Os “Anos dourados” foram uma época do romantismo puro e exacerbado com fortes contornos de respeito mútuo, que existiu nos anos 50 e se prolongou até o final dos anos 70. Pois, foi nesse período que a literatura conseguiu exercer forte domínio numa geração que gostava de ler e abria todas as comportas para a saída das emoções e a recepção de outras tantas.
Poemas de J. G. de Araújo Jorge (“Sempre que te encontro, é pra sempre. Sempre que me afasto, é pra nunca, e já que nunca mais te encontro… é pra sempre.”) e de Florbela Espanca (“Eu quero amar, amar perdidamente. Amar só por amar.” Era os motes que a juventude apaixonada sabia de cor e vivia intensamente. Como se conselhos fossem.
Entre tantos e apaixonados jovens, Gessé e Alcina não poderiam ser diferentes. Amavam. Amavam tanto que a auréola do respeito trabalhava também como se uma forte redoma fosse. Um amor puro, dentro de uma redoma de vidro blindado.
Mas nem tudo começou tão facilmente. Gessé trabalhava numa empresa multinacional do ramo das comunicações e ali conheceu Kátima, também funcionária da empresa. Os dois passaram a conversar mais assiduamente, dando a entender para alguns que um namoro estava nascendo. Nada além de amizade.
Os assuntos das muitas conversas eram quase sempre sobre livros, literatura e preferências pessoais de um e de outro. A amizade fortaleceu-se e até espraiou-se por outros lugares, como bares e lanchonetes.
Num desses encontros furtivos, aparentemente sem qualquer segunda intenção, Kátima citou o nome de uma irmã: Alcina, alguns poucos anos mais idosa que ela. O nome passou despercebido por Gessé que, naquele momento, com namoro fixo com outra jovem distante dali, não estava interessado em trocar fulana por beltrana. Era apenas um encontro e mais uma conversa entre amigos de trabalho numa das muitas horas vagas.
A literatura sempre tinha ponto importante nas conversas entre os dois amigos. Machado de Assis, Lima Barreto, Agripa Vasconcelos e os que dominavam as mesas literárias naqueles tempos, J. G. de Araújo Jorge e o escritor francês Antoine du Saint-Exupèry, cuja obra viraria obrigatória e alguns livros se tornaram “livros de cabeceira” de muitos.
Eis que, como se pretendesse insistir, Kátima voltou a citar Alcina, assegurando que a irmã era fervorosa apreciadora dos títulos “Terra dos homens” e d´o “Pequeno príncipe”, além de “Vôo noturno”, todos escritos pelo escritor-aviador.
Aquela insistente dica, pode-se dizer, aproximou Gessé de Alcina e os dois finalmente foram apresentados formalmente. Nascia ali algo diferente, parecendo que ambos já se conheciam há séculos. Empatia pura.
Encontros, encontros e mais encontros. Nascia um namoro, respeitoso como todos daquela época. Namoro em casa, com hora para chegar e para sair. Passeios, quase nenhum. Era assim que os dois se satisfaziam.
Por motivo alheio à vontade dos dois, Gessé precisou se ausentar da cidade onde morava. Um rompimento brusco mudaria quase tudo. Algo que tomava ares de um belo quadro não pôde continuar sendo pintado. Foi morar no sudeste, de forma definitiva. Fincou raízes.
O tempo, dizem, muda tudo. Ou não. Em alguns casos pode até enfatizar mais ainda. E isso realmente viria acontecer naquele relacionamento que tinha tudo para dar certo. Algo poético, bonito, puro – tudo levava para a formação de uma bela família.
Quando tudo parecia consumado, uma surpresa. O telefone toca à procura de Gessé. A suavidade e a beleza da voz feminina ajudaram a identificação, apesar do distanciamento de alguns meses. Era Alcina do outro lado da linha. Telefonema vindo da cidade onde os dois iniciaram um poético envolvimento.
– Bom dia!
Surpreendido por receber tão poucos telefonemas, Gessé atendeu:
– O quêêê?! É vocêêêê mesma?!
Demonstrando alegria incontida por ter alcançado seu objetivo, Alcina apenas confirmou:
– Sim! Sou eu mesma. Estou aqui e quero me encontrar contigo, de preferência hoje.
Lamentando ter que adiar um encontro que com certeza seria bom, Gessé respondeu:
– Hoje, infelizmente, não será possível, pois tenho uma prova na faculdade. Pode ser amanhã?
Com tudo planejado conforme imaginara, Alcina diz radiante:
– Pode, claro. Só vou embora após esse nosso encontro.
Pegando algo para anotar, Gessé responde:
– Me passe o endereço de onde você está. Pode ser à noite?
Alcina, mais feliz ainda, responde:
– Melhor que seja a noite, sim.
A distância para o deslocamento não era tão grande, e a noite era apenas uma criança. Sem pressa, Gessé se dirigiu ao encontro. Chegou no endereço anotado. Tocou a campainha da portaria, no que foi prontamente atendido.
– Vim falar com uma senhora que está me esperando no apartamento tal, disse Gessé ao porteiro.
– Um minuto só. Preciso confirmar.
Após falar pelo interfone, o porteiro veio e abriu a porta, autorizando o acesso.
Gessé entra no elevador e sai no andar previsto. Toca a campainha da porta e essa é aberta por uma verdadeira deusa. Linda, sorridente, com cabelos compridos compondo a moldura de um corpo pequeno e atraente. Um longo abraço e um beijo demorado selavam e reiniciava um namoro que o tempo interrompera.
Uma bebida foi servida. A porta de um quarto se abriu e dele saiu Germana, uma amiga. Aproveita para um rápido cumprimento e sai para se divertir, sabendo que havia algo programado para acontecer.
– Gente, boa noite, e fiquem à vontade!
Sós, Gessé e Alcina conversaram minutos e horas. Alcina pediu licença e foi ao banho. Ao sair do banho voltou ao quarto e pôs roupa de dormir – ou, de deitar! – e voltou para continuar a conversa.
Gessé era a visita. Sugeriu banhar também, mas não tinha roupa limpa para trocar. Alcina ofereceu-lhe uma toalha e o roupão que provavelmente seria de Germana. Nada de constrangimento. Afinal, os dois estavam a sós no apartamento.
Na volta do banho, Gessé percebeu que Alcina usava uma roupa de dormir muito fina, quase totalmente transparente. Observou, também, que a namorada usava por baixo dessa roupa, apenas uma calcinha preta, e sem o sutiã.
Conversas. Troca de carinhos. Beijos prolongados, enquanto o tempo passava rápido, caminhando para o dia seguinte.
Em vez de pegar Gessé pela mão e conduzi-lo para o quarto e para a cama, Alcina voltou ao banheiro, escovou os dentes e foi deitar. Tudo que poderia ter acontecido naquela noite acabou ali. Não aconteceu a noite de amor e sexo, que talvez os dois quisessem. As gerações daqueles anos não tinham pressa nem maldades.
Gessé imaginava casar com Alcina. Casamento cheio de pompa, católico e civil, com familiares e padrinhos e, só então, a realização da lua de mel paradisíaca.
As coisas acontecem quando estão destinadas a acontecer. Tudo tem seu dia e hora. Se os dois estiverem unidos pelo destino, ainda que noutro plano o encontro acontecerá e a felicidade será completa.