Apolinário dirigia devagar rumo a Caruaru quando avistou, ao longe, um pequeno carro estacionando no acostamento. Ao parar, desceu uma mulher olhando o pneu traseiro murcho. A jovem senhora iniciou uma série de inúteis pontapés. Apolinário parou seu carro, e foi acudir à dama solitária.
Ela chutava o pneu, e chorava. Ele pediu calma, estava ali para ajudar. A distinta respirou fundo, voltando a si como se estivesse em transe.
Apolinário levantou o carro rodando o macaco, retirou o pneu furado, colocou o estepe. Enquanto realizava a troca, a madame não deu uma palavra. Ela percebeu que não tinha retribuído a gentileza do senhor. Pediu desculpas, disse que estava com a cabeça cheia de problemas e com ódio no coração. Que ele perdoasse. Apresentou-se como Flávia.
– Muito Prazer, Apolinário. Olhe aqui minha amiga, nenhum ódio vale a pena, aconselhou o gentil homem.
– Minha raiva é grande. Vontade de matar. De qualquer maneira, desculpe e obrigado. Respondeu a morena com a alma infeliz.
Apolinário logo chegou à Caruaru. Ele queria curtir as peças de artesanato, a cultura popular do Nordeste. Viajava para distrair-se.
Almoçou no hotel, descansou. Ao entardecer fez uma visita à feira, aos pontos de folclore, recordando a finada Marilda que gostava tanto da Feira de Caruaru, foram 23 anos de casamento.
Jantando no Restaurante Chapéu de Couro, percebeu que a senhora do carro, a irada Flávia, estava em uma mesa tomando uísque, desacompanhada.
Ele estava terminando o jantar, quando percebeu uma pessoa encostar à frente da mesa. Apolinário levantou a cabeça, era a moça zangada, estava sorrindo. Perguntou se podia sentar. Apolinário puxou uma cadeira, ato contínuo ela sentou-se elegante e iniciou a conversa:
– Pensei no que você falou. É verdade, raiva mata, deixa o coração ferido. E a vida é uma só. Vou tentar superar a bordoada que recebi, e não se fala mais nisso. Agora conte sua vida. Quem é você, cavalheiro gentil?
Apolinário resumiu sua vida. Era de Maceió, estava em viagem solitária pelo Nordeste, sem roteiro predeterminado. Queria refletir sobre sua nova vida, viúvo há seis meses. Não tinha data marcada para voltar.
Flávia achou a história muito interessante. Conhecia bem Alagoas, contou reminiscências, parte da infância morando em Maceió. Enquanto ela falava Apolinário analisou a companheira acidental.
Devia ter entre 35 a 40 anos, pele bem cuidada, morena. O braço parecia porcelana. Rosto redondo, cabelos pretos escorridos, bem tratados. Olhos negros vivos como se estivessem acesos, penetrantes, por cima de um nariz levemente achatado. Exalava sensualidade e mistério. Sentiu que havia um grande problema em sua alma, daí esse rancor. Notou uma marca de aliança na mão esquerda. Seria casada?
Ficaram naquela mesa por mais de duas horas em conversa descontraída, alegre, com o acompanhamento do velho uísque. De repente, Flávia olhou nos olhos de Apolinário, pegou-o pela cabeça, puxou-o, deu-lhe um beijo na boca. Correspondida, ficaram a chupar línguas. Ela pediu sorrindo.
– Quero ir pra cama com você, agora! Tem que ser agora, antes que desista, não quero desistir.
Rápido ele pagou a conta. Sem esperar pelo troco saíram. Entraram no carro de Apolinário, partiram em busca de um motel à beira da estrada. Flávia durante o percurso beijava seu pescoço, alisava-o, não se falaram.
Ao entrar no quarto do hotel, ela pediu, “Beije aqui meu amor!”
Apolinário obedeceu, fizeram amor até mais tarde.
Depois do êxtase, corpos separados, enquanto ele olhava para o teto, sentiu que Flávia chorava, e aumentava o choro. Estava desesperadamente histérica, lamentando-se, pedindo desculpas como se estivesse falando com outra pessoa.
– Seu bosta! Você foi o culpado, você me traiu!
Apolinário conseguiu acalmá-la. Flávia contou sua vida.
Era casada, dois filhos já rapazes, morava no Recife. No dia anterior, ao entrar no escritório, flagrou o marido transando com a secretária no tapete Uma prima, que implorou um emprego. Em casa o marido tentou justificar. Flávia não conseguiu dormir. Pela manhã pegou alguma roupa e partiu no seu carro rumo à fazenda de uma amiga no sertão. Ninguém sabia onde ela estava. Desligou celular e partiu, com toda raiva, ódio no coração. Estava planejando matá-lo, quando encontrou Apolinário, percebeu que não era a solução. No restaurante, bebendo, armou outro tipo de vingança. Foi o ódio que impeliu transar com ele. Estava arrependida, com sentimento de culpa, mas a raiva não havia passado.
Ele ouviu com atenção enquanto trocava de roupa, e admirava aquele belo espécime de mulher.
Já vestidos, ele abraçou-a, deu um cheiro nos cabelos.
– Agora vá dormir no hotel. Amanhã visite sua amiga, depois volte para sua família, você é uma pessoa especial. Não se sinta culpada pelo que aconteceu. A raiva é uma emoção cruel, muito forte, você agiu impulsionada pelo sentimento de vingança. O que aconteceu foi melhor que mandar matá-lo, tenho certeza. O segredo é nosso, ninguém precisa saber o que houve entre nós. Eu amei essa noite, jamais esquecerei.
Saíram do motel até o carro de Flavinha. Ela alisou a cabeça do parceiro, deu-lhe um beijo na boca. Olhou em seus olhos e cochichou: “Amei lhe conhecer, essa noite marcou minha vida.” Desceu do carro do amigo e sem olhar para trás, caminhou lentamente em direção a seu carro. Deu a partida e desapareceu na estrada escura.