A DESCOBERTA DA FÉ NA CIDADE DOS MORTOS
A DESCOBERTA DA FÉ NA CIDADE DOS MORTOS
Robson José Calixto
Na Netflix (streaming) está passando uma série chamada “Cidade dos Mortos”, que começa a partir de um surto, uma epidemia, mal explicado sobre a sua causa – como muitas séries e filmes na atualidade.
No início, induz a pensar que é algo parecido com o já produzido na Coreia do Sul, nos Estados Unidos ou Inglaterra com a fórmula “terror pandêmico” e que a qualquer momento aparecerá um zumbi todo deformado e dentes carcomidos aparecendo, querendo morder algum inocente são, querendo comer em particular seu cérebro. Só que a série é Russa e daí a perspectiva muda bastante. Quem assistir rapidamente observará que o assunto epidemia é só um pano de fundo ralo para apresentar a sociedade russa, seus conflitos, visões e perspectivas, e a sua população, em seus comportamentos, idiossincrasias, perspectivas e sonhos, além de gostos e preferências, em particular a relação com a vodka e com as armas – parece que todo mundo bebe e sabe atirar.
As personagens se mostram em suas fragilidades e forças, em suas conexões com as mudanças na sociedade russa após o fim do comunismo. Pelo que se apresenta é uma sociedade dominada pelos homens, bem machista, onde as mulheres buscam espelhamento com a sociedade europeia, mas ainda fortemente acorrentadas a padrões de dominação masculina, ainda mais se jovens, e submissão aos seus desejos, com exacerbação sexual. Não que sob a estética de beleza, em quantidade, não haja uma turbulência interna para ser dominante, expressar claramente seus sentimentos, ousadia e postura revolucionária libertária, o que traz fortes tensões na relação de casais e pais e filhos(as), onde trapacear pode ser tomada como instrumento de poder.
O fim do comunismo, dos campos de concentração e presídios nas proximidades do Ártico, as relações com as antigas forças armadas soviéticas, ainda aparecem entranhadas no consciente coletivo ou nas pessoas mais antigas daquela sociedade. As forças paramilitares ou, talvez, possam ser chamadas de milícias suburbanas, aparecem como força opressora e que teriam capacidade para achacar as famílias de classe média, em uma situação sem lei, anarquia.
A forma de lidar com a pandemia e com potenciais contaminado, independentemente de sexo ou idade, em alguns episódios lembram o acontecido naquela situação crítica e dolorosa com os reféns no teatro Dubrovka que foi tomado dezenas de chechenos armados e com explosivos, em 23 de outubro de 2002. Estavam lá no teatro cerca de 850 reféns, terminando com a morte de, talvez, mais de 200 pessoas. Forças especiais russas lançaram agente químico por meio do sistema de ventilação da instalação, matando por envenenamento insurgentes, inocentes, chechenos, homens, mulheres, russos e estrangeiros. Na série em um dos episódios adultos, jovens e crianças são eliminados, mesmo quando não apresentam sinais da doença, simplesmente porque representam ameaça, como se a eliminação representasse solução simples, econômica e impessoal.
Algo que também se mostra claro são as tensões fronteiriças não só com a Ucrânia, mas também com os seus ex-parceiros e correntemente oponentes chineses, em particular em regiões mais ermas.
Por último, e mais importante, e que nos captura a atenção, a relação com a religião, a Igreja Ortodoxa, a sua fé e a intimidade com Deus, e o próximo. Como o comunismo durou muito, os mais antigos foram expurgados ou sublimados de sua fé e do costume de rezar, quer por palavras e sentimentos espontâneos ou na declamação de orações tradicionais. Muitos não saberiam mais, não lembram mais dessas orações ou não foram educados na antiga fé ortodoxa. Todavia está claro na série que há um chamado natural, um vocare, para uma religação espiritual, tradicional, emocional, com Deus e sua Igreja. Uma redescoberta da fé em uma sociedade que quer se revigorar, mesmo que os zumbis do antigo regime ainda andem por aí.
Brasília, 25 de outubro de 2020.