Pirão de farinha seca da “crista de galo”
Era habitual, antes de botar a tramela na porta do galinheiro, auxiliada com a claridade da lamparina, conferir se todas as galinhas e os três galos estavam ocupando seus devidos e tradicionais lugares. Isso, era o que faziam, pela ordem natural da vida, a minha bisavó Naname, minha avó Raimunda, e minha mãe Jordina. Tradição familiar.
E, naquele começo de noite, após a contagem, o caixa não fechou. Os números não batiam, haja vista que dois lugares estavam “desocupados”. Mas, pelo menos naquela noite, quem estivesse fora do galinheiro continuaria assim.
– Tá fartando duas galinhas, Zezim! Amanhã bem cedim a gente percura elas!
Recolhemos a lamparina, fechamos a tramela do galinheiro e depois a porteira do chiqueiro, e voltamos para casa – pois agora precisávamos forrar o estômago antes de dormir. Foi, na volta para casa, que descobri que Vovó trazia numa das mãos, três ovos que havia pego no galinheiro.
– Zezim vá dizê pro seu Avô prumode não drumir, que vou fazê o dicumê!
Ovo cozido com a gema mole
O “dicumê” a caminho da preparação, era a famosa “crista de galo”, alimento emergencial que se consome há tempos em muitas casas desse país. E, não é “alimento” apenas para os pobres. Bem preparado, tem a preferência de muita gente.
Panela (no nosso caso, panela de barro) no fogo. Água, sal a gosto, pimenta do reino moída, coentro e cebolinha picados, uma colher de sopa de banha de porco ou manteiga real, ou, ainda, manteiga de garrafa.
Tão logo começa a fervura da água, com cuidado coloca-se um ovo sem casca e espera-se que a clara cozinhe. Em seguida, retira-se o ovo com cuidado para não “espocar” a gema. Separa-se, e repete-se a mesma coisa com quantos ovos forem necessários.
Cozidos os ovos, faz-se o pirão (angu, para muitos) e serve-se ainda quente. No prato, sobre o pirão, acrescenta-se os ovos, em seguida “espoca-se” os ovos permitindo, aí sim, que a gema cubra o pirão. Sirva-se!
Inhambu – ave da roça
Ao amanhecer do dia, tão logo o galo começa cantar, a rotina diária da casa recomeça. Café preto para uns, com leite para outros, batata doce cozida, cuscuz com nata de leite, abóbora cozida, à qual se junta o leite “vaquino” – eu sempre preferi o leite “caprino” – e vamos à luta.
Terminado o café, foice na mão, bornal no ombro, chapéu na cabeça e é iniciada a procura das duas galinhas poedeiras pertencentes ao “rebanho” da matriarca. A gente sabe que, “rebanho” é mais usado para os bois.
Poucos minutos de procura, e já se percebe que uma chuva fina caiu durante a noite, formando um orvalho poético aos olhos de quem gosta do verde das folhas, em detrimento do amarelado propício às queimadas, possibilitando que a brisa refrescante massageie o rosto e faz aspirar aquele cheiro gostoso e inconfundível da terra molhada.
Repentinamente, aquele momento poético de tantos versos gonçalvinos é interrompido na primeira curva que a vereda do caminho oferece na direção do mato à dentro, e do açude novo.
– Vrrrruuuummmmm!
– Vrrrruuuummmmm!
Provocando um grande susto, mas avisando que ali existia vida, um belo casal de inhambu levanta voo, transformando as asas em poderosas turbinas movidas pela natureza da vida e do universo.
O casal de inhambus aproveitava algumas sementes ainda em flor, que a neblina e o peso do orvalho haviam derrubado e apareciam limpas no caminho.
Andamos procurando a manhã toda. As duas galinhas poedeiras da Vovó não foram encontradas, sem deixar dúvidas que, mais uma vez, a raposa se fartara na preservação das espécies.
Ficava a certeza que, a partir daquele dia, o dicumê noturno feito com “crista de galo” teria alguns ovos a menos.