Audifax Rios
I
A história que eu vou contar agora
Se é verdade ou mentira eu não sei
Pois o fato nunca presenciei
Mas tem gente que jura a toda hora
Na noite ou no romper da aurora
É a história medonha de um cão
Que assombrava com sua aparição
Sob o rouco tinir da sua espora
II
Este fato se deu na Itaoca
Já faz mais de três décadas passadas
E mexeu com pessoas alarmadas
Derrubou muita pose de dondoca
Apanhadas nos laços da fofoca
Meteu medo em menino e ancião
E valentes de toda uma geração
Sucedido que hoje ainda choca
III
Como Deus, tem diabo em toda parte
Não há como do tinhoso se livrar
Cão daqui, cão dali, cão dacolá
Cada um malinando sua arte
Presepeiro tal Pedro Malazarte
Pois vejamos aqui outra faceta
Caprichosa e sagaz deste capeta
Antes que pro inferno nos arraste
IV
Mas primeiro eu quero situar
O cenário de todo esse sucesso
E pra isso munido do meu verso
Itaoca eu passo a tracejar
Se o diabo não me atrapalhar
Por ali passa trem, passa avião
Bicicleta, motoca e caminhão
animal e vivente a caminhar
V
Situado no miolo da cidade
Tem Montese e Pici bem mais ao norte
Nos confins da Avenida da Morte
Que lhe dá um padrão de qualidade
Apegado à antiga Piedade
Para o leste vamos ter o Parreão
Encostado na Vila União
Região com lagoa em quantidade
VI
Pelo sul a famosa Parangaba
Onde fica o asilo dos dementes
Doidos mansos e outros pacientes
A oeste onde Damas se acaba
Sobradões e casebres de rebarba
Sudoeste o bairro da Serrinha
Onde dizem que cão inda caminha
Ampliando os confins de sua taba
VII
A Itaoca de tempos atrás
Começava nos muros do Colégio
Instalado em suntuoso prédio
Com capela e dependências mais
Onve haviam ritos sacramentais
Ensino pra internos e também
Estudantes naquele vai-e-vem
Sob as barbas do cruel satanás
VIII
Do Juvenal Carvalho em diante
Só se via dos Dummar a verde mata
Ainda virgem até aquela data
Ladeando o curral e a vazante
Do riacho pequeno e arrogante
Ia até a Lagoa do Opaia
Onde o verde dos teus olhos se espalha
Sobre a água límpida e brilhante
IX
Por ali passa o Beco do Segundo
Refúgio do cronista Cirolares
Cantor do passaredo e dos pomares
Que por tudo devota amor profundo
Transformando-o em poeta fecundo
Na viela porém deu-se o destroço
Desembesto do cão um alvoroço
A marmota mais cruel deste mundo
X
Feito isto passamos a narrar
A história que é bem interessante
Peripécias de um cafute errante
Que por anos deu muito o que falar
Nestas plagas e em outro lugar
Sua fama como rei da safadeza
Se expandiu pela grande Fortaleza
Se espalhou do sertão até o mar
XI
Lá no Beco escuro casarão
Paredões carcomidos pelo tempo
Pela fúria da água e do vento
Habitava um velho ermitão
Que diziam ter parte com o cão
O seu rosto nunca ninguém via
Da sua vida então ninguém sabia
Sua idade uma interrogação
XII
E por via dessa circunstância
O povão recriou a sua imagem
Carregando demais na maquiagem
Dando ao velho tamanha importância
Enfatizando a brutal deselegância
Aumentando com exagero o corpanzil
A idade lá foi pra mais de mil
Lá bem longe da sua pobre infância
XIII
Os cabelos batiam na cintura
E brilhavam de tanta seborréia
Amarelos da cor de diarréia
Moldurando a triste criatura
Acentuando inda mais sua feiúra
Amarrados feito rabo de cavalo
Eriçados como um rabo de galo
Aprimorando a caricatura
XIV
Grosso chifre enfeitava sua testa
Enrolado como o de um pai-de-chiqueiro
Exalando pelo ar o seu mau cheiro
De bode velho quando desembesta
Odor que logo todo canto empesta
E nas orelhas dois brincos em brasa
Que já faíscam quando sai de casa
No intuito de acabar com a festa
XV
Veste gibão de couro fedorento
Que atrai mosca dentro de um instante
Nunca se viu na terra tal displante
E enche o ar de um cheiro enjoento
Que se propaga levado pelo vento
Sapeca flores e frutos dos roçados
Com seu rastro negro fumacento
XVI
Só tem um olho grande esbugalhado
Sobre o nariz adunco de condor
Pupila diletada incolor
Com íris de um roxo amarelado
Jorra sangue no rosto opilado
Os cílios espetados bem azuis
Sobrancelhas em formato de cruz
Traduzem a imagem do pecado
XVII
A boca escancarada num esgar
De lábios grossos cheios de sapinho
Exibem a dentadura em desalinho
Incisivos de forma irregular
Presas de ouro puro a brilhar
Caninos com coroa reluzente
O beiço inferior constantemente
Saliva de porréia a babar
XVIII
O pescoço grosso atarracado
Assentado num imenso peitoral
De peso e medida anormal
Modela o seu tronco encalcado
De porte muscular avantajado
Os braços envergados pelo peso
Seguram pela mão um facho aceso
Clareando o rosto desalmado
XIX
Grandes pés arrastando pelo chão
Sustentavam um corpo de gigante
Parecia um enorme elefante
Bem maior do que qualquer cristão
Perto dele qualquer um era anão
Ao sair punha o povo em polvorosa
Com a sua estampa horrorosa
A cidade ficava em aflição
XX
As mulheres para ver o brucutu
Se escondiam por detrás das moitas
E ganhavam por terem sido afoitas
Viam o bruto completamente nu
E o enorme pau do belzebu
Mais crescido por causa do tesão
Dava em todas a maior sensação
E saiam para dar que nem xuxu
XXI
Toda essa horrenda descrição
Que fizemos do capiroto agora
Com perdões da Mãe Nossa Senhora
Não passa da mais pura invenção
De um repórter de imaginação
Que vendo a hora perder o emprego
Padeceu de um tal desassossego
E maquinou toda essa confusão
XXII
Mandou fazer pras bandas do Juazeiro
Xilogravura por Mestre Abraão
Com as fantásticas imagens do cão
Pôs logo em prática seu plano matreiro
Que provocou aqui maior salseiro
Saiu manchete em letras garrafais
E chegou a vender todos os jornais
Com as proezas deste cão faceiro
XXIII
Com a notícia até hoje me comovo
Provocou alvoroço na Itaoca
A negrada pulava que nem pipoca
Vibrando com o mexerico novo
E se unindo pra expulsar o estorvo
Juntou homem, mulher, velho e menino
Cada qual indicando seu destino
Nunca mais houve paz entre este povo
XXIV
Antes porém do desfecho final
Houve muita e tanta estrepolia
Marmota acontecendo noite e dia
Itaoca de vida infernal
Parecia uma grande bacanal
Brutalidade e espancamento
Violência e defloramento
Itaoca - Sodoma colossal
XXV
Na verdade a história começou
Com um fato nunca visto igual
Fenômeno dito paranormal
E a mão à palmatória eu dou
Lá no quarto a cama rodopiou
Na cozinha os pratos revoavam
No tanque sabonetes espumavam
Escangalho chegou ali parou
XXVI
A orgia todo o ambiente abala
Entre as pedras saiam mil lagartos
E cobras tantas pelos vãos dos quartos
Os urubus voavam pela sala
Escorpiões livravam-se da mala
Morcegos pendurados numa rede
Ratos no poço matando a sede
O papagaio mudo perde a fala
XXVII
Pela chaminé do velho fogão
Em lugar de fumaça labaredas
Que era a mesma saída pelas bredas
Das narinas fedorentas do cão
Incandescentes com um tição
E o fogo propagado pelo céu
Sapecava tudo que era tetéu
Que caiam assados pelo chão
XXVIII
Lá no quintal a fossa estourou
Foi merda para tudo quanto é lado
O tinhoso ficou todo cagado
Não se fez de rogado e acalmou
e de todo o desastre aproveitou
Passou a voraz língua pelo beiço
A meleca escorria pelo queixo
Com prazer a catinga aspirou
XXIX
Quando a coisa ficava só em casa
Sem a vida dos outros perturbar
Nada havia para se preocupar
Porém quando a marmota criou asa
E toda a sua fúria extravasa
Itaoca virou um pandemônio
Parecia até um manicômio
Onde nada avança e tudo atraza
XXX
Então o malfeito que surgia
Todo roubo ou furto efetuado
Notícia de cabaço deflorado
Tinha logo exata autoria
Qualquer mazela que aparecia
Catapora, sarampo ou sezão
Era praga ia pra conta do cão
Toda sorte de mal ali cabia
XXXI
Foi preciso bolar uma arapuca
Pra pegar o tinhoso de surpresa
Mas quem era capaz de tal proeza?
Só o João Grilo teria grande cuca
Pra aviar esta idéia maluca
Pôs em prática plano genial
Pra pegar o tinhoso no local
E deixá-lo em tremenda sinuca
XXXII
Escavaram um poço bem profundo
Estenderam uma malha de corrente
Pra deste modo apanhar o ente
Na esquina do Beco do Segundo
Chega aquele monstro nauseabundo
Que pensando pisar numa folhagem
Fica atado pela engrenagem
E desaba da beira lá pro fundo
XXXIII
Chegou guindaste para resgatar
Pois julgaram o bicho bem pesado
Porém todos estavam enganados
A verdade não deu pra acreditar
Tava o povo pasmado a admirar
O corpinho enrolado em pano preto
E aí começou o desacerto
O diabo era o padre do lugar
XXXIV
O vigário virava lobisomem
E só tinha uma pessoa que sabia
Escondido na sua sacristia
Sacristão que não quis dizer o nome
Pois o medo do inferno lhe consome
Garante que era em noite de luar
Numa sexta qualquer na hora-agá
A virada em bicho o que era homem
XXXVI
E a mulher que era tida como santa
Na alcova fazia qualquer negócio
Na igreja, cristã, devota e fiel
Mas na cama a virtude desencanta
Tão sacana que até o cão se espanta
Satisfaz sua fúria sensual
No comum, felação e coito anal
Com mil gritos saindo da garganta
XXXVII
Tava ali o padre paramentado
A imagem do cão desmascarada
E quem acreditou na fé sagrada
Excomunga agora o desgraçado
Que enganou todo tempo o povoado
E em nome de Cristo abençoava
E por trás o perjúrio praticava
Confundindo a virtude com o pecado
XXXVIII
E assim como se deu com Jesus
O padre também foi crudificado
E depois pelo povo fuzilado
Padeceu e morreu em negra cruz
Em lugar da coroa um capuz
Lhe serviu de sepulcro um formigueiro
Sem uma placa, sem nenhum letreiro
Sem uma vela, sem alguma luz
XXXIX
Pouca gente acompanhava o caixão
Em que foi transportado o satanás
Quatro gatos pingados nada mais
La na cova se ouviu pouca oração
O Zé Mário fez a declamação
Necrológio em forma de poesia
Relatando a dor e agonia
Que o povo sofreu na mão do cão
XL
Caminhando pra última morada
Cada amigo com dor no coração
Mário Gomes, Gervásio, Saraivão,
Mapurunga e o resto da cambada
E seguindo o cortejo na rabada
O Furtado, o Queiroz e o Marco Abreu
Lamentando o que aconteceu
Constatando que a vida não é nada
XLI
A moçada em estado deplorável
Rastejava em lenta procissão
Compungida como um bom cristão
O Alberto ainda inconsolável
Com a sua derrota lamentável
Luciano Barreira em oração
e o Klévisson com sua pena à mão
Faz da cena comédia impagável
XLII
Nesta hora toda a terra escureceu
E saíram urubus do formigueiro
De onde exalava forte cheiro
Todo galho de planta emurcheceu
A boiada assustada escafedeu
O relógio parou de trabalhar
A coruja no céu pôs-se a piar
Pra dizer que o demônio faleceu
XLIII
Itaoca então ficou famosa
Como a terra do espírito do mal
Deu no rádio, tv e no jornal
Sua fama saiu em verso e prosa
Puxando da poesia cavernosa
Zé Biquara escreveu longo cordel
Onde conta as proezas do revel
Cantilena picante e dolorosa
XLIV
O cão da Itaoca vai ficar
Na galeria das grandes figuras
Que outrora eram vidas obscuras
Cabeludo, Pena Branca e ZéTatá
Burra Preta, Negrinho do mar
Chupa-Cabra, Corta-Bunda, Tobogã
Bode-Ioiô, Tarado da Aquidabã
Entidades da crendice popular
XLV
E aqui terminando nossa história
Do diacho e sua aparição
Que causou verdadeira confusão
E que teve os seus dias de glória
Até quando decretou a moratória
Na tarde em que se escafedeu
A Itaoca toda agradeceu
Fim do caso que não sai da memória
Agora está tudo terminado
Uma coisa a gente não esquece
Desta pecha que o povo não merece
Itaoca do cão endiabrado
Felizmente esta noite foi embora
Acabou a companhia do de-espora
Xeretando nossa vida no passado
Refugamos essa presença maldita
Itaoca do cão e do tisnado
Oramos com fervor prece bendita
Soterramos o capeta excomungado