RIO - O ocaso do socialismo real, simbolizado pela queda do Muro de Berlim, produziu efeitos também no Brasil , sobretudo em sua esquerda, que se viu destituída da principal referência de fato existente, que a acompanhara durante a maior parte do século XX. As transformações de 1989, acompanhadas do fim da União Soviética dois anos depois, eliminaram o grande exemplo material do movimento comunista, o que deixou grande parte da esquerda, comunista ou não, à deriva — e a direita, por sua vez, em posição favorável para cantar vitória.
O golpe foi mais forte nos partidos comunistas, PCB e PCdoB. O último ainda conseguiu manter boa coesão interna, por ter independência em relação a Moscou. O “Partidão”, contudo, era diretamente ligado ao PC soviético, e entrou, em poucos anos, em uma guerra civil interna, entre os que queriam dissolver o partido para fundar um novo e os defensores de sua manutenção. O lado vitorioso seria o grupo de seu presidente, Roberto Freire, que, em 1992, declarou a extinção do então PCB e a fundação do PPS como substituto.
A nova sigla herdou registro eleitoral e patrimônio da agremiação, o que fez com que os derrotados, leais ao ideal comunista, recomeçassem a trajetória eleitoral do zero. Refundado em 1992, o PCB ainda existe, mas é inexpressivo. Já o PPS, hoje renomeado Cidadania, cada vez mais enveredou para a direita, até apagar as raízes. No segundo turno do ano passado, Freire declarou-se neutro:
— Tivemos muitos ex-militantes de perspectiva bastante ortodoxa que vão de um extremo ao outro. Quando há uma percepção dogmática, você muda facilmente de um dogma ao outro — disse Sidnei Munhoz, professor de história contemporânea da Universidade Estadual de Maringá e da UFSC. — As pessoas olhavam para aquele mundo quase como se fosse uma expressão do paraíso, não analisavam os modelos de forma crítica. Quando ele vem abaixo, perdem então qualquer perspectiva analítica.
Socialismo petista
Já na época o maior partido de esquerda do Brasil, o PT também não saiu ileso. Sua composição heterogênea, que incluía sindicalistas mais interessados em demandas concretas do que na revolução, intelectuais ligados à Igreja Católica e setores muito à esquerda, com vários matizes entre as alas, não conferia uma identidade precisa ao partido, que tinha grande indefinição sobre o seu projeto de sociedade.
Embora os setores majoritários fossem críticos aos regimes do Leste europeu, em seu V Encontro Nacional, em 1987, o partido afirmou um compromisso com o socialismo, assinalado, em uma vertente democrática, como um objetivo estratégico. Setores petistas de caráter trotskista recebiam com otimismo as reformas promovidas por Mikhail Gorbachev desde 1985, e não consideravam a possibilidade de uma restauração da ordem capitalista no Leste europeu. Pelo contrário, a perspectiva geral era de avanço rumo à concretização da utopia socialista.
A crise manifesta na queda do muro, aguçada depois pela dissolução da União Soviética, provou que o prognóstico otimista era incompatível com a realidade. Na nova etapa mundial, caberia à esquerda uma posição defensiva:
— Na época pós-1989 e, principalmente, 1991, com a desagregação da URSS, temos a expansão da ordem capitalista, inclusive de modo bastante voraz. Ou seja, muitos direitos sociais conquistados ao longo de décadas serão desfeitos — afirmou Munhoz.
As mudanças globais esfriaram a hipótese de um socialismo petista nos anos 90. A já majoritária tendência liderada por Luiz Inácio Lula da Silva, que nunca foi socialista, ganhou ainda mais preponderância, e o partido passou a ter composição mais homogênea, com a redução da pluralidade e o reforço de posições social-democratas. PDT e PSB, os outros partidos que tinham correntes socialistas, passaram por processos parecidos.
A direita, enquanto isso, utilizou a queda como um marco de que o projeto da esquerda como um todo ruíra. No dia 4 de novembro de 1989, a cinco dias da queda do muro e 11 dias do primeiro turno, o então candidato Fernando Collor de Mello já divulgara o jingle “Pula-lá”, uma paródia do slogan de Lula que fazia referência ao isolamento socialista. A estratégia de acusar a esquerda como um todo de ter vínculos com a URSS e com o Leste da Europa e de, portanto, pertencer ao passado, se tornaria um lugar comum:
— Principalmente em 1989, mas também ao longo dos 90, havia uma referência constante dos partidos de direita à queda do muro e ao Leste europeu para avançar o liberalismo econômico, que nunca fora muito forte no Brasil, exceto em períodos episódicos. Alardeavam, como chegou a dizer Francis Fukuyama, que tínhamos chegado “ao fim da História” — disse Segrillo.