, sem olhar para trás. Até o fim da batalha. Ou, até, também cair. Porque, assim como nós, a vida e a morte andavam lado a lado.
Lembro-me de que, certa vez, num desses dias de luta, algo me atingiu na cabeça. Caí atordoado. Meu capacete, amassado, rolava pelo chão. E tu, ao invés de continuares combatendo, vieste me ajudar.
Meu coração encheu-se de gratidão, porque, graças a ti, pude levantar e continuar vivo. Mas, te repreendi pelo gesto em meu favor. Com ele, puseste todo o pelotão em risco. Abriste uma brecha em nossa defesa, que poderia ter sido explorada pelo inimigo.
– Nunca mais faças isso! – disse eu, enquanto me erguia, amparado por ti. – E nem esperes que eu faça o mesmo por ti!
Foi nesse exato momento que uma flecha atingiu o teu peito.
E eu, fiel às minhas palavras, determinado no cumprimento do meu dever, simplesmente, continuei lutando, enquanto agonizavas no chão, em meio ao sangue e à lama.
Vencemos aquela batalha. Fui condecorado por bravura. Nunca tive dúvida de que fiz o que deveria ter feito. Ou, pelo menos, o que acreditava ser a atitude correta.
Mas, a lembrança de não te ter apoiado, nos teus últimos momentos, sempre me doeu na alma.
E dói, até hoje. Mesmo muitos séculos depois.”
Emocionou-se ao dizer essas palavras. Mas o amigo nada respondeu, pois era apenas um bebê, que havia adormecido, enquanto ouvia seu pai contar histórias de outros tempos, de outras vidas.