DO LIVRO CAINDO NA GANDAIA
A ESPORA
Raimundo Floriano
A edição do mês de junho de 2006 da Voz Ativa, órgão informativo da ASA-CD – Associação dos Servidores Aposentados da Câmara dos Deputados –, nos brinda com saborosa crônica do colega Goiano Braga Horta, na qual cita todos os companheiros dos velhos tempos em que trabalhou na Seção de Mecanografia. A última pagina do jornal, porém, nos dá conhecimento de triste notícia: a Partida para a Eternidade de Dona Marilu, dia 2.6.2006, aos 92 anos de idade.
Após sua leitura, fiquei a rememorar aqueles bons tempos, e não pude conter a vontade de narrar certas passagens hilariantes vividas por nós da Diretoria do Patrimônio, no 9º andar do Anexo I, em decorrência de uma brincadeira que a todos divertia.
Estávamos em 1969, o Congresso Nacional fechado, em virtude do AI-5, editado pelo Regime Militar, e pouco tínhamos para fazer. Como sempre acontece no Serviço Público, quer civil, quer milico, quando não há muita tarefa a executar, surge logo a implacável figura de um saco. E, com ele, uma porção de funcionários desocupados para coçá-lo. Já falei isso em outro livro, mas é assim mesmo que a coisa se dá, não custa repetir, para quem desconhece. E, coçando aquele saco, com a mente ocupada em coisa alguma, começavam a surgir ideias e armações.
Assim, nasceu a Era da Espora!
Ferreirinha, de saudosa memória, baiano arretado, sobre o qual muito se poderia escrever, chegou um dia perto de mim e falou:
– Raimundo, lá no Ministério do Trabalho, de onde eu vim, a turma tinha uma brincadeira muito engraçada, que era botar esporas nos colegas. Recortavam umas esporas de papel e, com fita durex dupla face, pregavam nos saltos dos sapatos de alguém, sem a pessoa ver, de forma que o cara ficava o expediente todo andando com elas, e a gente mangando dele.
Não dei muita importância ao assunto. Na manhã seguinte, chegou ele com esmerado par de esporas de papel, já munidas da fita, e me deu para que eu a colocasse nalgum desatento. Guardei-as em minha gaveta, e ele se afastou.
Daí a mais ou menos uma hora ele voltou e me perguntou bem baixinho, sussurrando:
– Já botou?
E eu, murmurando:
– Já!
– Em quem?
Cochichei:
– Em você!
Ele olhou para os calcanhares e viu as duas esporas. Aí, meu amigo, o sujeito engrossou, ficou vermelho de raiva e esbravejou:
– Você me respeite, que eu sou pai de família e não sou homem pra brincadeira. Se eu estivesse aqui com a minha peixeira, ninguém se meteria a fazer uma coisa dessas comigo, porque eu sou é baiano, e isso não vai ficar assim não!
Mas, com o passar do tempo, ele se acalmou e até chegou a andar pregando esporas nos outros. Como o caso ficou muito conhecido, fiquei com a fama de botador de esporas lá no Patrimônio.
Essa foi a única espora que pus em alguém, durante todo aquele período. Por seu turno, o funcionário Felisberto tomou para si a tarefa de agraciar quem quer que se postasse descuidado a seu redor. Aí, seguiram-se os subprodutos, como o rabo, as estrelas de Oficial, as divisas de Sargento e as espadas. Esse Felisberto, hoje premiado escritor e baluarte da Cultura Popular Nordestina, é daqueles que podem perder o amigo, mas não perdem a piada.
Trabalhava conosco Dona Marilu, 55, senhora simpática, alegre, que promovia nossas festinhas e se encarregava da lista de presentes para os aniversariantes. Exímia taquígrafa, exercia a função de Secretária da Diretora, Dona Iatir Emília. Felisberto era a menina-dos-olhos das duas. Não sei se por ser ele um dos melhores datilógrafos da Câmara, se pelo fato de ser professor de Matemática, se por sua privilegiada inteligência, se por sua tenra idade – 22 anos –, o fato é que ambas dispensavam a ele afeição quase maternal.
Embora Dona Marilu desempenhasse aquela função, sua mesa ficava fora da sala de Dona Iatir, mais ou menos na linha imaginária que separava a Seção de Compras da Seção de Material. E foi ali que, sem qualquer remorso, Felisberto pôs-lhe duas esporas nos sapatos salto doze. Dona Itajacy, Batichote, Jota Ribeiro, Arlyson, Gouveia, Tabajara e outros, quando viram a presepada, foram acometidos de incontido acesso de riso, sendo que o Tabajara teve que correr para o banheiro, pois se mijara de tanto rir. Nesse crucial momento, Dona Iatir chamou a Secretária a seu gabinete. Dona Marilu foi, despachou, mas quando deu a volta para se retirar, exibiu as duas esporas para a Diretora, que perguntou, já explodindo na gargalhada:
– Marilu, que negócio é esse?
Dona Marilu olhou para os sapatos e, ao ver aqueles adereços, deu o maior berro:
– Quem foi o filho duma galinha que pôs isso em mim?
Esse “filho duma galinha” tinha endereço certo: eu, Raimundo Floriano.
E tenho certeza de que nossa amiga fez a Grande Viagem sem me perdoar, mas hoje, lá do Além, está vendo esta página e reconhecendo que, durante muitos anos, me recriminou e condenou por um pecado que jamais cometi com relação a sua boníssima pessoa.
Logo eu, que sempre fui um colega tão deferente!