Guilherme Sobota, O Estado de S. Paulo
12 Janeiro 2019 | 03h00
A perspectiva para 2019 na literatura não é das mais tranquilas: com a crise nas grandes redes de livrarias, as editoras devem buscar métodos alternativos de difusão dos livros e por enquanto só se pode especular no que o embate frequente entre a classe artística e o governo federal vai resultar. Ainda no fim de 2018, porém, pedimos indicações de nomes a seis escritores, críticos e leitores atentos da literatura contemporânea nacional: o que esperar da literatura brasileira em 2019?
Os “jurados” foram: Walnice Nogueira Galvão, Silviano Santiago, Marcelino Freire, Heloísa Buarque de Hollanda, Ana Paula Maia e Schneider Carpeggiani. Os nomes que eles indicaram, respectivamente, foram: Eugênia Zerbini, Conceição Evaristo, Sued Hosana, Adelaide Ivánova, Gustavo Pacheco e Socorro Acioli. Saiba o que cada um dos autores planeja para os próximos 12 meses.
*Silviano Santiago é escritor, crítico literário e professor emérito da UFF.
Planos de Conceição Evaristo: A escritora não pôde atender a reportagem por estar em viagem de férias, mas sua assessoria informou que os planos são de se dedicar à escrita este ano. Em 2018, Conceição participou de dezenas de eventos em várias partes do Brasil, foi homenageada no Flink Sampa e concorreu a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Mesmo com a agenda cheia, ela lançou o romance Canção Para Ninar Menino Grande (Unipalmares).
Trecho:
Canção Para Ninar Menino Grande (Editora Unipalmares)
Uma carta escrita em papel de seda, abandonada tal qual o corpo violentado de uma mulher, ao lado de um não desejado homem adormecido depois do gozo, jazia sobre a mesa. Em letras desenhadas com esmero, podia-se ler a repetida frase: “Eu te amo, eu te amo”. Fio Jasmim pousou sobre a folha, que balançava ao vento, um descuidado olhar; já sabia de cor todo o conteúdo. Tina lhe escrevia quase sempre. Ele tinha inúmeras cartas dela e não sabia mais o que fazer com tantas folhas. Muito menos, com o amor da moça. Devolver as cartas, podia; mas, sem elas, como convencer a sua mulher que ele, primeiramente, havia sido vítima do assédio sexual e, com o tempo, do amor louco da moça? Não, ele não era o culpado. A moça sabia que ele era casado e, mesmo assim, se oferecia. Lá estavam as palavras dela, escritas por ela, assinadas por ela. Tina Maria Perpétua.
Fio Jasmin novamente percorreu o olhar sobre o papel. Não podia deixá-lo sobre a mesa como se fosse um esquecimento. Já fizera isto várias vezes. Esquecera as cartas de Tina sobre a escrivaninha, sobre a mesa da cozinha, sobre a pia do banheiro e, um dia, até debaixo do travesseiro. Sabia que a sua mulher lia e engolia as apaixonadas declarações da outra, sem nada dizer. Fio amassou com força o papel de seda. O amor de Tina doeu-lhe entre os dedos. Pensou na moça com carinho e desejou a passividade do corpo dela. Fio Jasmim estava com 44 anos e, desde os 20, elegera Pérola Maria como sua esposa em cerimônia religiosa e civil. Viviam bem, segundo as palavras dele. A fala de Pérola, nem eu, nem Tina alcançamos.
Ana Paula Maia: “Autor do ótimo livro de estreia "Alguns Humanos". Para 2019 ele aposta em mais uma publicação.”
*Ana Paula Maia é escritora, autora de Assim na Terra Como Embaixo da Terra, vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura 2018 na categoria romance.
Planos de Gustavo Pacheco: São dois projetos para 2019. O primeiro é a publicação de um livro (Mundo Equívoco, título provisório) que vai reunir as crônicas do autor publicadas na revista Época e outros locais. “As colunas não falam de assuntos correntes (bom, pelo menos não de maneira direta...), foram pensadas e escritas para serem lidas com interesse a qualquer tempo. Contam histórias de personagens reais, a maioria escritores e poetas”, diz. O outro projeto é seu segundo livro de contos, que chama provisoriamente de O Livro Verde. “Já escrevi um dos contos e vou escrever outros em 2019, mas o livro provavelmente só será concluído em 2020 - ou depois…”
Trecho:
A vida com Sêneca (publicada na revista Época)
Conheci o escritor português Gonçalo M. Tavares na Feira do Livro de Guadalajara, no México. Ele participava de uma mesa de literatura europeia contemporânea com escritores que não tinham nada a ver uns com os outros além do fato de morarem no mesmo continente. Um desses escritores era a sueca Camilla Läckberg, autora de romances policiais com mais de 20 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo. O esforçado mediador perguntou aos participantes da mesa o que eles recomendariam como leitura aos jovens estudantes da rede pública que formavam a maioria da plateia. Läckberg respondeu que desde pequena lia de tudo, da Ilíada a Sidney Sheldon, e que um bom leitor não deve ter preconceitos e ler desde os clássicos até os livros mais descartáveis. A resposta foi aplaudida efusivamente pelo auditório. Ao chegar a vez do Gonçalo, ele disse que sempre se espanta quando encontra alguém que lê livros ruins, porque somos todos mortais e, portanto, não teremos tempo para ler todos os livros do mundo. Assim, se há tantos livros bons para ler e uma pessoa escolhe ler livros ruins, ela se comporta como se tivesse tempo de sobra; como se fosse imortal. “Então, quando conheço uma pessoa que lê livros ruins, tenho vontade de dizer: muito prazer, é a primeira vez que encontro um imortal”, disse ele ao concluir sua fala, produzindo um silêncio perplexo na plateia.
Schneider Carpeggiani: “Eu indico o novo romance da escritora cearense Socorro Acioli, o primeiro quase cinco anos após o elogiado Cabeça de Santo. Ela tem me contado muito sobre o processo de composição da obra que parte da história real de uma igreja no Ceará, na região dos índios Tremembés, que ficou enterrada por mais de 40 anos. O nome deve ser Oração para Desaparecer. Em termos de literatura estrangeira, a Todavia prometeu o segundo volume dos diários de Ricardo Piglia"
*Schneider Carpeggiani é editor do jornal literário Suplemento Pernambuco e doutor em teoria literária pela UFPE.
Planos de Socorro Acioli: Socorro tem quatro novos projetos para 2019. Dois livros saem pelo selo Seguinte: um teórico e prático sobre construção de narrativas e um romance juvenil, Ópera do Medo, ambientado no Theatro Municipal de São Paulo. Em abril, a editora Dummar lança Sobre os Felizes, reunião de 50 textos publicados no jornal O Povo entre 2015 e 2019. O quarto é Oração para Desaparecer. “O romance é fundamentado na mística dos Tremembés de Almofala, os legítimos donos da terra, homens e mulheres de grande valor, com um repertório de fé, costumes e vivência que admiro profundamente”, diz Socorro. Abaixo, um trecho do romance inédito.
Trecho:
Oração para Desaparecer
Capitulo 1 - Os ossos de Rosa não estão lá
Os pesadelos voltaram. Sonhei de novo com a cena do meu desespero, atravessando aquela horda de loucos, gritando mais alto que eles, para anunciar que não encontrei os ossos de Rosa na igreja. Os ossos de Rosa não estão lá, era o que eu dizia, a frase final do mistério que cobriu a todos nós e devorou minha vida. Acordei assombrado com a lembrança dos olhos esbugalhados e as palavras que atiravam em direção à minha desgraça. Só na manhã seguinte vi ao espelho o quanto minha imagem era aterradora, piorada pela confusão que a lua cheia evoca. Nos pesadelos eu vejo tudo, vejo a mim e aos outros naquela noite que o destino nunca teve a decência de me explicar.
Duas coisas me causam estranhamento hoje. Primeiro, o fato de voltar a ter pesadelos justamente quando eu vinha me sentindo bem, depois de tanto tempo. Melhorei nos últimos meses, mas hoje posso até dizer que chegou aqui uma alegria. Não saiu de dentro de mim, veio de fora e entrou. Esquecer minha tragédia será impossível, eu sempre soube. Mas ao menos consegui sentir algo bom que há anos não me tocava. Sem motivo algum, veio como se fosse brisa do mar de Almofala, um beijo do Vento Leste, uma tontura feliz, um estremecimento, já não sei explicar coisas boas. Sei falar muito bem, porque é isso que venho fazendo até aqui, do quanto é devastador sofrer pelo coração. Do quanto é incontrolável a dor de amar alguém com devoção e desejo, do quanto o corpo nunca esquece quem se entregou plenamente, com todas a pele, as células, da leveza ao êxtase. Do absurdo que é viver sem saber o que decidir diante dos grandes impasses. Posso levar horas percorrendo devaneios sobre as injustiças. A felicidade exige uma coragem que eu não tive, não tenho, nunca mais terei. Eu perdi tudo.
Heloísa Buarque de Hollanda: “Adelaide já é o que se poderia chamar de poeta madura. Domínio total de sua linguagem ao lado de uma enorme coragem de abrir a caixa preta dos não-ditos das mulheres hoje, usando como instrumento poético sua própria experiência e seu próprio corpo. Intuo que Adelaide já é a grande referência da poesia da novíssima geração de poetas.”
*Heloísa Buarque de Hollanda é escritora e professora emérita da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Planos de Adelaide Ivánova: Dois livros saem em março, pela editora Macondo, de Juiz de Fora. Polaróides é na verdade seu primeiro livro de poesia, publicado em formato digital em 2014, que agora ganha forma física, com textos inéditos. 13 Nudes sai ao mesmo tempo, um “livrinho fofo de amor”, segundo a autora, com um posfácio experimental de Érica Zíngano. A editora de Adelaide, a bola.gato verlag, vai ganhar site e os trabalhos da autora estarão lá disponíveis. “Fora isso continuar trabalhando pra pagar minhas conta, tentando desmantelar o patriarcado neoliberal”, afirma.
Trecho (três poemas inéditos):
A língua
pra Italo
Quebro aqui, menino, este silêncio, que
dez burocráticos anos já dura, evitando até
esta noite memória vazia de doçura,
mas que agora só me impediria de falar
contigo. E já que és tão poeta e tão bonito,
reavivo do trauma e do algoz a língua
materna, não porque tenho algo a te dizer
mas porque a carne que lembra também
sofre de amnésia. Hoje eu quero desarticular
medo, tristeza e regra, afinar com o meu o
teu desejo, falar putaria na cama naquele
idioma que há muito abandonei, pois se a língua
do inimigo é a única que dominas que seja essa
minha vingança: treparei contigo em português.
pro meu amante, quando atinge a maioridade
pra Ewout
meu bem, o meu lugar é onde você quer que ele seja
belchior
saiba que você chegou no dia
que belchior morreu e que eu
dei pausa no 'coração selvagem'
pra te ouvir falar – e deus
você fala mais do que o homem
da cobra – e que isso se chama
amor, de certo modo
você saía de dentro da sua mãe
enquanto eu cheirava loló
e ouvia chico science nas ruas
de uma cidade latinoamericana
da qual você nunca ouviria falar
até me conhecer, 20 anos depois
que bom que você está aqui
e posso testemunhar esse ano
a mais nos seus ossos
que parecem continuar crescendo,
como sua crina, o mato que
eu mais amo, e que bom que sou
eu quem vai cortá-lo, porque
você me deu a honra
é seu aniversário de 21 anos
eu te olho abismada
não fico exatamente feliz
e você deve sentir
pena de mim também
talvez
mas não é isso que une todos
os amantes, a tristeza?
os anos noventa
você não estava lá nas coisas mais decisivas da minha vida
mas é assim mesmo: historiadores e arqueólogos
nunca estiveram presentes pra testemunhar
os acontecimentos isso fazem os jornalistas e os
videntes você era apenas um menino quando
kurt cobain morreu nem poderia ainda saber o dano
que causaria sua existência de crisálida taurino e
primaveril quando meu destino cruzasse com o seu
e andaríamos de mãos dadas e suando verão afora
como se fosse o primeiro (e era) berlim não era
tão esplendorosa quantos seu cachos jakob mas você
nunca soube o que foi ter 16 anos em recife na década
de noventa FHC presidente desemprego torneiras secas
filariose cólera sem vale do rio doce mas tinha chico science
abril pro rock o pior é agora não tem berlim não tem recife
não tem chico science não tem kurt cobain nem você mas FHC
ainda tem
Walnice Nogueira Galvão: “Aguarde em 2019 um romance biográfico sobre nossa imperatriz Teresa Cristina, uma mulher interessantíssima, esposa de D. Pedro II, que está sendo escrito por Eugenia Zerbini. Esta escreve bem, é culta e inteligente, e se dedica há anos a uma vasta pesquisa, que a levou até Nápoles, entre outros lugares, para palmilhar a trajetória da imperatriz. Eugênia ganhou o prêmio Sesc com seu romance de estreia, As Netas de Emma (sendo Emma a Mme. Bovary), em 2005, tendo depois publicado dois livros de contos, Luciferina e Harém.”
*Walnice Nogueira Galvão é crítica literária e professora emérita da FFLCH-USP.
Planos de Eugenia Zerbini: “Existe um dito segundo o qual Nações felizes e mulheres honestas não tem história. Aceitei esse desafio. Princesa napolitana, Teresa Cristina é popularmente lembrada apenas pela decepção que causou no jovem imperador, por ser pouco bonita, além de mancar. Em Para Você Se Lembrar De Mim (título provisório) fui além disso”, explica a escritora. Ela acredita que há um olhar atual no texto ao ter refeito o início do romance, “fazendo a imperatriz assistir ao incêndio que destruiu o Museu Nacional, originalmente Paço de São Cristovão, sua casa, local onde morou”. Teresa Cristina nasceu em 1822 e faleceu em 1889, coincidindo seus 67 anos de vida com o período que durou o império brasileiro. O livro está em negociação com uma editora.
Trecho:
Início do romance Para Você Se Lembrar De Mim (inédito)
Atravesso o cerco das labaredas para ver de perto o museu arder. Meu coração - até então frio com o sopro do Eterno - queima junto com ele. Antes que o telhado caia, lanço-me em direção ao andar superior, procurando meu oratório. Busco com os olhos o teto abobadado com a pomba do Espírito Santo pintada ao meio. Criador meu, tudo isso era mesmo necessário?
Meu olhar confunde-se na fumaça, que me tolhe a visão. O que me é permitido identificar, na parede lateral, são os vitrais que me foram presenteados por meu marido. Dante e Beatriz em um deles; Torquato e Eleonora no outro. Esse meu olhar será o último que irão receber. Em segundos, o vidro colorido estilhaça, sem que o ruído da explosão me cause espanto. Fora a mim, creio que não irão fazer falta a mais ninguém. Em meio ao descaso e incúria, quem teria interesse em se debruçar sobre a leitura da “Divina comédia” ou “Jerusalém libertada”? O teto desaba.
O que me resta é deslizar por todos os espaços que, embora redesenhados depois de minha partida, reconheço como meus. Esta foi minha casa, antes de ser museu. Mais que minha casa, esse foi meu lar. Meu lar, com as alegrias, tristeza e mal-entendidos que o termo comporta. Passo os olhos ao redor desse meu mundo que arde.
Os deuses podem ter concedido o fogo aos homens, mas com ele veio também o grande incêndio. Neste momento, tudo o que foi meu queima. Do mesmo modo que ardeu Pompéia um dia, vizinha à minha Nápoles natal, de onde me chegavam tantas belas peças antigas, valiosas, enviadas por meu querido irmão, o rei. Itens que, poupados do apetite das lavas do Vesúvio, vieram encontrar jazigo perpétuo nas cinzas do descuido, às margens da baía da Guanabara - o seio do mar, como a chamavam os índios tupis. Ninguém foge aos ditos do Destino. Meu consolo é ter escutado que a morte pelo fogo é a menos solitária das mortes porque nele não terminamos, nos transformamos. Não é possível transformar-me em chama. Estou morta há 130 anos.
Marcelino Freire: “Minha indicação vai ser diferente.
Explico: tenho acompanhado muito o movimento da poesia falada.
O movimento de poetas que não têm livros publicados — por enquanto.
A poesia é publicada pela fala (vide o sucesso do filme Levante).
Recentemente, na Balada Literária em Salvador, dentro do Sarau da Diversidade, conheci a poesia de Sued Hosana.
Uma poesia que fala com o corpo, a voz, a cabeça erguida, o olho aceso.
Ele (é um rapaz que se denomina "não-binário") foi ovacionado pela platéia, que pouco conhecia sobre este poeta baiano, estudante da UFBA.
Quero trazê-lo em breve para São Paulo. Com certeza, ele irá impactar no circuito de saraus e slams.
Indicando a Sued Hosana, quero falar da força da poesia com temática GLBT e dizer que a literatura que tem sacudido o País (e que tem me interessado mais) é a literatura feita nessas quebradas — movimento dos saraus e batalhas e slams de resistência.
É isso.
Em resumo: Sued vai dar o que "falar" dentro do circuito de poesia "falada".
A literatura que cada vez mais me interessa vem daí.”
*Marcelino Freire é escritor, autor de, entre outros, Bagageiro (Record, 2018).
Planos de Sued Hosana: “Sou uma preta bisha-travesty como diria Linn da Quebrada, estudante de pedagogia, cantora, escritora, poetisa e performista”, apresenta-se Sued Hosana, direto de Salvador. Ela conta que a relação com a literatura começou no ensino fundamental, e a vontade de criar suas próprias histórias a levou para a composição de letras de música e poesia. Além da atuação no slam, ela faz parte do coletivo MAMBXS, “uma banda perfopoliticomusical”, que trata de questões de raça, gênero, sexualidade por meio da música negra, e com esse projeto pretende lançar, em 2019, clipe e música.
Trecho:
Trecho de KATANA
Ah minha palavra é tipo katana cortando as bananas que tentaram me jogar
Bacana!
minha mente insana não deseja fama nem grana, mas revolucionar nação
As preta pari e nos gera essa geração
e tô na visão antes que seja tarde
construindo união com muita coragem
se aponta o dedo só pra preto
a cara nem arde
COVARDE!
não tô aqui brincando, não tô aqui de biscoitagem
e as miragem branca a gente já sabe
cabe a mente firme e pouca si passagi
a vida cobra
não temos cota
pra essa passagem
se toca meritocracia
é uma viagem
casa cheia
barriga vazia
a fome é a linguagem
a fome é da linguagem”