Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Coluna do DIB domingo, 28 de abril de 2024

A CHAVE DA LIBERDADE (CRÔNICA DO COLUNISTA SACRISTRÃO ANTÔNIO CARLOS DIB)

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 · 

"A chave da liberdade não está nas armas. Mas sim na cultura e na educação."
Imagem: Mural 'Education a key for the knowledge', de Barys, 2012 (Universidade de Lodz, Faculdade de Economia, Polónia)

Coluna do DIB domingo, 28 de abril de 2024

GUGLIELMO MARCONI (CRÔNICA DO COLUNISTA SACRISTÃO ANTÔNIO CARLOS DIB)
 
 
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GUGLIELMO MARCONI: os 150 anos do italiano que fez o mundo falar apagando distâncias,
 
Guglielmo Marconi foi responsável pelo desenvolvimento de um sistema de telecomunicações remotas efetivo através de ondas de rádio, nomeadamente telegrafia sem fio ou "radiotelegrafia", que tinha uma difusão considerável, cuja evolução levou ao desenvolvimento da rádio e da televisão e, em geral, de todos os sistemas e métodos modernos de rádio utilizando comunicações sem fio.
 
Há exatamente 150 anos atrás, no dia 25 de abril de 1874, Guglielmo Marconi nasceu no elegante Palazzo Marescalchi localizado no coração do centro histórico de Bolonha. Seu pai Giuseppe, um rico proprietário de terras, casou-se com Annie Jameson pela segunda vez, uma jovem irlandesa que veio a Bolonha para estudar canto e sobrinha do fundador da histórica destilaria Jameson & Sons.
 
Com seu sistema de telegrafia sem fios, Guglielmo Marconi iniciou uma das mais extraordinárias inovações do mundo contemporâneo: comunicações de rádio.

Coluna do DIB sábado, 27 de abril de 2024

LEONARDO DA VINCI (POSTAGEM DO COLUNISTA SACRISTÃO ANTÔNIO CARLOS DIB)

 

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Diz-se de LEONARDO DA VINCI 😮
 
Leonardo da Vinci foi um polimata (capacidade de alcançar a excelência em várias áreas do conhecimento) italiano do Renascimento conhecido por sua habilidade em diversas disciplinas, como pintura, escultura, arquitetura, música, anatomia, engenharia e escrita. Além de suas conquistas nestas áreas, você também é atribuída a capacidade de escrever com ambas as mãos simultaneamente em direções opostas.
 
Esta habilidade única de Da Vinci de escrever com a mão esquerda e a direita ao mesmo tempo em direções opostas é conhecida como escrita especular. Isso significa que eu podia escrever da esquerda para a direita com uma mão enquanto escrevia da direita para a esquerda com a outra mão. Esta técnica permitia-lhe evitar manchar a tinta fresca enquanto escrevia ou desenhava, pois podia alternar entre ambas as mãos.
 
A escrita especular de Da Vinci é evidenciada em seus famosos cadernos de anotações, onde estão escritos em italiano e em espelho. Isso fascinou os estudiosos durante séculos, pois gerou teorias sobre sua possível intenção de esconder suas ideias ou proteger seu trabalho de ser facilmente compreendido por outros.
 
A capacidade de Da Vinci escrever com ambas as mãos em direções opostas é um testemunho da sua habilidade manual, coordenação motora e capacidade de dominar múltiplas tarefas simultaneamente.
 
Este talento excepcional é apenas mais uma amostra da genialidade e versatilidade de um dos artistas e cientistas mais influentes da história.
 
Fonte: Fundação Caso

Coluna do DIB quinta, 25 de abril de 2024

VICE-VERSA (POSTAGEM DO COLUNISTA SACRISTÃO ANTÔNIO CARLOS DIB)

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Coluna do DIB terça, 23 de abril de 2024

DIA MUNDIAL DO LIVRO: 23 DE ABRIL (POSTAGEM DO SACRISTÃO ANTONIO CARLOS DIB)

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Coluna do DIB sábado, 20 de abril de 2024

HOMENAGEM AO DIA DO ÍNDIO - 19 DE ABRIL (POSTAEM DO COLUNISTA SACRISTÃO ANTÔNIO CARLOS DIB)(

 

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Coluna do DIB sexta, 19 de abril de 2024

CHEFIA E LIDERANÇA (POSTAGEM DO COLUNISTA SACRISTÃO ANTÔNIO CARLOS DIB)

 

 
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Coluna do DIB sexta, 19 de abril de 2024

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL (POSTAGEM DO COLUNISTA SACRISTÃO ANTÔNIO CARLOS DIB)
 
 
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Coluna do DIB quinta, 18 de abril de 2024

A BOA LEITURA (POSTAGEM DO COLUNISTA SACRISTÃO ANTÔNIO CARLOS DIB)

 

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Coluna do DIB sábado, 13 de abril de 2024

AGATHA CHRISTIE (POSTAGEM DO COLUNISTA SACRISTÃO ANTÔNIO CARLOS DIB)

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Agatha Christie (1890-1976) foi uma escritora inglesa que criou "Hercule Poirot", um detetive belga que aparece em 33 de suas obras e tornou-se um dos mais célebres da ficção policial. Agatha foi a maior escritora policial de todos os tempos. Escreveu 93 livros e 17 peças teatrais.
Agatha Mary Clarissa Miller, conhecida como Agatha Christie, nasceu em Torquay, condado de Devonshiri, Inglaterra, no dia 15 de setembro de 1890. Era filha do americano FredericK Miller e da inglesa Clara.
 
De família rica, Agatha estudou em casa com diversos professores particulares. Aprendeu piano e canto. Com oito anos iniciou sua educação formal. Passava a maior parte do tempo escrevendo poemas e contos.
 
Em 1912 conhece o coronel e piloto do Corpo Real de Aviadores. Em 1914, casa-se com o piloto inglês, de quem adota o sobrenome.
 
Quando começou a Primeira Guerra Mundial, Agatha alistou-se, como voluntária, no Exército da Cruz Vermelha.
 
Primeiro livro
Em 1917, atuando como enfermeira na Inglaterra, aceita um desafio da irmã, Madge, de escrever uma história policial em que o leitor não pudesse descobrir a identidade do assassino antes do final da trama.
 
Agatha escreveu seu primeiro livro, “O Misterioso Caso de Styles”. A trama se passa numa severa mansão inglesa – Styles – cuja proprietária é encontrada morta em seu leito, vítima de envenenamento.
 
Em seu livro, surge pela primeira vez “Hercule Poirot” o pequeno e elegante detetive belga, de chapéu coco e bigode militar, que se tornou um dos nomes mais célebres dentro da ficção policial. O livro só foi publicado em 1920.

 


Coluna do DIB quinta, 11 de abril de 2024

LÍNGUA E DIALETO (POSTAGEM DO COLUNISTA SACRISTÃO ANTÔNI CARLOS DIB)

 

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LÍNGUA E DIALETO
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Os problemas linguísticos na Idade Média são complexos, colocando o historiador diante de dificuldades metodológicas de primeira ordem se ele tenta aduzir conclusões raciais e institucionais de provas obtidas através do estudo da linguagem.
Na Europa ocidental, o latim era a língua universal da Igreja e, de um modo substancial, da administração permanente e do governo em suas instruções escritas; ser letrado significava ser
letrado em latim.
 
A latinidade da Idade Média foi modificada e tornou-se mais flexível no decorrer dos séculos, graças sobretudo aos gramáticos do período carolíngio, embora as estruturas clássicas essenciais fossem preservadas.
 
A pena dos melhores estilistas, como João de Salisbury no século XII, suporta comparação com tudo o que tenha sido escrito pelos melhores prosadores do mundo antigo.
O grego, reconhecido desde o final do século VI como a língua oficial do Império, desempenhou uma função semelhante em Bizâncio.
 
Os vernáculos continuaram florescendo, sobretudo nos dinâmicos séculos XII e XIII, quando trovadores, poetas, pregadores e professores se dedicaram cada vez mais não só à composição mas também ao registro escrito de suas obras.
 
“O que é o francês, senão um latim mal falado?”, perguntou um escritor anglo-saxão no começo do século XI; mas, por volta de 1200, a partir do tronco latino básico, já estavam completas as formas padronizadas dos ancestrais das modernas línguas românicas ou neolatinas: o fran
cês, o provençal, o catalão, o galaico-português, o castelhano, os dialetos hispânicos, os dialetos italianos, sobretudo o toscano, e uma série de outros.
 
Desenvolvimentos análogos ocorreram no mundo de fala germânica. A Inglaterra foi um caso único em seu elaborado uso do vernáculo escrito nos últimos tempos anglo-saxônicos, mas, nas terras continentais, o pleno florescimento da literatura deu-se na virada do século XIII, especialmente no alto-alemão da Alemanha meridional.
 
A Escandinávia conheceu seu momento de apogeu literário com as sagas islandesas do século XIII. Elas teriam grande efeito na padronização dos vernáculos.
O mundo de fala céltica passou por fenômenos semelhantes, e os poetas líricos galeses produziram uma obra de prestígio europeu.
 
Entre os povos de fala eslava, houve uma concentração maciça da liturgia eclesiástica no eslavônio, mas as próprias línguas passaram por uma diferenciação profunda que resultou na criação do russo moderno, tcheco, polonês e as línguas eslavas meridionais.
 
O mapa linguístico da Europa moderna adquiriu lentamente forma na segunda metade da Idade Média, com algumas das fronteiras linguísticas mostrando ser de uma surpreendente flexibilidade e mais ou menos permanentes depois do século XII.
 
O tronco linguístico predominante era indo-europeu, mas houve algumas sobrevivências de uma época muito remota, como no caso dos bascos e dos albaneses, e algumas intrusões, como no grupo fino-úgrico que, de longínquas origens asiáticas, veio a produzir com o tempo na Europa as línguas distantemente aparentadas do finlandês e do húngaro.
 
Na Romênia, a antiga província romana da Dácia, persistiu uma língua de base latina, embora maciçamente transformada por uma mistura de elementos gregos, eslavos e búlgaros.
Essa multiplicidade de crescimento e experiência linguísticos faz com que o contínuo vigor do latim e do grego seja ainda mais notável, embora analogias possam ser rapidamente traçadas com o arábico no mundo muçulmano da Idade Média e, mais adiante, com o inglês do século XX.
 
📚 E. Auerbach, Literary Language and its Public in Late Latin Antiquity and in the Middle Ages (1965); J.M. Williams, Origins of the English Language (1975); Latin and the Vernacular Languages in Early Medieval Britain, org. por N. Brooks (1982); B. Mitchell, Old English Syntax (1985)
 
 

Coluna do DIB quarta, 10 de abril de 2024

LER JÁ É O PRÊMIO (POSTAGEM DO COLUNISTA ANTÔNIO CARLOS DIB)
 
Pode ser uma imagem de 1 pessoa e texto que diz "boa Ninguém tem de de tirar nota porque lê, ninguém tem de ser premiado porque lê. Ler já é éo o prêmio. Gostar de ler, a distinção. Ziraldo lo-1932-2024"
 
 
 
 
 

Coluna do DIB segunda, 08 de abril de 2024

TANTOS ZIRALDOS! (POSTAGEM DO COLUNISTA ANTÔNIO CARLOS DIB)

 

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Coluna do DIB domingo, 31 de março de 2024

O SUDÁRIO (POSTAGEM DO COLUNISTA ANTONIO CARLOS DIB)

 

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O Sudário é tecido de linho, feito por um tecelão de qualidade profissional, que provavelmente pertencia apenas a um homem rico (por exemplo, José de Arimatéia).
 
As fibras de linho são rastreáveis até ao Mediterrâneo Oriental ou ao Médio Oriente.
A costura é idêntica a um artefato encontrado em Massada, em Israel, datado entre 40 AC e 73 DC. E o pano foi datado entre 300 AC e 300 DC.
 
Testes químicos e biológicos comprovam que há manchas de sangue no Sudário, do tipo sanguíneo AB e do grupo de antígenos MNS. Além disso, não há nenhum tipo de pigmento de tinta no Sudário – eliminando a possibilidade de que o Sudário seja algum tipo de falsificação artística extremamente inteligente.
 
O Sudário traz a imagem de um homem adulto, com um metro e oitenta de altura, cabelo na altura dos ombros e barba - um homem que sofreu crucificação à moda romana.
 

Coluna do DIB quarta, 22 de novembro de 2023

MUSSUM, UM SENHOR FILMIS! (CRÔNICA DO COLUNISTA SACRISTÃO ANTÔNIO CARLOS DIB)

 

Mussum, um senhor filmis!

A. C. Dib

 

 

 

 

 

 

                   Boa pedida do momento é conhecer um pouco mais da história de um dos mais queridos sambistas e comediantes do Brasil: Antônio Carlos Bernardes Gomes, o saudoso Mussum.

                   Para os que dançaram o samba de letras leves, bem-humoradas e cadência ágil, vibrante do grupo Os Originais do Samba e se escangalharam de rir com o pastelão de Os Trapalhões, Mussum, o filmis proporciona deliciosa viagem no tempo, de volta aos anos sessenta, setenta e oitenta, auge do conjunto de samba e da divertidíssima trupe de comediantes. Para os que não viveram tal experiência — Mussum partiu em 1994, aos 53 anos — fica a oportunidade de conhecer a vida daquele que marcou uma geração — a minha — levando aos lares brasileiros alegria contagiante na música e em humor ingênuo, despreocupado, mas praticado com maestria e talento visceral.

                   É paradoxal a vida pessoal e o humor de Mussum — a clássica situação do gênio da comédia que a todos faz rir, mas com história de vida próxima do dramalhão mexicano, ou “aquele que de todos arranca gargalhadas, chorando por dentro”. Menino paupérrimo do subúrbio carioca, filho de empregada doméstica, sem pai presente, a vida de Mussum é retratada de sua infância humilde ao auge do sucesso e da fama, com especial atenção à estreita relação entre ele e sua mãe (que seria sua principal referência e influenciadora). Imperando por toda a existência do memorável comediante, o amor entre ambos contagia e emociona o espectador.

                   Desprovida de instrução, mas temperada e diplomada na escola da vida, dona Malvina Bernardes Gomes é apresentada como dama de rígidos princípios morais, batalhadora, segura de si, dedicada aos filhos e aos ideais, enérgica e do tipo dominadora. Nutrindo profunda aversão ao “mundo do samba” — que associava a bebedeiras, boemia, vida dissoluta e malandragem — cuidou de proporcionar ao filho Antônio Carlos aquilo de que não dispôs: formação escolar. Sonhava para ele carreira de doutor, sendo grande seu orgulho quando o rebento ingressou na Força Aérea Brasileira. Mas, inexoravelmente, o chamado do samba e da arte terminou por sobressair no coração romântico do jovem — inevitável a conclusão de que ninguém segura o talento de berço!

                   Comove, ainda, o conflito entre a amada carreira de sambista nos Originais do Samba e a de humorista, ao lado de Renato Aragão, Dedé Santana e Mauro Gonçalves, o Zacarias. Tal conflito atinge seu clímax — igualmente o clímax da história — quando a escolha se mostra inevitável.

                   A reconstituição de época apresenta-se impecável, a narrativa segue límpida escalada cronológica, explorando satisfatoriamente o flashback, mas, em boa medida, o elenco é o que mais confere prestígio e qualidade ao filme. Aílton Graça, interpretando Mussum em sua terceira fase (próximo da maturidade), confirma o que já revelara na televisão: ator versátil, experiente e de amplos recursos cênicos. Primoroso o estudo que fez de Mussum. Por sua caracterização, trejeitos, expressões, chega a ser pictórica a semelhança com o retratado (chegou a fazer botox na região dos olhos para melhor arregalá-los, conforme revelou no programa Conversa com Bial). Digna de nota, ainda, a atuação das atrizes que fazem a mãe de Mussum: a consagrada Neusa Borges e Cacau Protásio (a mãe em sua primeira fase) que, muito conhecida em programas humorísticos, revela talento análogo para o drama (a cena em que o menino ensina a mãe a escrever seu nome arranca lágrimas dos olhos da atriz e do espectador).

                   A trajetória de Mussum se confunde com a história da televisão no Brasil, em seus primórdios. Novelas e humorísticos transmitidos ao vivo, com a Rede Globo dando seus primeiros e decisivos passos, firmando-se como potência televisiva. Em época de inexistência do conceito de “politicamente correto”, as piadas, gaiatices, motes e expressões escandalizariam os sensíveis e exigentes partidários da atual filosofia (Synbranchus marmoratus, peixe-cobra ou enguia-d’água-doce, também chamado de mussum “é um peixe preto e liso”, nas palavras de Grande Otelo, a quem Mussum deve o apelido).

                            Recordar os anos setenta e oitenta no Brasil é recordar Os Trapalhões, infalivelmente. Marca de amor indelével deixaram nos corações dos brasileiros. O início de noite dominical era dedicado aos Trapalhões. Um domingo sem os seus trambolhões, pontapés, cacetadas, requebros, caretas e piruetas não era domingo. Em minha casa: missa, almoço em família, siesta, futebol e Os Trapalhões, eis o domingo feliz. Na segunda feira lá estávamos todos repetindo aqueles saborosos bordões: Ô pisit! Bicho bom! Cacildis! Quero mé! Eu sou espada! Negão é o seu pasadis!

                            Seus filmes, de grandes bilheterias, geralmente lançados pela época das férias escolares, lotavam as salas de cinema. Minha irmã assistiu à comédia musical Os Saltimbancos Trapalhões uma dezena de vezes.

                            Mussum é o paradigma desse tempo em que não se precisava de muito para ser feliz, tempo de riso solto e compartilhado. Justíssima a homenagem.

 


Coluna do DIB quinta, 24 de novembro de 2022

DELEGADO SHAKESPEARIANO (CONTO DO SACRISTÃO A. C. DIB, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

DELEGADO SHAKESPEARIANO

A. C. DIB

 

                   O causo se passa em Manaus, na época áurea da borracha, princípio do Século XX, ou mais exatamente no célebre Teatro Amazonas.

                   O majestoso teatro, símbolo máximo do glorioso ciclo da borracha − que fez de Manaus notória e poderosa cidade brasileira −, foi inaugurado em 1896. Seus azulejos, importados de Portugal, convivem com peças – escadarias, corrimões, lustres e demais luminárias e outros adornos mais – trazidas da Itália. O egrégio teatro foi palco de grandes encenações dramáticas – majoritariamente francesas −, de memoráveis espetáculos e da apresentação de balés e de grandes orquestras sinfônicas. Todos – atores, tenores, músicos, bailarinos e seus espetáculos –, em regra, vinham da Europa diretamente para Manaus, para apresentação no Teatro Amazonas, sem passar por Rio ou por São Paulo.

                   Por essa época, meu avô Frutuoso, vivendo a grande aventura amazonense, conseguiu o cobiçado cargo de “fiscal do Teatro Amazonas”, o que lhe facultava assistir de graça as peças e demais espetáculos exibidos no suntuoso templo das artes. Presenciou, então, ali no teatro, bizarras e divertidas histórias, sendo uma delas a que narramos aqui.

                   Doutor Honorato Galhardo, delegado de polícia de Manaus, era um apaixonado pelo teatro. Cadeira cativa – rente ao palco – nas principais apresentações, o amor do policial pela arte era fato mui conhecido de todos os seus amigos.

                   Amâncio Pacífico, diretor teatral, sabedor da paixão do delegado pelas artes dramáticas, e devendo-lhe alguns favores, resolveu homenageá-lo. Bajulador que era, convidou o investigador a atuar em uma de suas peças. Ofereceu-lhe, então, uma modestíssima pontinha, em peça que iria estrear por aqueles dias. Sabia, confiante, que a ligeira participação não exigiria muito do bisonho ator de primeira viagem.

                   Honorato Galhardo, sensibilizado e, profundamente, honrado, aceitou de imediato o inusitado convite. Jamais havia encenado peça alguma, nem mesmo na escola. Homem de humilde origem, de pouco verniz, viu-se obrigado a trabalhar desde infante, lutando, aguerrido, pela sobrevivência. Aquilo para ele foi o coroar de uma incontida relação de amor com a beleza e a majestade do teatro.

                   O diretor Amâncio entregou-lhe o texto da peça, definindo seu papel. Doutor Galhardo comprometeu-se a decorar sua fala. Dedicado, estudou cuidadosamente o texto, ensaiando seu papel sozinho, frente ao espelho.

                   Aproximando-se a esperada estreia, Amâncio convocou o novato para o ensaio geral.

                   − Ensaio?! Dispensável! Estudei com afinco e com muito carinho meu papel, diretor. Modéstia à parte, não necessito ensaiar. No dia da estreia brilharei tanto que ofuscarei o ator principal! – disse com orgulho.

                   Chegando, então, o esperado dia, o delegado Galhardo, trajado com vestes do século XVII – botas, luvas, chapéu com plumas e de amplas abas largas, capa e espada na cinta −, era um dos mais empolgados e ansiosos.

                   De prontidão por trás das cortinas, no calor da encenação, sentiu tocarem seu ombro. Era o contrarregra, sussurrando-lhe ao ouvido:

                   − Doutor delegado, essa é a sua deixa! Pode entrar em cena!

                   Honorato Galhardo adentrou o palco, marchando com virilidade. Postando-se no meio do palco e perfilando-se, declamou tonitruante:

                   − Entra, tira o chapéu e faz uma mesura. Coloca o chapéu, puxa a espada da bainha até a metade, recolocando-a de novo na bainha. Faz novo cumprimento e sai! – bradou, encarando corajosamente a plateia.

                   Proferiu, assim, a tal “fala” e ali permaneceu parado, estático, majestático, a mirar altivamente sua plateia.

                   Os demais atores, frente ao inusitado da situação, vacilaram, parecendo atônitos e perdidos.

                   A plateia, apercebendo-se da gafe do improvisado ator, pôs-se a vaiar. E as vaias, gargalhadas e palmas, que começaram tímidas, foram crescendo em intensidade. Quando os demais atores – despertando do transe que lhes gelou, momentaneamente, os movimentos − se dispuseram a proferir suas falas, já era tarde: a balbúrdia era geral, enchendo por completo a ampla sala de espetáculos. E Honorato Galhardo ali permanecia, mudo e estático, tal qual estátua carnavalesca.

                   A direção não teve outro recurso: lançou-se mão do famigerado gancho, que, sem que as mãos que o operam aparecessem em cena, adentrou o palco, saindo lateralmente do pano, envolveu e fisgou o desastrado ator e o puxou, bruscamente, para trás das cortinas.

                   O teatro veio abaixo em ruidosos apupos, gritos e sonoras gargalhadas.


Coluna do DIB segunda, 31 de outubro de 2022

INUSITADO GANHA-PÃO (CRÔNICA DO SACRISTÃO A. C. DIB, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO

INUSITADO GANHA-PÃO

A. C. DIB

 

                   O causo se passa no interior piauiense, no início do Século XX. Por pudor – e por cautela, eis que o povo lá é bravo – julgamos de boa prudência omitir nomes.

                   Notório coronel da região, influente chefe político e senhor de muitas terras e homens, padecia, há muito, de estranho mal, caracterizado por vertigens, enjoos estomacais, anemia, apatia e calafrios. Queixava-se, ainda, de ouvir pequenos estalos e estranhos zumbidos.

                   Para sua sorte, o coronel contava com prestimoso médico, que o acompanhava quase que diariamente. Noites de sono bem dormidas, boa e saudável alimentação, passeios matinais, boas leituras, pescarias e ligeiras cavalgadas, em lombo de cavalo manso, enfim, o tratamento prescrito pelo devotado discípulo de Hipócrates era o mais prazeroso possível.

                   Praticamente, em todos os dias da semana – respeitado o sagrado descanso dominical, quebrado, apenas, nos casos de emergências −, seguia o bom doutor, montado em sua robusta mula, rumo à fazenda de seu mais ilustre e importante paciente, prestando-lhe o atendimento domiciliar.

                   De fato, no interior, a gente humilde local costumava pagar pelas consultas e diligências médicas com porco, galinha, carne de caça, peixes e cesta de frutos. E isso quando os honorários médicos não eram pagos com um caloroso abraço, um beija mão e um honesto “Deus lhe pague”.

                   O coronel, no entanto, generoso e agradecido, pagava regiamente a dedicação, a presteza e a respeitável sapiência de seu leal médico. Assim, o tratamento do coronel constituía sua principal fonte de renda. Os parcos caraminguás que recebia dos demais pacientes e consulentes, sozinhos, não fariam frente às suas polpudas despesas, já que mantinha seu filho mais velho na Capital da República, estudando medicina.

                   Passados alguns anos, esse estudante de medicina concluiu o curso, bacharelando-se. Apaixonado e idealista, o garboso e jovem médico fez absoluta questão de voltar à casa paterna, para trabalhar ao lado do pai. Tencionava dedicar e dirigir seus conhecimentos científicos aos mais pobres e necessitados, sonhando aliviar os males e sofrimentos da humanidade.

                   Certa feita, já atuando o jovem ao lado do calejado pai, foram convocados para socorrer, com urgência, o coronel, que enfrentava uma de suas mais agudas crises.

                   Como o pai se achava em povoado próximo, prestando atendimento, seu filho não titubeou: reuniu seus apetrechos, tomou da malinha e seguiu, de imediato, à fazenda do coronel.

                   Prestado o atendimento, o jovem regressou ao lar. Deparou-se, ali, com o pai – que, há pouco, também regressara de sua diligência médica −, ligeiramente tenso e ansioso, buscando, avidamente, notícias do ilustre paciente e da consulta.

                   − Não se preocupe, papai! – disse o rapaz, sorrindo e orgulhoso. − Creio que descobri a fonte de todos os malefícios que afligiam o senhor coronel. Após ouvi-lo e examiná-lo, retirei de seu ouvido um enorme e gordo carrapato. Acredito que, agora, eliminamos, em definitivo, suas tonturas, seus enjoos, seu mal-estar e o irritante zumbido que alegava ouvir.

                   − Pois meu filho – disse o pai, lívido – eliminaste, sim, a nossa fonte de renda! Foi aquele abençoado carrapato que custeou teus estudos na Capital. Oh, meu filho! – disse, desalentado. – O que fizeste? Aquele carrapatinho era o nosso ganha-pão! – suspirou.


Coluna do DIB terça, 02 de agosto de 2022

ULYSSES (CRÔNICA DO SACRISTÃO A. C. DIB, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)
ULYSSES

A. C. Dib

 

  

            Não era grego e nem, tampouco, irlandês ‒ era paulista, quatrocentão ‒ mas também viveu aventuras épicas, combatendo, com seu vibrante gládio composto por palavras seguras e cortantes, hediondos gigantes ciclopes, cães infernais, hidras ferozes, dragões-de-sete-cabeças cuspidores de fogo e a magnética e infalível Medusa.

 

            Ativo no movimento estudantil, militante da UNE, bacharelou-se em Direito pela Faculdade de Direito – Largo de São Francisco ou Arcadas, como também é chamada – da Universidade de São Paulo.

 

            Foi professor – de Direito Internacional Público, de Direito Municipal e Direito Constitucional ‒ de algumas das melhores instituições de ensino superior do Estado de São Paulo, exercitando, ainda, a advocacia, com especialização em Direito Tributário. Viveu, igualmente, fase de cartola do futebol, como diretor-presidente do Santos Futebol Clube.

 

            Mas, indubitavelmente, foi na política que Ulysses se encontrou, e gravou ‒ a laser ‒ seu nome nas luzidias folhas de aço da recente história do Brasil.

 

            Deveras, “político de raça”, como costumava dizer, designando aqueles que amam a política e que fazem desta arte seu modus vivendi, Doutor Ulysses exercitou, por anos a fio, este nobre e honroso mister.

 

            Não obstante, sua política não era – jamais foi ‒ a política rasteira, chula, eleitoreira, fisiologista, demagógica e nepotista, ou a política das raposas e dos anões, a política dos caudilhos e coronéis, mas a alta política, a grande política, a construtiva e desapegada, a política dos idealistas, dos estadistas, dos patriotas, dos sonhadores, dos gigantes públicos, a política de Pedro II, de José Bonifácio, de Juscelino, de Péricles, de Disraeli, de Churchill e de Lincoln.

 

            Assim, foi Deputado Estadual, em 1947, e, depois, Deputado Federal em nada menos que onze legislaturas, de 1951 a 1995 (nesta última, não terminou seu mandato), elegendo-se, sempre, por São Paulo.

 

            Além disso, foi Ministro da Indústria e Comércio, do Gabinete Tancredo Neves, no curto período de nossa aventura mágica de parlamentarismo republicano.

 

            Mas Ulysses, em verdade, se notabilizou por sua ingente e destemida luta contra a ditadura militar. À frente do velho MDB – Movimento Democrático Brasileiro ‒ escreveu páginas imorredouras no célebre “jogo de avanços e recuos” contra a ditadura – jogo este, à época, perigosíssimo de se jogar, custando, a uns, a vida, a outros a liberdade e, a outros mais, a cassação dos direitos políticos.

 

            Em 1973, “anticandidato” a presidente da República, disputou eleição no viciado e fatídico Colégio Eleitoral, sendo que, em verdade, valeu-se da chamada anticandidatura para denunciar as mazelas da ditadura, por todos os rincões do País.

 

            Findo o bipartidarismo, converteu seu querido MDB em PMDB, permanecendo, aguerrido, a liderar na trincheira oposicionista.

 

            Tinha sempre consigo, nos embates e refregas contra a truculenta ditadura, os inseparáveis escudeiros Freitas Nobre e Humberto Lucena, respectivamente, líderes do MDB na Câmara dos Deputados e no Senado.

 

            Foi o inconteste comandante da memorável Campanha das Diretas Já, que clamava por eleições diretas para presidente, tendo a seu lado, naquelas históricas jornadas, os não menos saudosos, Teotônio Vilela – que, pouco antes do início da inesquecível campanha cívica, perdeu cruenta batalha contra o câncer – Tancredo Neves, Franco Montoro, Mário Covas, José Richa e outros brasileiros de estatura moral gigante, movidos do mais lídimo ideal democrático.

 

            Soçobrando a Emenda Dante de Oliveira, que reinstituía a eleição direta para presidente, o Deputado Ulysses viu diluir seu sonho de galgar a presidência, eis que, das articulações vitoriosas, brotou formada a Chapa Oposicionista Tancredo/Sarney, para disputar, no Colégio Eleitoral, contra Paulo Maluf, a derradeira eleição indireta de Presidente do Brasil.

 

            Posteriormente, porém, na Assembleia Nacional Constituinte, então convocada e eleita, Ulysses se tornou tri-presidente: Presidente da aludida Assembleia Nacional Constituinte, Presidente da Câmara dos Deputados e Presidente do Partido do Movimento Democrático Brasileiro.

 

            Legou ao Brasil e a seu povo a Constituição de 1988, que batizou de Constituição Cidadã, genuína campeã, de todas as Cartas nacionais, de democracia e liberdade, e, mesmo prolixa, modelo para o mundo.

 

            Candidato a presidente em 1989, terminou derrotado, logo no primeiro turno daquela eleição.

 

            Curiosamente, mesmo reverenciando – era, em verdade, quase que adoração – o combativo Ulysses, não votei nele para presidente: engajei-me na campanha de Guilherme Afif Domingos – que, igualmente, restou vencido ‒, completamente arrebatado por seu discurso liberal.

 

            Já no segundo turno da disputa eleitoral, figurando, como candidatos, Lula e Collor ‒ este o vencedor ‒, xinguei a ambos – a cédula eleitoral era de papel, com o nome dos candidatos, para ser marcada à caneta ‒ e, abaixo dos nomes daqueles, grafei e marquei o nome de Ulysses, registrando, ao lado: “o guerreiro da democracia”. Abaixo, assinei, escrevi por extenso meu nome e, por fim, o número de meu registro na Ordem dos Advogados do Brasil.

 

            Todos os presentes estranharam a minha prolongada permanência atrás da urna, eis que o eleitor apenas marcava um singelo “x” na quadrícula posta à frente do nome dos candidatos. Hoje, o processo eletrônico não admite mais semelhantes ginásticas e proezas.

 

            Pouco antes de sua morte, Ulysses liderou os congressistas na luta – abraçada, com paixão, por toda a nação ‒ pelo impeachment de Fernando Collor.

 

            Aproximando-se o infalível impedimento, Collor, tomado de ira e desespero, atacou duramente o Senhor Diretas Já, chamando-o, dentre outras coisas, de velho gagá. Ulysses ‒ incomparável frasista que era – devolveu:

 

            ‒ Velho sim, mas não velhaco. Quem dorme com criança amanhece mijado! ‒ mandou, em alusão à juventude do Imperador/Presidente.

 

            Ulysses desapareceu em um acidente de helicóptero, ocorrido no litoral de Angra dos Reis, juntamente com sua mulher e companheira da vida toda, Dona Mora, com o Senador Severo Gomes e seu cônjuge e com o piloto.

 

            De todos os que morreram, naquele trágico sinistro, o corpo de Ulysses foi o único não encontrado. Afinal, apenas a profundeza abissal do vasto oceano seria ampla e digna o suficiente para sepultar um herói e gigante de estatura e envergadura moral como a dele.

 

            Homem incomum e grandiloquente como era, não poderia morrer de velho, no leito; necessariamente, tinha que encontrar morte incomum e grandiloquente, à sua altura.

 

            Tive a oportunidade de cruzar com meu ídolo por duas vezes distintas: uma em solenidade ocorrida na sede brasiliense da Ordem dos Advogados do Brasil, e, outra feita, em convenção nacional do PMDB, em Brasília. Em ambas as ocasiões não lhe apertei a mão: quedei-me mudo e inerte, limitando-me a observá-lo, tomado de emoção e acanhamento.

 

            Privilegiado fui, ainda, eis que o vi discursando, do alto de um palanque, em comício da campanha das Diretas Já, realizado em Brasília, próximo à Torre de Televisão. Nessa feita, quando o orador se posicionou à frente, para falar, bradei, a plenos pulmões:

 

‒ U-l-y-s-s-e-s!

 

            Meu pai, ao contrário, em determinado evento, teve a oportunidade de conversar – longamente ‒ com ele. Ulysses, aliás, era muito bom papo. Disse, então, meu pai, a seu interlocutor:

 

            ‒ Deputado, meu filho tem verdadeira adoração pelo senhor! O Senhor nem imagina. Fico até enciumado.

 

             Pois, então, leve o rapaz a meu gabinete, na Câmara, para me conhecer ‒ respondeu Ulysses. E aproveitando a deixa, indagou:

 

            ‒ E você? De quem é que você gosta?

            Meu pai respondeu gracejando, mas com honestidade:

            ‒ Deputado, o senhor me perdoe, mas eu sou é malufista! ‒ disse, rindo-se.

            Ulysses não titubeou:

            ‒ Não lhe gabo o gosto!

 

            Ulysses Silveira Guimarães nasceu no dia 6 de outubro de 1916, em Itaqueri da Serra, Itirapina, São Paulo, e faleceu no litoral de Angra dos Reis, litoral fluminense, em 12 de outubro de 1992.


Coluna do DIB terça, 12 de julho de 2022

BRASÍLIA
 

BRASÍLIA

A. C. DIB

(Publicado a 25.10.16)

 

                        Vias largas, desertas, a perder de vista. Prédios uniformes, simétricos, alinhados. Monumentos grandiosos, brancos, futuristas; figuras sem rosto, sem expressão, frias. Palácios monumentais, leves, belos, singelos, parecendo flutuar no espaço, ornados, todos eles, com os característicos arcos, maravilha proporcionada pela geometria. A beleza da linha reta, simples, delicada, despida de rebuscamentos, como parede caiada. Antítese do rococó.

 

                        Terrenos baldios, vastos, livres de habitações e pessoas, tomados pelo mais puro e selvagem Cerrado. Amplos tapetes verdes, mar sólido de gramíneas, apresentando, aqui e ali, espatódeas, sibipirunas, mongubas, flamboyants, barrigudas, paineiras, copaíbas, paus-ferro e ipês (estes roxos, brancos, róseos e amarelos).

 

                        Calçadas de concreto, algumas placas íntegras, outras trincadas, ladeadas de frondosas alamedas de árvores. Pouco trânsito de veículos, pouquíssimo trânsito de pessoas. Paisagem evocando antigos filmes de ficção científica, que tratavam de cidades desertas frente à extinção da raça humana, com seus edifícios e templos de arquitetura futurística, tomados de ventos e pássaros, com a hera – atrevida ‒ a escalar as paredes.

 

                        Terra vermelha, seca, infértil, ácida, poeirenta, fazendo surgir, aqui e ali, lá e cá, o popular lacerdinha, pequeno e simpático redemoinho que, facilmente, surgia a brincar, rodopiando e assoviando e, facilmente, morria, consumindo-se, apagando-se. Bando de pombos a ciscar pelo chão, tal qual galinha caipira, e, no topo das árvores, o piar deselegante dos amarronzados pardais. Setor de casinhas geminadas, coladas umas às outras, modestas, devassadas, despidas de muros e cercas; marcadas pelo cobogó. Bairro nobre, pontilhado por nobres mansões, banhadas pelas águas do plácido e azul Lago Paranoá. A alternância de verões de chuvas intensas e contínuas, aguaceiros sem fim, seguidos, tempos depois, da estiagem fria dos invernais meses de junho e julho.

 

                        No céu, o mais lindo pôr do sol, tingindo o horizonte de intenso vermelhão, rubor mesclado de tons amarelados e alaranjados, caliente e envolvente, autêntico Manabu Mabe. Disse, uma vez, um dos muitos desafetos de Brasília: “Um céu em busca de uma cidade”. E, a cercar-nos, o agreste Cerrado, de aspecto áspero e seco, com suas árvores baixas e enegrecidas, de casca grossa e folhas largas e espessas, avermelhadas pela densa poeira. Cupins a lembrar castelos liliputianos; casas de João-de-Barro no galho das árvores; no solo capim de pendões altos, pontilhados por sempre-vivas e dentes-de-leão. Pés de pequi, araticuns, bacuparis e lobeiras. Carrapichos. Matas ciliares, mais fechadas que o esparso cerrado, com árvores mais altas e mais frondosas, beirando córregos de águas cristalinas, correndo por entre cascalhos e leitos de argila, com lambaris escuros, deslizando à flor d’água.

 

                        A Brasília de minha infância guarda sérias diferenças da atual. Não tínhamos, então, superpopulação, engarrafamento, congestionamento, poluição, sequestros-relâmpagos, politicagem e politicalha.

 

                        Época da inocência, tempo da despreocupada simplicidade. Não dispúnhamos da fartura que hoje nos envolve, mas éramos mais felizes em nossa frugal escassez. Como não convivíamos com tanta tecnologia, tanto luxo, sofisticação e abundância, exigíamos menos, esperávamos menos, desejávamos menos. Sofríamos de menos dramas de consciência, menos problemas psicológicos, menos estresse e fobias. Morríamos menos de câncer e do coração. Não enfrentávamos AIDS. Igrejas eram igrejas, não máquinas de caça-níquel, empresas movidas a cupidez, regidas por políticos milionários e vivaldinos. Não havia tanta competição.

 

                        Brasília! Mui amada Brasília!

 

                        Amiga do peito, confidente, solidária, companheira! Mãe amantíssima e generosa! Irmã mais velha e experiente, a liderar-me e a vigiar-me! Mulher leal, dedicada e dadivosa! Amante curvilínea, linda, jovem, fogosa.

 

                        Estou em Brasília como Brasília está em mim. Brasília forjou-me. Sou o que sou – seja lá o que for! – pela força e pela ação de Brasília à minha volta, sobre mim, dentro de mim. Sou o que sou pela influência de Brasília, seja para o bem, seja para o mal.

 

                        Com suas rasgadas veredas, amplas, rigorosamente planas, a perder de vista, tendo por cobertura um céu límpido, de um azul penetrante e inebriante, com seus horizontes descortinados, vastos, largos, ilimitados, limpos, Brasília remetia-nos à ideia do absoluto, do inatingível, do estupendo, colossal, majestoso, do etéreo. Traduzia a pequenez do indivíduo, frágil, raquítico, passageiro, leve, diante do sublime; frente ao poder supremo. Era o paquiderme, em seu passo firme, a encarar, com altivez, enfado e despreocupação, a modesta formiguinha, transitando nervosa em uma de suas unhas. Brasília remetia-nos à ideia de Deus.

 

                        Melancólica desolação contrastando com sensação de liberdade. A liberdade do vento veloz, a percorrer o vazio, fazendo tremular a bandeira; balançando as longas madeixas de farta cabeleira. A liberdade do orgulhoso leão, trilhando, a passos largos, os prados da Savana Africana. A liberdade de poder mirar o horizonte, e não encontrar obstáculos, e visualizar o futuro.

 

                        Disseram-me que dei os meus primeiros passos nas areias da Praia de Copacabana. Curiosamente, tenho ainda – um ano de idade, vejam só! – lembranças desse período. Vagas memórias ‒ é bem verdade ‒, flashes fugazes, envoltos em névoa, desfocados, sem nitidez. Lembro-me de meu pai dar um nó nas duas pontas de minha camisa ‒ vestida desabotoada ‒, na altura do umbigo, depois de fazer o mesmo com a dele, para que ela não encostasse no calção de banho molhado. Depois, então, nos sentamos, calmamente, em um dos banquinhos do calçadão, para ver as cariocas desfilarem.

 

                        Acredito que tomávamos sorvete ‒ meu pai lambendo sua casquinha e me ajudando com a minha.

 

                        Tenho um sonho recorrente. Sonho, com reiterada frequência, que me encontro no ponto extremo de uma das Asas do Plano Piloto de Brasília. Às minhas costas, os últimos prédios da última Quadra da Asa, e, à minha frente, o vasto horizonte, livre de edificações, milimetricamente plano, fugindo do alcance da vista. Estou no limite, na fronteira da Asa ‒ seja Sul ou Norte ‒, marco do ponto em que termina Brasília e começa o descampado, restando, apenas, adiante o imensurável gramado, com suas árvores jovens de tronco fino. Sinto, então, um grande conforto em meu coração. Sinto o chão aos meus pés, o sangue a fluir em minhas veias, palpitando de emoção. Idêntica sensação que sentia ao passear pela Praça dos Três Poderes, coração pulsante do Brasil.

 

                        Gostava de visitá-la, acompanhado de alguma namorada, nas noites limpas de lua cheia. Sentia a magia e a mística daquele lugar, excitante, penetrando-me por todos os poros. Seu piso de paralelepípedos formando desenhos em preto e branco, seus banquinhos e monumentos, sua importância e majestade.

 

                        Neste meu repetido sonho, sinto algo que não consigo expressar. Acordo, sempre, emocionado, feliz, realizado.

 

                        Sinto Brasília!

 N. E. Antônio Carlos Dib de Sousa e Silva, ou, simplesmente, A. C. Dib, é meu parente muito próximo. Se fosse nos tempos de antigamente, de Dom João Charuto, me chamaria de tio, pois é filho de um meu primo legitimo, e neto do Tio Fruto, irmão de meu pai. Nascido em Brasília, nos tempos pioneiros, seus genitores, ele, Procurador da Justiça, e ela, Servidora Federal, criaram-no em ambiente dominado pelo estudo e pelo amor à Literatura. Bacharelado em Ciências Jurídicas, com especialização em Direito Público e Ciência Política, é Advogado Militante e Procurador Legislativo da Câmara Legislativa do Distrito Federal. Publicou os livros O Sistema Parlamentarista de Governo e Frutuoso & O Velho Monge de Barbas Brancas, já estando no prelo os originais de seu próximo rebento literário, Receitas da Vovó Salima, com preciosidades das cozinhas árabe e goiana. Este Almanaque só tem muito a ganhar com a riqueza de seus textos, a partir de hoje, quando assume o posto de um de seus colunistas.


Coluna do DIB terça, 31 de maio de 2022

BODAS DE DIAMANTE DE SALIMA E BERNARDINO (DISCURSO DO SACRISTÃO ANTÔNIO CARLOS DIB, FILHO DO CASAL, NA FESTA COMEMORATIVA)

 

 

Queridos familiares, queridos amigos e queridos amigos/familiares,

 

Mãezinha, Paizinho,

 

 

                   Há exatos dez anos, nós nos reuníamos na Igrejinha de Nossa Senhora de Fátima para celebrar a feliz e frutuosa união deste casal amado, Salima e Bernardino. Celebrávamos, então, Bodas de Ouro. Radiantes de alegria estávamos todos com aquela memorável conquista ─ “cinquenta anos de união” ─ plenamente agradecidos a Deus pelo presente maravilhoso, certos de que poucos fatos poderiam superar aquela marca extraordinária.

                   Ocorre que o Pai Celestial, em sua bondade, misericórdia e amor insuperável tinha reservado para todos nós graça maior, mais bela e ainda mais extraordinária. Para Deus, Bodas de Ouro não era o limite, ainda não era suficiente e nem estava de bom tamanho.

                   E cá estamos nós, dez anos depois, com a graça de Deus, celebrando “Bodas de Diamante”, sessenta anos de união.

                   No curso desses dez anos, fatos marcantes se deram em nossas vidas. Sentidas baixas nosso grupo sofreu. Mas, também, vivemos grandes alegrias: viajamos, nos reunimos em volta da boa mesa para celebrar a vida, festejamos, rimos, trabalhamos, estudamos, oramos muito e agradecemos ao Pai por seu amor sem limites. Ano retrasado meu pai comemorou a gloriosa marca dos noventa anos. Vibramos com as vitórias e aprendemos com as derrotas. Também as superações vividas não foram poucas: doenças mortais e abalos de saúde, plena e miraculosamente vencidos por ambos. Lançamos, nesse período, dois livros: um deles, “Frutuoso e o velho monge de barbas brancas”, homenageando meu pai pelas estórias de meu avô, Frutuoso; o outro, livro de receitas culinárias de autoria de minha mãe, “A cozinha prática de vovó Salima”. Só podemos, agora, portanto, agradecer a Nosso Senhor, por Sua paciência, misericórdia e bondade e celebrar com entusiasmo mais esta marca admirável, sessenta anos da mais sadia união deste casal amado.

                   Queremos agradecer a presença de todos, que muito nos honra e abrilhanta o evento.

                   Agradecemos ao Padre João Firmino, que gentilmente celebra conosco e abençoa, em nome de Deus, este sólido matrimônio.

                   Agradecemos a Jesus Cristo, nosso Rei e Senhor, pela vida, saúde física e mental e vida de união de Salima e Bernardino e pedimos a Ele que continue a abençoá-los e a olhar por todos nós, rogando a intercessão de Sua Mãe Santíssima, Nossa Senhora, Mãezinha do Céu.

                   Obrigado, meu Deus! Obrigado por tudo!

                   Parabéns, Pai! Parabéns, Mãe! E para os aniversariantes, peço a todos uma calorosa salva de palmas.

 


Coluna do DIB terça, 22 de fevereiro de 2022

A DOBRA FUMOU: 21 DE FEVEREIRO DE 1945!

A HISTÓRIA ESQUECIDA

A. C. Dib

 

Pode ser uma imagem de 1 pessoa, ao ar livre e texto que diz "ESTAFUMANDO.. COTA FUMANDO.. COBRA COBRA Α A"

Em 21 de Fevereiro de 1945. A COBRA FUMOU

 

 
A Força Expedicionária Brasileira, com o codinome (As cobras fumantes) “the Smoking Snakes”, avança sobre tropas nazistas e conquista o Monte Castelo, no norte da Itália. Foram 3 meses de batalhas e mais de 417 baixas brasileiras. A participação do país, embora modesta na gigantesca proporção do conflito, foi reconhecida internacionalmente pela sua bravura, recebendo diversas distinções militares. Hoje, comemoramos 77 anos dessa grande vitória.
 
Na emblemática foto com o título de "A NOSSA RESPOSTA" vemos o soldado de Artilharia Francisco de Paula, identificação nº 1G-192925, estampado na edição nº 7 de 24 de janeiro de 1945, do jornal Cruzeiro do Sul. Antes da adesão ao conflito, uma expressão se popularizou no Brasil, "é mais fácil uma cobra fumar do que o Brasil entrar na guerra".
 
A Artilharia Brasileira, à qual Francisco fazia parte, foi fator essencial para a conquista do Monte Castelo.

Coluna do DIB terça, 29 de dezembro de 2020

2020: O ANO QUE NÃO EXISTIU (ARTIGO DO SACRISTÃO ANTÔNIO CARLOS DIB, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

2020: O ANO QUE NÃO EXISTIU

A. C. Dib

 

 

Frase muito batida nas rodas sociais ─ virtuais ─ na atualidade é a de que “2020 é ano para não ser lembrado”. O ano da peste ─ peste mundial ou pandemia, epidemia precedida do grego antigo pan a designar “tudo, todos” ─, ano do lockdown, ano do isolamento social, ano de muitas partidas e de muita luta pela vida. Acreditamos, porém, que o sofrimento se faz acompanhar de alguma didática.

 

Conforme Nietzsche, “aquilo que não me mata, só me fortalece”. 2020 é ano de muita luta, dor e sofrimento, mas é também ano de muitas lições. Pensamento recorrente é o de que crescemos, amadurecemos e aprendemos pelo sofrimento.

 

Não estamos aqui a fazer apologia do sofrimento, mas importa reconhecer que as grandes crises provocam a quebra do marasmo e do comodismo, motivam avanços científicos, escrevem histórias de superação, revelam grandes heróis. Avançam as pesquisas científicas, com vacina produzida em tempo recorde; médicos e profissionais da saúde se destacam em luta heroica nos hospitais, travada com idealismo e sacrifícios extremos; consolida-se a ferramenta da teleconferência; o comércio procura reinventar-se, com a dinâmica das transações virtuais; aumentam os cuidados com a assepsia.

 

Humildade é outra lição que merece ser apreendida. Verificamos, uma vez mais, que a mãe natureza merece respeito, atenção, carinho, inseridos que estamos em um grande, harmonioso e frágil complexo, onde vidas se entrelaçam, interagem e se complementam. Não é caso de subjugar a natureza, mas aprender com ela, atuando com humildade, responsabilidade e respeito, dentro de seus limites.

 

Ano bizarro, diferente, sem abraços, beijos e presença física, mas marcado pelo carinho, pela solidariedade diante da dor, pelo calor humano (ainda que não presencial) e pelo fervor das orações.

 

Que o novo ano, a se abrir, nos traga conforto para a dor, refrigério para a alma, solução para os conflitos, paz e saúde, muita saúde. Que seja o ano da cura, o ano da vacinação e da conquista da almejada “imunização de rebanho” ─ no jargão médico ─, que inibe a circulação do temível vírus. Que possamos colher os frutos da experiência, com humildade, sabedoria e inteligência.

 

Para todos, um feliz ano novo!


Coluna do DIB segunda, 14 de dezembro de 2020

BRASIL EM TEMPO DE PANDEMIA (ARTIGO DO SACRISTÃO ANTÔNIO CARLOS DIB, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

BRASIL EM TEMPOS DE PANDEMIA

A. C Dib

 

 

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

          - Constituição Federal de 1988, Artigo 196 -

 

 

Como uma das mais significativas características do neofascismo, ou, no caso brasileiro, do neointegralismo, destaca-se, nos dias correntes, o fundamentalismo religioso cristão. Doutrinas medievais e obscurantistas ganham corpo e força nas redes sociais, materializando-se em “verdades científicas”, tais como o criacionismo e o terraplanismo. Textos bíblicos ganham interpretação literal e a visão judaica, presente no Velho Testamento, de Yahweh, benevolente para com os crentes, mas implacável para com os ímpios, prevalece sobre o Deus de bondade e de amor do Novo Testamento, prevalece sobre o espírito cristão de paz, tolerância, fraternidade, concórdia, perdão e de amor universal.

 

Acompanhando o fundamentalismo e fanatismo cristão, corrente política de forte atuação hoje, vem a doutrina negacionista. Negam, os militantes do movimento, importância e valor à Ciência e aos cientistas, vistos sempre com grande desconfiança e antipatia, vistos como adversários das verdades da fé. Passa a Ciência a ser esquadrinhada sob a lupa da religião, mensurada com trena teológica. Negam a ameaça do aquecimento global, propalada por cientistas e experts, decorrente da poluição atmosférica, do desmatamento predatório e do desequilíbrio ecológico. Negam valor à vacinação, combatendo com rigor, especialmente, a vacinação pública e obrigatória ─ o fatídico Movimento Anti-Vax, muito ancorado em notícias falsas propagadas nas redes sociais.

 

Urge registrar que o autor do modestíssimo artigo não é nenhum empedernido ateu, um materialista de extrema esquerda, mas um cristão fervoroso, um conservador democrata-cristão, admirador dos saudosos Papa João Paulo II, Sobral Pinto e Tristão de Athayde, dentre outros grandes. Homens de fé inquebrantável, paradigmas do catolicismo, mas todos homens lúcidos, realistas, sábios e de grande cultura. Papa João Paulo II, Chefe da Igreja Católica, referência para católicos do mundo todo, inspirador da queda do muro de Berlim e da implosão da extinta União Soviética, sobrevivente das doutrinas totalitárias que esmagaram sua Polônia ─ primeiramente, o nazismo e, depois, por longos anos, o opressor comunismo ─, promotor apaixonado da paz universal e da aproximação inter-religiosa; nunca se viu na História um homem se desculpar tanto na vida; desculpas humildes voltadas a erros e injustiças históricos cometidos pela Igreja, dentre os quais, erros e perseguições emanados do fundamentalismo religioso, do obscurantismo, como o geocentrismo ptolomaico. Heráclito Fontoura Sobral Pinto, corajoso advogado de presos políticos, tanto no Estado Novo como no ciclo ditatorial militar, conservador e católico, sempre conciliou, com extrema naturalidade, sua fé com os princípios do moderno constitucionalismo, o estado democrático de direito com todas as garantias dele emanadas a seus súditos. Por fim, Tristão de Athayde, pseudônimo de Alceu Amoroso Lima, intelectual primoroso e acadêmico, prolífico autor, pensador, educador e expoente do catolicismo, mas homem que nunca se deslumbrou com qualquer fanatismo, seja religioso, seja político, eis que outro intransigente defensor da liberdade e dos princípios e direitos do estado democrático. Tais referências, hoje, parecem perder espaço para o fanatismo estúpido, cego, truculento, anacrônico, de visão simplista e tacanha, fascista.

 

O sagrado princípio democrático de liberdade de expressão confere arrimo ao exercício de tais teses. Todos são livres para sustentarem as baboseiras que bem quiserem. A todos são conferidas garantias de opinião e de manifestação do pensamento. Causa grande preocupação e temor, porém, o fato de tais teses se converterem em política de governo, passarem a ter aplicação no rol das políticas públicas. Verdades científicas, fruto de pesquisas, experimentos repetidos inúmeras vezes, atestados e comprovados não podem ser objeto de opinião, não se sujeitam a “achismos”, a divergências baseadas em gosto, em preferências, em convicções religiosas. Extremamente grave emprestar conceitos e tintas ideológicos à política de saúde pública, misturar conceitos e orientações ideológicos com o pragmatismo necessário à prevenção e ao tratamento de doenças. Vem, assim, a política nacional de combate à epidemia global ─ pandemia ─ sofrendo a deletéria influência da ideologia, tal como já acontecia nas áreas de política de ecologia e meio-ambiente e de relações internacionais.

 

A princípio ─ e seguimos nessa toada até os dias presentes ─ o Presidente Jair Bolsonaro negou importância e gravidade à pandemia, que tratou por “gripezinha”. Firmou posição contrária à política de isolamento social, orientada por médicos e por cientistas como forma de retardar a propagação do contágio. Passou a associar a pandemia a ardiloso complô internacional contra o capitalismo, transferindo a seus apaixonados apoiadores a missão de atacar os dirigentes da OMS ─ Organização Mundial de Saúde ─, tratando-os por comunistas conspiradores ─ prática corriqueira no bolsonarismo, empregada contra qualquer um que ousar divergir do líder.

 

A seguir ─ e, até o presente momento, ninguém compreende bem o porquê, eis que não existe comprovação técnica da proposta médica ─ agarrou-se à hidroxicloroquina, droga utilizada na prevenção e tratamento da malária, como panaceia de cura da covid-19, lançando aos ombros dos fervorosos bolsominions a inglória e hercúlea tarefa de defender, nas redes sociais, o uso do fármaco para combater o coronavírus.

 

Lutando contra a política de isolamento social, firmemente aconselhada pela ciência médica e pela Organização Mundial de Saúde, Bolsonaro isolou o governo federal. Poderia ─ e deveria, tendo em conta o bem e a vida dos brasileiros ─ laborar em conjunto, parceria e harmonia com os demais entes da Federação, estados membros e municípios, em luta que não tem colorido ideológico, luta objetiva e pragmática, luta que conta com a ciência por parâmetro, luta que deveria ser suprapartidária, luta consistente em dever de todos, dever e obrigação, impostos pela Carta e pelo ordenamento jurídico, a todas as autoridades constituídas, mas, como de regra, preferiu apartar-se do pragmatismo, isolar o governo. Provocado e chamado a decidir, o Supremo Tribunal Federal, prestigiando o sistema federativo nacional contido na Lex Magna, firmou pela competência concorrente de todos os entes da Federação ─ União, Estados, Distrito Federal e Municípios ─ sobre política de saúde. Passaram, assim, governo federal e demais entes federativos a trilhar por caminhos opostos na condução do caso. Paga, o povo brasileiro, o pato pelo artificial “conflito” político. Interesses pessoais e eleitoreiros emergiram sobre o interesse legítimo da população, sobre as metas de saúde e preservação de vidas humanas.

 

Tomado de ciúmes do protagonismo que o diligente Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta vinha angariando na luta contra o vírus mortal, sentindo-se, talvez, ofuscado pela boa atuação do subordinado, visualizando conspiradores e conspirações a cada passo dado, cuidou de exonerá-lo. Posteriormente, afastou, também, médicos e cientistas do Ministério da Saúde, entupindo o Órgão de militares, que melhor opção não têm senão atender prontamente às ordens e caprichos do comandante, dentre os quais comprar ─ com dinheiro público, evidentemente ─ grandes estoques de hidroxicloroquina para tratamento do coronavírus.

 

Com médicos, enfermeiros e demais profissionais de saúde travando luta heroica contra o vírus, lutando desesperadamente para salvar centenas de entubados que padecem nas UTIs hospitalares e, nessa luta valorosa, corajosa, sofrendo contaminação, com resultado de reiterados óbitos dentre esses guerreiros da saúde, esses anjos dos dias de peste, Bolsonaro jamais se dignou a elogiar ─ sequer reconhecer ─ o trabalho extremamente arriscado e heroico desses abnegados idealistas. Ao contrário, indagado sobre o elevado número de óbitos registrado dentre brasileiros ─ mais de cento e oitenta mil mortes na presente data, mais de cento e oitenta mil famílias enlutadas ─ por coronavírus, troçou: “⸺ E daí? Tenho Messias no nome, mas não faço milagres!” ⸺ gracejou, com seu jeitinho delicado e sensível de rinoceronte trancafiado em loja de cristais. E, recentemente, chamou de “maricas” aos que esperam pela tão sonhada vacina.

 

E, cuidando agora de vacinas e vacinação, com o Instituto Butantã de São Paulo ─ destacado centro de pesquisas biológicas, tido como um dos mais importantes do mundo ─ pesquisando a vacina para o coronavírus, Bolsonaro passou a travar luta político ideológica com o governador de São Paulo, pela primazia e protagonismo da vacinação, chegando, até mesmo, ao absurdo de celebrar, nas redes sociais, o falecimento de um voluntário da pesquisa promovida pelo Butantã, valendo registrar que o infeliz voluntário não morreu da dose recebida nos testes, parecendo tratar-se de caso fortuito, decorrente de suicídio.

 

Um genuíno estadista, um governante vocacionado, talentoso, confrontado pela gravíssima pandemia, saberia crescer no combate à terrível ameaça. Colocaria a saúde e a vida de seus concidadãos em primeiríssimo lugar. Atuaria em conjunto e colaboração com governadores e prefeitos, apoiaria toda e qualquer pesquisa de vacinação, apoiaria e incentivaria a luta dos profissionais de saúde, abraçaria a orientação emanada dos especialistas, oriunda do conhecimento técnico científico. Bolsonaro, em sua míope óptica, obcecado por conspirações e complôs, vislumbrando vietcongs por trás de cada moita em seu trajeto, prioriza o fomento de sua ideologia extremista. Forçoso admitir que, numa democracia, todas as correntes políticas merecem representação no Parlamento, mesmo os extremos do espectro ideológico. Nos longos anos em que permaneceu na Câmara dos Deputados, mesmo com atuação pífia e insignificante, Bolsonaro tinha seu propósito, tinha sua razão de ser. Mas, vale indagar, Presidente da República?!!! Administrar o Brasil? Ter em mãos os destinos da Nação? Respeitosamente, na esfera do Executivo, eu relutaria em votar no Capitão até para síndico de meu condomínio (com absoluto respeito a nosso competente síndico).

 


Coluna do DIB quinta, 10 de dezembro de 2020

O BRASILEIRO E O MITO DO SEBASTIANISMO (ARTIGO DO SACRISTÃO ANTÔNIO CARLOS DIB, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

 

O BRASILEIRO E O MITO DO SEBASTIANISMO

A. C. Dib

 

 

Narra a história que o rei português Dom Sebastião desapareceu na Batalha de Alcácer-Quibir, travada contra os mouros no norte da África, no ano de 1578. Sucumbindo o jovem monarca, juntamente com suas tropas, no feroz confronto, Portugal se viu em situação delicada, eis que a vacância do trono colocava em risco a soberania e independência do estado português. A máxima vigorante no período renascentista, aflorando o absolutismo na Europa, era de que o estado soberano se fazia compor por “uma terra, um povo e um rei”. De fato, os piores temores portugueses não tardaram a se materializar. Como Dom Sebastião não deixou descendentes, seu tio, o Cardeal Dom Henrique ─ Henrique I, de Portugal ─, o primeiro na linha sucessória, assumiu o trono. Ao assumir, o honorável prelado contava 66 anos (idade bastante avançada para o distante Século XVI). Os súditos cuidaram de acolchoar seu trono e de abaná-lo, mas o esforço resultou em vão: o vetusto Cardeal-Rei faleceu dois anos depois. Para desgosto geral, observando-se a linha sucessória, assumiu, então, o trono português o Rei da Espanha, Felipe I, do ramo espanhol da Casa de Habsburgo, dando início ao chamado período da União das Coroas, ou União Ibérica. Viu-se, assim, Portugal governado pelo Rei espanhol Felipe I, ou Felipe II de Portugal.

 

Como o corpo do rei Dom Sebastião nunca foi encontrado, enraizou-se no humilhado, mas esperançoso, povo português a crença de que o saudoso rei ainda estaria vivo e, mais dia, menos dia, voltaria para libertar Portugal e para lhe restaurar o orgulho e os tempos de glória e grandeza desaparecidos. Nascia, assim, o “mito do sebastianismo”, a crença messiânica e fantástica na volta de D. Sebastião, traduzindo inconformismo com a situação política vigorante, assim como expectativa em solução miraculosa para os males da nação portuguesa. Os irmãos lusitanos passaram a mirar melancolicamente o oceano e a suspirar pela volta do redentor, do restaurador, do salvador. Profecias sobre a volta do monarca passaram a circular, alentando o desgostoso coração português.

                           

Acreditamos que a lenda do sebastianismo deitou raízes profundas no coração e na mente dos brasileiros, convertendo-se, também, em mito tupiniquim. Como legado da influência dos colonizadores, também os brasileiros passaram a suspirar pelo aparecimento de um messias, um líder milagroso e revolucionário, que salvará o País de seu subdesenvolvimento, transformando-o, magicamente, e por méritos próprios de super estadista, em grande potência, potência de primeiríssimo mundo.

                           

A ideia predominante é a de que só um messias, um predestinado salvador da pátria, um querubim ungido pelos Céus conseguirá remir o Brasil de supostos “erros políticos históricos”, colocando-o nos eixos e cumprindo o propalado destino de “Brasil, País do futuro”. Ao mito do sebastianismo, adaptado à cultura brasileira, acrescente o famoso “Complexo de vira-lata”, de que nos falava Nélson Rodrigues, a baixa autoestima dos brasileiros, a inferioridade em que ele mesmo se coloca, seu talento para a autodepreciação. E a tudo isso some a fé popular no Estado forte, no Estado provedor, no Estado realizador, empreendedor. Deveras, a psicologia brasileira não é para principiantes, não é para amadores. E a fé no mito do aparecimento milagroso do salvador, a crença inabalável no predestinado, vem, ao longo dos anos de República, somado ao instável sistema de governo presidencialista ─ nascido junto com a República ─ alimentado o surgimento de caudilhos arcaicos, de tiranetes ridículos, de autoritarismos, de lutas ideológicas, de golpes políticos, conflitos armados e de doutrinas totalitárias (como o integralismo).

                  

A crença no surgimento do “Presidente Sebastião”, no aparecimento do redentor milagreiro, que tudo solucionará com sua força e talento nato, esmaece nos brasileiros a fé em princípios caros das democracias ─ e a fé na própria democracia ─, esmaece a confiança em instituições democráticas como República, Constituição, Parlamento, Poder Judiciário, independência e harmonia entre Poderes, imprensa independente e livre, ordenamento jurídico e na solução legal dos conflitos. Nada disso vale, nada disso importa, nada interessa: só o nosso Dom Sebastião, emergindo das águas do Atlântico, ou das águas doces do Amazonas, conseguirá arrancar o Brasil de seu marasmo e materializar seu glorioso destino. Leis penais bem aplicadas, investigação policial competente, atuação firme e corajosa de promotores, Operação Lavajato, nada resolve, já que só um líder forte, imaculado, visceralmente comprometido com a moralidade pública poderá espancar a corrupção que grassa na política pátria. Eleições livres, representação por partidos políticos, articulações políticas, negociações (no melhor sentido do termo), aprovação consensual de normas, soberania popular, nada substitui a vontade férrea e benfazeja do grande líder, do mítico rei tão sonhado, para resgatar o Brasil de seu atávico atraso.

                  

Da fé mitológica sebastianista decorre, ainda, a desconfiança dos brasileiros na política e nos políticos. A solução encontrada é a de escolher governante dentre aqueles “que não são políticos”. O melhor é escolher dentre os que não se encaixam no perfil do “político tradicional”, do “político profissional”, “de carreira”. Tipos “apolíticos”, os não-políticos, candidatos “contrários à política”, adversários de “tudo o que aí está”, caem muito no gosto de nosso eleitorado, devotado que é às soluções mágicas dos problemas nacionais, às soluções extrapolíticas, à crença no escolhido salvador. Encanta o eleitor nacional o discurso reformista, o discurso renovador, a pregação moralista e messiânica de um Antônio Conselheiro.

                           

A História, ao contrário, seja a do Brasil, seja a História Geral, se mostra mui rica em exemplos desastrosos, tristes, catastróficos de escolhas recaídas sobre “candidatos não-convencionais”, candidatos apolíticos, nacionalistas xenofóbicos, moralistas extremados, reestruturadores da ordem, apologistas de panaceias, niilistas, salvadores do orgulho nacional e da pátria. Só para citar alguns, podemos enumerar Hitler e seu nazismo; Mussoline e o fascismo; Fujimori, o golpista; Jânio Quadros e sua vassourinha de varrer a bandalheira; Collor, o intrépido caçador de marajás; e, agora, o assim chamado “mito”, aquele que já traz o Messias no próprio nome, o nosso Capitão Bolsonaro, a esperança sebastianista da vez.

                           

Eleger Bolsonaro Presidente para fugir aos pegajosos tentáculos petistas foi o mesmo que ir de um extremo ao outro do espectro ideológico; fugir de uma ideologia para abraçar outra, igualmente radical; foi pular da panela e cair no fogo. Bolsonaro, o novo Dom Sebastião, talvez se mostre, mesmo, mais radical, mais agressivo, mais contundente em seu discurso e em suas práticas extremistas que os doutrinadores e ideólogos petistas.

                           

Há pouco tempo, eu era daqueles que julgavam que o maior e mais sério problema da política brasileira era a corrupção. Bons tempos aqueles! Com a eleição do Mito, vi que a corrupção ─ ainda que odiosa e nociva ─ não é nada, frente a ameaça temível e muito mais grave a que foi lançado o Brasil. Constatei que desafio dez vezes pior deita sua sombra sobre a Pátria: a ameaça ao regime constitucional democrático brasileiro. E não se trata aqui de ameaça teórica, retórica, hipotética, mas ameaça concreta, palpável, real. Ameaça que merece ser encarada com seriedade, sem jamais subestimá-la. O monstro do autoritarismo exibe suas presas e garras, ruge e ronca, intimida bravio. Eclode o ovo da serpente! ─ de que Bergman nos falava.

                           

No primeiro semestre do ano que principia a findar-se, o Brasil esteve muito perto de um golpe de estado ─ senão golpe, ao menos uma prometida tentativa de golpe, de consequências imprevisíveis. Bailou, a Pátria, na beira do precipício e flertou com o imprevisível. O ideal maniqueísta do salvador da pátria, defensor heroico dos bons e destruidor implacável dos maus, nunca foi tão presente, nunca se mostrou tão ameaçador e agressivo como naqueles meses recentes. É bem verdade que, muito antes da eleição de Bolsonaro, indivíduos e grupos radicais já atuavam abertamente nas ruas e nas redes sociais defendendo golpe de estado ─ tratado, carinhosamente, por “intervenção militar”, como que para dar ao crime algum colorido constitucional ─ e implantação de ditadura militar. Ocorre que, eleito, Bolsonaro passou a personificar esses “ideais”, converteu-se no provável viabilizador da “proposta”, transformou-se na grande aposta e esperança dos golpistas. Transformado Bolsonaro em Presidente, o número e a ousadia desses apologistas da “intervenção militar” aumentou vertiginosamente. Sob pretexto de liberdade de expressão, os liberticidas seguiram promovendo a apologia do crime político, passaram a macular e enxovalhar a honra de todos os supostos adversários de Dom Sebastião (crimes, igualmente, tipificados em nosso Código Penal), promoverem ameaças (também crime), além de plantarem notícias falsas ou distorcidas que depreciavam tais adversários e enalteciam o líder, as chamadas Fake News (outra infração penal). Bolsonaro parecia corresponder aos mimos, tratando tais indivíduos como “meus apoiadores”, “minha base de apoio”; estimulando manifestações dos tais apoiadores nas ruas da Capital da República, tomando-lhes as dores. Além de tudo, inconformado com a atuação do Supremo Tribunal Federal, ainda insinuava ameaças do tipo “tenho as Forças Armadas comigo”, “agora chega, pôrra!” e congêneres. General Heleno, Ministro Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, soturnamente alertou para “consequências imprevisíveis”, caso o Ministro Relator de investigação contra Bolsonaro ousasse apreender o intocável telefone presidencial. O deputado, seu filho, salvo engano o de numeração 03, o mesmo que já sugerira fechar pessoalmente o Supremo Tribunal Federal acompanhado por um cabo e reintroduzir no País o Ato Institucional número 5, em programa transmitido pela internet firmou que o golpe já não era mais “questão de se, mas de quando”.

                           

E a temperatura política só aumentava. Ardorosos bolsonaristas defendiam, com paixão e em tintas berrantes, tanto nas ruas, como nas redes sociais, o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, que não deixavam o mito governar. Fixaram acampamento na Praça dos Três Poderes e em outros pontos da Capital; promoviam manifestações públicas intimidatórias; lançaram foguetório sobre a sede da Suprema Corte; atacavam e ameaçavam seus Ministros nas redes sociais (ameaça de morte, inclusive). Bolsonaro, por sua vez, não se fazia de rogado: participava entusiasticamente de tais manifestações populares e prestigiava os pupilos.

                           

Repentinamente, Bolsonaro alterou radicalmente ─ radical sempre! ─ seu comportamento. Afastou-se dos apologistas do golpe, apartou-se das manifestações bolsonaristas de rua, alterou o discurso ─ continuaram os pôrras, mas suspendeu as ameaças ao Supremo Tribunal e à ordem democrática ─, passou a fazer política buscando firmar base de apoio no Congresso, enfim, apartou-se abrupta e misteriosamente da agenda golpista. Acreditamos que três fatores motivaram a mudança de comportamento: o surgimento do movimento antifascista nas ruas, a atuação do Supremo Tribunal Federal contra as fake news e contra apologistas de crimes e a eclosão de escândalos envolvendo familiares do Presidente. Brotando nas ruas manifestações antifascistas e pela democracia, que cresciam de intensidade na proporção em que bolsonaristas se manifestavam, o capitão pode verificar que não é absoluto, não é unanimidade e que nem todo mundo gosta de ditadura. Já a Suprema Corte brasileira mostrou-se firme, sobranceira e altiva e muito determinada no combate a tais crimes digitais: identificou lideranças e praticantes, instaurou inquéritos, decretou prisões, acionou o Ministério Público, determinou o fechamento de canais, enfim, deu à ação deletéria e criminosa dessas pessoas o combate há muito reclamado pelo regime democrático brasileiro, dando aplicação à lei. Louvável, ainda, a atuação do Governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, que mandou desmontar acampamentos de manifestantes, armados em ruas e praças de nossa amada Brasília (depois que estes já haviam cruzado todos os limites do aceitável e do razoável), processou criminalmente dois integrantes da trupe que lhe ameaçaram e lhe feriram a honra nas redes sociais e, na televisão, alertou que baderneiros e agitadores não seriam bem recebidos na Capital Federal, seriam reprimidos. Ao mesmo tempo, escândalos envolvendo familiares do Presidente ─ Fabrício Queiroz, rachadinha, mesada, depósitos suspeitos etc. ─ comprometeram seriamente a “lisura do golpe”, fazendo parecer, aos olhos do Brasil e do mundo, que o golpe seria perpetrado por motivações pessoais, consistentes em proteger familiares do líder da revolta.

                           

Corre nas redes sociais vídeo do Luiz Felipe Pondé tratando desse movimento que prega golpe de estada e instituição de ditadura (ditadura de Bolsonaro ou ditadura militar). Gosto honestamente do Pondé e costumo comungar de suas ideias e teses. Mas acredito que esse vídeo, em particular, merece ser analisado com certo cuidado. Pondé inicia sustentando que é errado chamar tal movimento de fascista. Registra que no fascismo prevalece economia controlada e estatizada, sendo que a política econômica do governo Bolsonaro é neoliberal. Observa que os que militam no movimento não são fascistas, mas eleitores que se sentem abandonados pelos políticos e que se fartaram de seus joguinhos. Afirma que, em verdade, o que buscam é democracia direta ─ diz erguendo seu celular. Aconselha não chamar o movimento de fascista, pois atrapalha a análise técnico-científica do fenômeno. Inicialmente, com o devido respeito, observamos que a economia estatizada não é a única característica do fascismo, outras merecem enumeração: líder forte e centralizador, militarização da sociedade, truculência e repressão políticas, intolerância, cerceio à liberdade de imprensa, perseguição a minorias e a opositores. Bem assim, curioso almejar democracia direta pedindo ditadura. Humildemente, acreditamos que essas pessoas não aspiram à democracia direta, mas sim a uma tirania da maioria (na hipótese de que seriam efetivamente maioria), ou tirania das massas. Característica importante do regime democrático é a da proteção às minorias e a seus direitos. Pelo discurso propagado, não é isso o que buscam os manifestantes: querem poder direto para reprimir os diferentes, os discordantes, as minorias.

                           

Finda a tormenta ─ finda? ─ julgamos que a ameaça de tirania ainda paira sobre a nação. E não se trata apenas da ideologia professada por Bolsonaro, trata-se, também, de sua psicologia. Homem de baixa escolaridade e nível cultural chulo, de pouca habilidade em tratar com pessoas, truculento, explosivo, impulsivo, irascível, boca-rota e dado a gestos teatrais e melodramáticos. Impressiona muito, ainda, sua fixação com supostos complôs e teorias da conspiração, algo de patológico.

                           

O movimento apologista de golpe de estado para instauração de ditadura ─ pobres boçais amargurados e anacrônicos ─ seria patético, digno de pena e compaixão, se não fosse extremamente perigoso (além de criminoso, claro). Na medida em que um Presidente da República, democraticamente eleito, passa a se identificar ─ ainda que momentaneamente ─ com o movimento, a lhe demonstrar simpatia, estima, respeito, e a corresponder a seus objetivos, e a obter religioso apoio de seus militantes, o que antes era puro exotismo, bizarrice risível e grotesca, converte-se agora em ameaça viva, forte, real. A velha corrupção se vê largamente superada pela mão bruta do autoritarismo, do fascismo totalitário.

                           

A dramática história política do Brasil República aconselha cautela. Alternamos, em nossa história republicana, ciclos autoritários e constituições outorgadas, com ciclos de democracia, liberdade e participação popular. Nossa redemocratização, a restauração do estado democrático de direito, não tem tantos anos assim. Aos que abraçam a liberdade, o resguardo de direitos e garantias individuais e coletivas, a soberania popular, valores imorredouros, aconselhamos vigilância. Aos apologistas da ditadura, duas medidas cabíveis, de longo e de curto prazo, se mostram necessárias e devidas. A longo prazo, a educação. Importa apresentar a eles as incomparáveis vantagens do regime democrático sobre os regimes ditatoriais. Importa infundir-lhes confiança em nossas instituições, no voto, fiscalização e cobranças dos eleitos, confiança no ordenamento jurídico, na atuação livre e harmônica dos poderes, na solução legal dos conflitos, no valor da liberdade. Necessário que conheçam sua Constituição, democraticamente promulgada por uma Assembleia Nacional Constituinte, uma das mais democráticas do mundo. Importa incutir-lhes conhecimento da doutrina democrática e da luta histórica pelos ideais democráticos. Tais sebastianistas não têm noção da própria força, e do valor e prestígio que o regime democrático lhes confere. Necessário que compreendam que a solução para nossos problemas está em nossas próprias mãos, depende de nós mesmos, de atuação honesta, consciente e patriótica de todos. Não carecemos de um ditador para nos salvar ─ salvemo-nos a nós mesmos escolhendo bem nossos representantes, atuando com observância às leis e zelando com carinho por nossos direitos e por nossa democracia tão duramente conquistada.

                           

Já a curto prazo, necessário, simplesmente, aplicar a lei neles, como exemplarmente vem fazendo nosso Supremo Tribunal Federal. A internet não pode funcionar como celeiro de variadas práticas criminosas. O direito constitucional de liberdade de expressão não acoberta a apologia de crimes, a promoção de ataques à honra alheia, ameaças, plantação e divulgação de notícias falsas e inverdades. O sebastianismo atingiu o seu limite. Conferindo-lhes todas as garantias constitucionais ─ contraditório, ampla defesa e devido processo legal ─ merecem responder pelos atos praticados, na forma da lei.


Coluna do DIB quinta, 01 de outubro de 2020

VIDA COTIDIANA EM TEMPOS DE PANDEMIA

 

VIDA COTIDIANA EM TEMPOS DE PANDEMIA

A. C. Dib

 

 

 

 

                   Seguramente ninguém escapará da presença do covid-19 no organismo, seja o contágio inter pares, seja mediante vacinação. Em meio à globalização, para fugir ao vírus com eficiência, só mesmo morando na lua ou em marte. E olhe lá! Ninguém discute que o isolamento social preconizado pela ciência não constitui proteção absoluta contra o contágio. Deveras, a função do isolamento social não é a de promover proteção cabal, rigorosa e definitiva contra o contágio, mas o imprescindível papel de retardar ao máximo o processo de contaminação da população, evitando sobrecarga nos hospitais, certo de que o sistema de saúde ― pública e privada ― tem limites, não comportaria contágio maciço e massivo, explodiria, não suportaria a colossal demanda. A feliz estratégia de isolamento social confere, assim, alívio ao sistema de saúde, facilita o atendimento aos infectados e “suaviza” ― se isso é possível ― o número de vítimas fatais. De crucial importância, portanto, manter o isolamento nesse difícil momento pelo qual o mundo transita.

                   Ocorre que o isolamento social provoca, em muitos que o aplicam, efeitos colaterais sérios, preocupantes: melancolia e depressão, impaciência, tédio, tensão, conflitos familiares, desespero (em casos extremos), confusão, desejo compulsivo de quebrá-lo e outros mais.

                   Deixo aqui, pois, um pouco de minha própria experiência, na expectativa de poder trazer aos demais um pouco de conforto e amparo, nesse momento bizarro, surreal e estranho da vida humana.

                   Acreditamos, então, que a preservação das rotinas e das atividades diárias são práticas vitais nesse momento sui generis. Reza a máxima popular que “em mente desocupada o diabo faz morada”. Confira lógica e sentido a seu dia-a-dia, portanto. Não se perca no marasmo, na ociosidade, na inação. Mantenha intactas as rotinas, limpe a morada, regue suas plantas, cuide do cachorro (bom demais um amiguinho na vida da gente, em especial nestes tempos anormais ― meu Flick partiu faz alguns dias), esquente diariamente o motor do carro, exercite a teleaula e o teletrabalho (benção valiosa nos idos correntes), fale com os parentes e os amigos ― virtualmente, of course ―, cheque a correspondência, faça compras on line, enfim, mexa-se como puder. Em minha casa partilhamos tarefas. Mãe, pai e filhas, todos cumprem atribuições, na medida de suas capacidades e talentos. Necessário incutir nas crianças e jovens um pouco de responsabilidade pela “vida da casa”, incutir amor ao trabalho. Pais jovens ― marinheiros de primeira viagem ― devem entender que o labor bem dosado é prática saudável, forma bons seres humanos, aperfeiçoa o caráter e ensina para a vida, não mata e nem traumatiza ninguém. E importante que os pais deem o devido exemplo de serviço e de laboriosidade, a fim de que o discurso não reste vazio, hipócrita.

                   Cultive seus hobbies. Se o seu passatempo predileto não comporta o ambiente doméstico, busque adaptá-lo ou, talvez, eleja outro divertimento compatível com a situação. E aí vale tudo: televisão (veja seus filmes prediletos, esportes, noticiário, telenovelas e maratone ― com o perdão do “neo-neologismo” ― suas séries), navegue nas redes sociais, devore bons livros (bom momento pra botar as leituras em dia), informe-se (jornais, revistas etc.), leia gibis, baralho, jogos de mesa ou de tabuleiro (para os conservadores), jogos eletrônicos, reuniões virtuais com amigos e por aí vai. Com um pouco de imaginação, diversão existe.

                   Para os que têm fé, orar é sempre reconfortante. Na frenética existência da vida moderna, Deus termina relegado a segundo plano. Eis aqui um bom momento para firmar intimidade com Ele. Cultive a espiritualidade. Em minha militância religiosa, não deixo de assistir, com Wanisa e filhas, às missas dominicais de minha paróquia ― transmitidas “ao vivo” ― pelo YouTube. Missas televisivas, “virtuais”, não valem como missa propriamente dita, mas sim como relevante oração. De toda sorte, a ameaça de contaminação por coronavírus exime os fiéis da falta decorrente da inobservância do mandamento de guardar domingos e festas. Nessa toada, passei a cultivar (obrigação outrora relegada) o hábito da oração diária do terço, meditando sobre cada um dos mistérios e observando a ordem diária (mistérios gozosos, dolorosos, gloriosos e da luz). Faço como minha saudosa vozinha Ivone: reservo o horário da Ave-Maria (dezoito horas) para a oração do terço.

                   Impedidos de frequentar academias de ginástica, importa que nos adaptemos. Vale, aí, um pouco de imaginação, engenhosidade, boa vontade. Faltam aparelhos de ginástica? Falta espaço físico em seu lar? Improvise. Existem excelentes exercícios de solo, exercícios de força e de flexibilidade que não exigem grandes espaços. E tome imaginação, com sacos de feijão e arroz (esse valiosíssimo hoje) substituindo halteres; e tome cabos de vassoura, flexões de solo, abdominais na cama, aeróbica adaptada etc... Em meu caso, tenho seguido, com Wanisa, às aulas de ginástica de nossos professores e mestres, gravadas no YouTube. Tenho considerado, igualmente, a ideia de instalar uma barra de ferro num vão muito bom (de 1,66 metros) em minha casa, pra mandar ver nas barras.

                   Não ignore a balança. Policie sua alimentação. O isolamento nos leva a buscar alívio em doces e guloseimas. Cuidado! A sugestão de preservar a rotina vale também ― E MUITO ― para a rotina alimentar. Nada como uma boa comidinha caseira. Exercite seus talentos culinários, suas habilidades gourmet. Cozinhar em família pode ser bom passatempo, alivia o estresse, une as pessoas. E me parece que os nutricionistas estão adotando atendimento on line.

                   Façamos circular o dinheiro. Prestigie seus velhos e tradicionais pontos de comércio. Frequente ― com os cuidados de estilo ― o mercado e a farmácia de seu bairro. Se possível, procure contribuir ajudando os profissionais liberais a quem você antes recorria: o lavador de carro, o engraxate, o vendedor ambulante, a diarista, o personal trainer, dentre outros (ainda que não use os serviços, considere a possibilidade de uma mesadinha para essas pessoas, lembrando que a união faz a força). Dispensou seu empregado doméstico? Se possível, preserve sua remuneração, ou parte dela. Firme contrato de trabalho doméstico sobre novas bases, adaptando-o à nova realidade, mas não deixe o fiel profissional desempregado.

                   Exercite seu otimismo e o bom humor. Veja o lado bom das coisas. O corre-corre da vida moderna desune, afasta as pessoas (ainda que morem juntas). O isolamento social permite estreitar laços familiares, firmar intimidade e conhecimento. Práticas pouco observadas voltam à tona: bate papo direto com os de seu núcleo familiar, refeições em família e convívio diário e próximo com aqueles a quem amamos. Outra oportunidade mui rica, preciosa: conhecer-te a ti mesmo, usufruir da própria companhia, exercitar o autodiálogo, fazer planos, traçar estratégias, construir castelos, meditar, refletir, contemplar (coisas que estamos perdendo nos dias de hoje). Igualmente, boa oportunidade para o exercício das virtudes da paciência, do saber ouvir, do bom conselho, da tolerância, da boa educação e da civilidade doméstica. Se a coisa dói, conforte-se pensando na vida do homem renascentista, acossado pela peste bubônica ― a famigerada peste negra. Console-se tendo em conta a situação de nossos bisavôs, às voltas com a apocalíptica gripe espanhola. Nos dias que correm as vantagens são muitas, não apenas os avanços médicos ― que permitem amenizar os efeitos mortais da moléstia ―, mas os avanços tecnológicos ― redes sociais, trabalho on line, escolas e cursos à distância, consultas médicas virtuais e outras regalias de segurança e conforto não permitidas a nossos heroicos ancestrais. Em derradeiro caso, vale ressaltar que psicólogos estão atendendo à distância. Certas perturbações só os profissionais da saúde mental ― psicólogos e psiquiatras ― podem enfrentar com alguma expectativa de sucesso.

                   Tempos estranhos estes. Nunca pensei viver para ver coisa igual. Há dias em que desperto acreditando que tudo não passa de um grande filme de ficção científica. Minha geração não enfrentou guerras e cataclismos. Pegamos um mundo já bem encaminhado. Nasci em meio a uma ditadura militar, mas a inocência da infância não me permitiu efetivamente vivenciá-la. Tudo era doce e cor de rosa em nosso existir. Mas assim é a vida. A coisa vem para nos tirar de nosso comodismo, para nos ensinar, para nosso crescimento e aprimoramento. A mãe natureza, vez por outra, abranda nosso orgulho, nossa soberba, nosso sonho de grandeza, a crença nietzschiana no super-homem. Quebrando nossa arrogância, ensina que pouco somos, pouco valemos, que a vida é frágil, fugaz, imprevisível. Somos pó, eis a verdade, poeira cósmica, filhos das estrelas. Ilusão acreditar que dominamos a natureza, controlamos a vida. Vide o caso dos vitoriosos dinossauros, fulminados por um furtivo meteoro. Não haveria para nós um meteoro mal-intencionado, rodopiando por aí, universo afora? Quem garante que não? E a vida ― seja ela a pessoal, do indivíduo ou a vida da humanidade ― é feita de ciclos. Finda a pandemia, viveremos um novo ciclo humano, a tão falada “vida pós-pandemia” ― vale esperar. Por hora, merece lembrança Guimarães Rosa, que, pela boca de seu Riobaldo, assim vaticinou: “Viver é muito perigoso... Porque aprender a viver é que é o viver mesmo... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e abaixa... O mais difícil não é um ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra”.


Coluna do DIB sábado, 18 de julho de 2020

HISTÓRIA DO CRISTIANISMO

 

HISTÓRIA DO CRISTIANISMO

A. C. Dib

 

 

                   Em tempos de quarentena, para os apreciadores da boa leitura, notadamente para quem curte Teologia Cristã e, principalmente, para os apreciadores de História, a pedida ― ou a boa ― é a leitura das obras Vida de Cristo, de J. Perez de Urbel, História Eclesiástica, de Eusébio de Cesaréia e A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires, da série História da Igreja de Cristo, de Daniel-Rops. E a dica é ler as três obras exatamente na sequência aqui apresentada, em atenção à ordem cronológica dos fatos narrados.

 

                   Frei Justo Perez de Urbel foi um erudito monge beneditino, nascido em 1895, na Espanha, e falecido em 1979. Além de Alta Teologia, especializou-se em História Medieval. Sua primorosa obra ― a que aqui focamos, eis que escreveu outras ― Vida de Cristo apresenta os fatos narrados nos quatro Evangelhos em rigorosa ordem cronológica, da expectativa judaica pela vinda do prometido Messias ao nascimento de Jesus Cristo até sua morte, ressurreição e ascensão, narrando todos os milagres descritos nos textos evangélicos, sermões, parábolas, demais ensinamentos e feitos. Todos os fatos e passagens evangélicas da vida de Cristo são criteriosamente contextualizados e ambientados em seus aspectos históricos, geográficos e culturais. Regada com bom número de fotos, ilustrações e mapas, a obra narra toda a história de Jesus sem descuidar da análise da psicologia social reinante ― tanto no mundo romano como também na Palestina ― e da análise descritiva das personagens e locais envolvidos nos fatos ― com alusão a dados históricos. Os atos e fatos, apresentados em sua linha temporal, importa frisar, são narrados em linguagem clara, direta e acessível, com explicações importantes e informações adequadas à boa compreensão. Obra indispensável aos fiéis de Cristo, aos estudiosos de Teologia, aos historiadores e demais curiosos da vida de Cristo e da vida na antiguidade.

 

                   Na sequência, indicamos o clássico História Eclesiástica. Nascido em Cesaréia, na Palestina, entre os anos 260-265 da Era Cristã, o Bispo Eusébio foi contemporâneo do Imperador Constantino. Participou, portanto, diretamente, de muitos fatos narrados em sua obra, como o Concílio de Nicéia que definiu o Credo Católico (que aglutina em si os principais dogmas de fé do cristianismo, notadamente o católico). Acompanhou ― e sofreu ― pessoalmente a crudelíssima perseguição do Império Romano aos cristãos e testemunhou a grande reviravolta histórica que resultou na vitória do cristianismo, com a miraculosa conversão do Imperador Constantino. Viu o nascimento de muitas das grandes heresias do tempo, deixando-se, aliás, seduzir pelo arianismo. Envolveu-se, assim, em sérias polêmicas, mas sempre cauteloso, guardando respeito às decisões eclesiásticas, ainda que delas discordante. Se como teólogo Eusébio de Cesaréia se mostra discutível, ao invés, como historiador é considerado o “Pai da História da Igreja”. Estudioso acurado, pesquisador sério e comprometido com os fatos, homem de grande cultura helenística, sua obra pioneira vem servindo de base aos estudos históricos que a ela se seguiram. História Eclesiástica pertence à chamada “Literatura Patrística”, a literatura cristã dos primeiros tempos, ou dos “tempos heroicos” ― Séculos II, III e IV d.C. ―, a literatura dos assim chamados “padres da Igreja”, os grandes apologistas fundadores da teologia cristã.

 

                   A obra principia contextualizando o cristianismo como materialização e cumprimento das profecias judaicas sobre a vinda do Messias, com sumária narrativa da vida de Jesus. Segue abordando os fatos contidos nos Atos dos Apóstolos. E por aí vai, trilhando na ordem histórica e cronológica dos fatos narrados. Trata, na sequência, do desenvolvimento em todo o mundo romano da doutrina cristã; dos principais líderes da Igreja na Ásia, África, na Europa imperial e em Roma. Fala dos grandes apologistas, doutrinadores e suas obras. Cuida das grandes perseguições, dos atos de heroísmo de santos e mártires. Trata, igualmente, dos grandes debates teológicos motivados pelo aparecimento das heresias interpretativas. Conclui sua narrativa pela conversão do Imperador Constantino, com sua vitória sobre os rivais Maxêncio e Licínio e a consolidação e unificação de seu poder político ― correspondente à legalização do cristianismo e à sua posterior hegemonia. Eusébio de Cesaréia morre poucos anos após a morte do bravo Imperador (de quem foi fã confesso e incondicional).

 

                   Daniel-Rops, pseudônimo de Henri Petiot, nasceu e faleceu na França (1901-1965). Professor de História, conquistou fama por sua obra de historiografia, a coleção História Sagrada, composta por: O Povo Bíblico (1943), Jesus no Seu Tempo (1945) e História da Igreja de Cristo (1948-65) em onze tomos. Publicou, ainda, obras de literatura infantil e romances históricos. Eleito para a Academia Francesa de Letras em 1955, conquistou o Grande Prêmio de literatura da Academia Francesa em 1946. A coleção História da Igreja de Cristo narra, pormenorizadamente, toda a trajetória da Igreja, dos fatos situados nos Atos dos Apóstolos até os presentes dias.

 

                   A obra que ora focamos é A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires, primeiro volume da extensa série História da Igreja de Cristo. Historiador sério e confiável, Daniel-Rops, na obra referida, desenvolve com maior riqueza de detalhes e de informações a narrativa histórica de Eusébio de Cesaréia (fala, aliás, do próprio autor da História Eclesiástica, de sua obra e de sua vida). Ainda que católico, mostra-se, sempre que necessário, imparcial e, mesmo, crítico à conduta das personagens e a seus eventuais desvios. O texto tem início pela atuação dos apóstolos, com ênfase no maior missionário de todos os tempos: São Paulo. Trata das grandes perseguições aos cristãos ― como foram incontáveis, ao longo dos quatro primeiros séculos pós Cristo, centra atenção nas principais ―, enaltece a atuação heroica dos principais mártires (foram inúmeros os martirizados, a grande maioria pessoas modestas e anônimas) e analisa a expansão da Igreja em meio à ferocidade das autoridades e do próprio povo fiel ao culto dos deuses romanos. Tamanha é a isenção do historiador que não deixa de considerar e louvar o idealismo e talento de estadista de muitos dos mais sanguinários governantes romanos, inserindo sempre as práticas violentas na cultura e costumes da época. Analisa meticulosamente a lenta decadência e agonia do Império, discorrendo com atenção sobre causas e consequências desse declínio (aspectos políticos, econômicos, morais e culturais), tendo em conta que dito declínio era inversamente proporcional ao avanço do cristianismo. Discorre igualmente sobre a atuação e valor dos principais líderes católicos de cada século, com forte atenção para a obra teológica de cada um desses ― literatura patrística. Por fim, analisa a cultura e a arte cristã em cada uma dessas fases. A obra se encerra pela vida e morte do Imperador Teodósio, o último dos grandes do Império Romano e que oficializou o cristianismo como religião do império.

 

                   Maravilhosa e válida é a gama de conhecimentos que a leitura dessas três obras proporciona, além de constituírem leitura saborosa e de grande prazer. Compreende-se o gradual e vitorioso desenvolvimento do cristianismo, que, em meio a brutais e animalescas perseguições, expandiu-se e consolidou-se pelo talento, determinação e heroísmo de tantos santos, mártires, teólogos, apologistas e idealistas missionários, além da fé viva e militante de legiões de pessoas simples, mas apaixonadas. Vemos a concretização dos textos canônicos, tidos por inspirados, o embate contra as muitas heresias advindas nesses séculos primitivos, a confirmação do credo de fé e o desenvolvimento da teologia, que apresenta os primevos lampejos de vida já no Evangelho de São João. Mesmo para os não crentes, as informações históricas valem sobejamente a leitura. “Recordar é viver”, diz o ditado. E eu acrescento: conhecimento nunca é demais; sempre cabe mais um pouco. E nada ensina mais que os erros do passado.

 

                   Claro que para os fiéis, o sucesso da Igreja se deve à ação permanente do Divino Espírito Santo sobre ela e sobre seus militantes. Sem a vontade Divina, dizem os homens de fé, o triunfo verificado não se materializaria. E tudo teve início na paupérrima e longínqua província da Palestina, iniciada a missão por doze homens modestos, humildes, obscuros, mas carregados de fé inabalável.

 

                   “A fé move montanhas”! ― reza a máxima cristã.


Coluna do DIB quinta, 02 de julho de 2020

O SISTEMA PARLAMENTARISTA DE GOVERNO - EQUÍVOCOS HISTÓRICOS COMETIDOS PELO BRASILEIRO

 

O SISTEMA PARLAMENTARISTA DE GOVERNO

EQUÍVOCOS HISTÓRICOS COMETIDOS PELO BRASILEIRO

A. C. Dib 

 

Ao debater sistema de governo, historicamente, vislumbramos dois grandes equívocos cometidos pelo povo brasileiro, decorrentes do desconhecimento da matéria: o primeiro deles é o de confundir parlamentarismo com assembleísmo, ou confundir parlamentarismo com governo de assembleia, governo do parlamento; outro equívoco frequente, fruto do imediatismo característico da cultura brasileira, consiste em debater sistema de governo vinculando o debate aos políticos presentes naquele momento histórico, de modo a se verificar quais políticos se beneficiariam da adoção do sistema e quais seriam prejudicados por ele.

 

O temor, manifestado pelo brasileiro, de que o Congresso venha a governar, na hipótese de adoção do parlamentarismo, advém do desconhecimento do autêntico funcionamento do regime parlamentar de governo. Profundamente desgastado por uma série de escândalos de corrupção e por práticas fisiológicas desmoralizantes ― muito presentes no bloco intitulado Centrão, de grande influência na Câmara dos Deputados ― o Congresso Nacional é visto hoje com grande desconfiança por expressiva parcela da população. Curioso observar que o brasileiro, a um só tempo, ataca o seu parlamento e continua, ano após ano, a eleger os mesmos caciques e clãs da política estadual, as mesmas figurinhas carimbadas intermitentemente envolvidas em escândalos político/criminais.

 

O governo de assembleia ou governo convencional foi o regime introduzido na França pela Constituição Montanhesa de 24 de julho de 1793, renovado nas Assembleias Constituintes francesas de 1848 e 1871, e ainda hoje adotado pela organização política da Confederação Suíça, cujo Executivo, o Conselho Federal, deriva-se da Assembleia Federal, que o elege e exerce sobre seus atos um domínio incontestável. Este sistema de governo, pode-se dizer, é uma degeneração do sistema parlamentarista de governo. Com efeito, ao invés do chamado governo de gabinete (próprio do parlamentarismo), o governo de assembleia aplica absoluta preponderância da assembleia. Nele o ministério ou gabinete tem influência política bastante reduzida, restando tutelado pelas bancadas parlamentares majoritárias, que assumem a direção e o controle do governo e de sua política. O gabinete converte-se em mero delegado ou comissário de uma assembleia que, verdadeiramente, governa. O Executivo recebe um mandato imperativo, revogável ad nutum pela assembleia.

 

Não é este o caso do autêntico sistema parlamentarista de governo, notadamente o caso do moderno parlamentarismo monista, onde o gabinete, tendo à frente o primeiro-ministro, efetivamente exercita a direção do governo, cabendo ao parlamento ― além da função de legislar ― a fiscalização e o controle do aparelho governamental (papel que lhe cabe, aliás, no próprio sistema presidencial). No parlamentarismo o Executivo ― o gabinete ― possui autonomia e independência, gozando de ampla liberdade de atuação político/administrativa, respeitado o programa ou plano de governo com o qual se elegeu. A ele lhe cabe, com exclusividade, todos os atos de governo. Isso se dá, notadamente, nos regimes em que imperam o bipartidarismo ou o pluripartidarismo com composição de blocos ou coligações partidárias sólidos e duráveis, daí a importância de casar o sistema parlamentarista com o sistema eleitoral distrital. Ao votar em um deputado federal, o eleitor, conhecendo o partido daquele candidato e o plano de governo apresentado por aquele partido, vota com o propósito de ver formada a maioria que elegerá o primeiro-ministro. Portanto, o voto, no parlamentarismo, tem a finalidade de escolher representante no Poder Legislativo e de, ao mesmo tempo, escolher o governo. O eleitor elege seu deputado já de olho no futuro gabinete. O voto implica na eleição do legislativo, na formação da maioria parlamentar e na constituição do governo. Elege-se, pois, de uma só vez, legislativo e executivo (o governo). No moderno parlamentarismo, tamanha é a liberdade, a autonomia e a força para governar de que o gabinete goza que pode, até mesmo, nas hipóteses de divergências com o parlamento, resistir às pressões parlamentares dissolvendo-o, hipótese em que o soberano árbitro, o povo, será convocado a julgar a questão mediante realização de novas eleições.

 

O outro equívoco clássico cometido pelo brasileiro, quando se põe a discutir o melhor sistema de governo para o País, consiste em atrelar o debate ao nome dos políticos em atuação naquele momento. Resulta, então, do debate, saber qual seria o melhor sistema de governo para o político X governar, ou qual seria o melhor para impedir o político Y de governar, ou como seria o parlamentarismo com Z no poder e por aí vai a patacoada. Essa lamentável inversão de valores resulta da visão imediatista de mundo, própria do brasileiro. Vale lembrar que homens passam, governos passam, mas as instituições permanecem. O brasileiro, lastimavelmente, exibe notória dificuldade em atuar vislumbrando o futuro, plantar no presente para colher depois; prevalece o hoje, o agora, a premente necessidade de solução imediata de suas demandas por um redentor milagreiro investido de plenos poderes. No debate sobre sistema de governo não prevalece a preocupação séria em se definir qual sistema é o mais aperfeiçoado, qual o que melhor confere estabilidade política ao Brasil, qual o sistema mais democrático ou qual o que melhor confere participação popular nos destinos da nação e melhores soluções para os conflitos próprios da política. Prepondera, sempre, visão estreita, tacanha, provinciana, consistente em saber se o parlamentarismo viria para ajudar fulano, ou para prejudicar sicrano ou impedir beltrano de exercer os poderes plenos que o presidente tem no presidencialismo.

 

Assim foi, primeiramente, no plebiscito sobre sistema de governo realizado em 6 de janeiro de 1963. Com a renúncia do Presidente Jânio Quadros, avizinhando-se a ameaça de ruptura constitucional com a posse de João Goulart, foi instituído, por emenda constitucional, o parlamentarismo, remédio salvador da democracia brasileira. A mesma Emenda à Constituição que o implantou previu também a realização de plebiscito para definir o sistema de governo a ser adotado. Jango cuidou de fazer campanha nacional ― rádio e televisão ― pelo presidencialismo, sustentando, com dramaticidade, o casuísmo da adoção do parlamentarismo, aplicado exclusivamente com o propósito de impedi-lo de governar como presidente no sistema presidencialista. A campanha maciça de João Goulart terminou por sensibilizar o brasileiro, resultando em vitória do presidencialismo com mais de 80% de votos. O desenrolar da história todos bem conhecem.

 

Na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988, foi a questão do sistema de governo debatida com grande paixão pelos senhores constituintes. Expressivo bloco parlamentar se formou pelo sistema parlamentarista, contando com grandes constitucionalistas e políticos de renome, como Afonso Arinos de Melo Franco. No entanto, o Presidente José Sarney, expoente da ditadura militar que assumiu o poder ― em golpe de sorte ― com a doença e morte do saudoso Tancredo Neves, de quem era vice, promoveu hercúlea pressão sobre os constituintes, notadamente sobre os membros de sua base de apoio, pela manutenção do presidencialismo, argumentando que a adoção do parlamentarismo seria casuística e visaria, exclusivamente, impedi-lo de governar no presidencialismo, exercitando os amplos poderes que esse sistema lhe conferia. A agressiva pressão de José Sarney ― inclusive com ameaças de golpe de estado na hipótese de adoção do parlamentarismo ― redundou em vitória do presidencialismo por 343 votos a favor contra 213 votos contrários (dos parlamentaristas), em uma das raríssimas sessões em que todos os constituintes se fizeram presentes em plenário.

 

O debate sobre sistema de governo ganhou, ainda, uma fugaz sobrevida, com a previsão, inserida no texto constitucional, de realização de um plebiscito para se decidir sobre regime de governo ― república ou monarquia ― e sistema de governo ― parlamentarismo ou presidencialismo. Na propagando eleitoral gratuita que os grupos ― parlamentarista republicano, presidencialista e monarquista ― levaram a cabo, políticos que eram virtuais candidatos a Presidente da República no presidencialismo, como Lula, Leonel Brizola e Orestes Quércia, sonhando com as delícias dos poderes presidenciais (Lula o conquistou), saíram a campo pelo presidencialismo. O mantra e bordão empregado por esses presidencialistas de ocasião era o de que a memorável campanha das Diretas-já, que mobilizou milhões de brasileiros nas ruas pelo voto direto para presidente, terminaria frustrada e traída pela adoção do parlamentarismo. O plebiscito se deu em 21 de abril de 1993. Uma vez mais venceu o presidencialismo com 55,4% dos votos válidos contra 24,6%, computados dos votos válidos, para o parlamentarismo.

 

A história política da América Latina ― presidencialista toda ela ― é a história trágica de permanentes e intermitentes rupturas constitucionais: golpes militares, golpes comunistas, golpes promovidos por caudilhos políticos, guerras, guerrilhas e movimentos terroristas, revoluções, tentativas de golpes, ditaduras (militares, comunistas e dos caudilhos latinos), constituições outorgadas, instabilidade política permanente, tensões e crises políticas, opressão, perseguições políticas, torturas, exílios, populismo eleitoreiro, caciques e feudos políticos, miséria, corrupção institucionalizada e subdesenvolvimento. Em verdade o sistema presidencialista só triunfou com êxito pleno em um único país do mundo, aquele que o criou, os Estados Unidos da América. E isso se deve ao gênio único do povo americano, cônsul de seus direitos e do valor inestimável da liberdade. Ali o sistema de freios e contrapesos efetivamente funciona. O Brasil não foge à malfadada regra latino-americana. Desde a fundação da República (que aflora, aliás, por um golpe de estado) pequenos intervalos de normalidade democrática se fizerem suceder por tenebrosas ditaduras. Em verdade, quando os positivistas do Império conspiravam pela república, presidencialismo era algo que não constava da pauta. Dentre aqueles ardorosos republicanos, ninguém falava em presidencialismo. Acabou por nascer o presidencialismo, acompanhando o nascer da República, pela ação de Rui Barbosa que, ipsis litteris, copiou o modelo presidencial norte-americano na primeira Constituição Republicana brasileira. No fim da vida, porém, o saudoso jurista se confessou profundamente arrependido da adoção do presidencialismo para o Brasil. Mesmo os períodos de normalidade constitucional democrática na República brasileira estremeceram ora pela ação nociva de líderes caudilhescos, ora pela ação de conspiradores e golpistas extremistas.

 

Hoje mesmo os desafios enfrentados por nossa jovem e heroica democracia se mostram agigantados, com a ação funesta e liberticida de horda de fascistas que clamam por golpe de estado e por instituição de ditadura e pela ação ambígua e nebulosa de um presidente democraticamente eleito, mas pouco comprometido com o ideal democrático e que parece apoiar veladamente a famigerada campanha antidemocrática, flertando perigosamente com o autoritarismo.

 

Esperamos que o avanço do desenvolvimento econômico, da educação ― notadamente a educação política das futuras gerações ― e a consolidação da democracia pelo exercício livre dos direitos políticos facultem ao povo brasileiro, algum dia, optar por um sistema de governo que efetivamente funcione e que confira verdadeira estabilidade à vida política nacional, ao invés de colocar seu destino sempre nas mãos de bufões ridículos, de tiranos, de figuras messiânicas, populistas, de salvadores da pátria.


Coluna do DIB sábado, 27 de junho de 2020

O SISTEMA PARLAMENTARISTA DE GOVERNO - SISTEMA ELEITORAL DISTRITAL, FIDELIDADE PARTIDÁRIA E RECALL

 

O SISTEMA PARLAMENTARISTA DE GOVERNO

SISTEMA ELEITORAL DISTRITAL, FIDELIDADE PARTIDÁRIA E RECALL

A. C. Dib

 

Conferindo arrimo, vigor e plenas condições de funcionalidade ao sistema parlamentarista de governo, três institutos jurídico/políticos se revelam imprescindíveis a seu bom e adequado funcionamento: o sistema eleitoral distrital, a fidelidade partidária (com o consequente fortalecimento dos partidos políticos) e o recall. Mesmo no presidencialismo, a adoção de tais institutos democráticos revigora sua estabilidade e o aperfeiçoa.

 

No parlamentarismo o eleitor não elege o governo votando em um indivíduo, um caudilho, em um cacique político populista, como costuma acontecer no presidencialismo, notadamente na América Latina. No parlamentarismo o eleitor não vota em um “nome” ou em uma pessoa para governar ― no presidencialismo o governo é o presidente da república ―, mas vota em um partido, ou exatamente, vota no programa ou plano de governo que aquele partido apresenta e defende. No parlamentarismo o eleitor escolhe seu governo, o gabinete, votando no deputado do partido de sua preferência. Formando maioria na Câmara dos Deputados, aquele partido governará, escolherá o primeiro-ministro (que, por sua vez, constitui seu gabinete ou ministério). O processo de eleição do governo é tão democrático quanto o do presidencialismo, talvez até mais, eis que mais aprimorado o sistema. O eleitor elege seu governo, elegendo a maioria parlamentar (que formará o governo).

 

Em regra, no sistema parlamentarista de governo os partidos políticos possuem colorido político/ideológico claro, definido, inequívoco, conhecido de todo o eleitorado. Também o projeto político que cada partido tem para o país é acessível a todo o povo, dada a publicidade que se dá ao plano de governo de cada partido. Ao votar no candidato a deputado do partido X ou naquele do partido Y o eleitor sabe, exatamente, o que está elegendo. As bandeiras partidárias são notórias e visíveis e os deputados defendem com rigorosa fidelidade todas essas bandeiras agitadas por seu partido, contidas no programa de governo do partido. Tomando como exemplo ― clássico ― o da velha Inglaterra, o eleitor inglês, ao votar no deputado do partido conservador ou no deputado do partido trabalhista, sabe com exatidão qual política está escolhendo para as áreas de economia, de educação, de saúde, de ciência e tecnologia, de meio-ambiente, enfim, conhece bem a política partidária preconizada para cada uma dessas áreas governamentais. Os partidos, legalmente fiéis à sua linha político/ideológica e a seu programa de governo, não surpreendem e nem traem o eleitor, com espertezas e com manobras políticas eleitoreiras que violem suas diretrizes básicas. Estão os partidos, no parlamentarismo, umbilicalmente vinculados a seu programa de governo e seus representantes, os deputados, umbilicalmente devotados a seus partidos.

 

No presidencialismo, portanto, é personalista ou subjetiva a escolha do eleitor, que elege o governo votando em determinado candidato a presidente ― tendo sempre em conta que no presidencialismo o governo é o presidente da república. No parlamentarismo, ao contrário, a escolha não é subjetiva ou personalística: pouco importa quem seja o primeiro-ministro, eis que o programa de governo de seu partido será rigorosamente observado e aplicado. Claro que no moderno sistema parlamentarista monista o líder partidário ganha sensível visibilidade e será fatalmente o primeiro-ministro na hipótese de vitória de seu partido com a conquista da maioria das cadeiras na câmara dos deputados. Voltando ao exemplo inglês, foi a força, o brilho e o carisma de Margaret Thatcher que levaram o partido conservador a governar por longos e longos anos ― Thatcher simbolizava, como ninguém, todos os ideais do conservadorismo e de sua renovação. Assim, no parlamentarismo monista, os partidos contam com líderes fortes, populares, influentes na sociedade, que bem retratam e defendem todos os ideais e bandeiras partidários. E a própria oposição ― a minoria parlamentar ― tem sempre pronto e à mão o seu plano de governo, sempre preparada para assumir o poder, nas hipóteses de queda do gabinete, dissolução parlamentar ou novas eleições. Voltando ao exemplo inglês, o eleitor, no curso da Segunda Guerra Mundial, deu maioria aos conservadores, confiando o comando da guerra ao Primeiro-ministro Churchill; mas, vitoriosa a Inglaterra, preferiu que a paz fosse celebrada pelo trabalhista Clemente Attlee, dando maioria no Parlamento aos trabalhistas.

 

A Constituição brasileira de 1988, a mais democrática Carta de todas as que já tivemos, lamentavelmente, pecou ao eleger o sistema eleitoral proporcional que, salvo melhor juízo, restou fixado na Carta pela ação preponderante de um dos constituintes, o Senador Jarbas Passarinho. Como resultado da malfadada opção, tem-se quase que uma ingovernabilidade, frente ao elevadíssimo número de partidos políticos que ganham vida pelo referido sistema eleitoral proporcional. Partidos sem fim, a configurar sopa de letras de siglas inesgotáveis. Chega-se quase à situação espantosa de se ter mais partidos políticos que eleitores. Partidos, em geral, com pouquíssima representatividade, sem colorido ideológico claro, com programa de governo impreciso, ambíguo e vago, meros veículos eleitoreiros e fisiologistas de velhos caciques e clãs da política brasileira. Se já é difícil governar com poucos, tarefa hercúlea é a de governar com duzentos partidos, o que impõe ao governante malabarismos, acrobacias e um emaranhado de acordos canhestros e cavilosos, para formar a indispensável “base de apoio” ou “base aliada”. Em sentido contrário, tem o sistema eleitoral distrital, primeiramente, o asséptico efeito de reduzir o número de partidos aos poucos que, verdadeiramente, possuem peso, voz e representatividade, promovendo, então, a indispensável estabilidade para governar. Ademais, acaba com o complexo cálculo do quociente eleitoral ― termina eleito o candidato mais votado em seu distrito ― e aproxima eleitor e eleito, de forma que o eleitor passa a identificar nitidamente aquele representante em quem votou, podendo vigiar sua atuação, além de acessá-lo e pressioná-lo com maior eficácia, eis que o município se divide em distritos e o eleitor vota nos candidatos a deputados e vereador de seu distrito. E os representantes, deputados e vereadores, têm maior conhecimento e controle das demandas e problemas presentes em seu distrito eleitoral. O sistema eleitoral distrital, portanto, além de conferir maior estabilidade política ao regime, aproxima eleitor de eleito. Mesmo no presidencialismo (principalmente nele, talvez) o sistema distrital se revela superior ao sistema proporcional. Paradigmas da democracia, tanto os Estados Unidos ― presidencialista ― quanto a Inglaterra ― que é monarquia parlamentarista ― adotam o sistema eleitoral distrital: nos Estados Unidos os democratas (liberais e mais à esquerda) se revezam no poder com os republicanos (conservadores), enquanto que na Inglaterra conservadores, trabalhistas (socialistas) e liberais disputam a simpatia do eleitorado.

 

Corroborando o modelo eleitoral distrital, seria devido fortalecer o princípio da fidelidade partidária. Deveras, o modelo eleitoral proporcional faculta a criação de legendas de aluguel, partidos sem representatividade e sem nenhum colorido ideológico, meros veículos eleitorais de políticos mal intencionados e de caciques ladinos. Terminam, a seguir, depois de eleitos, “trocando de partido como quem troca de camisa” ― diz a sabedoria popular ―, assim que lhes aperte o calo. Ao cidadão, que elegeu seu deputado esperando ver aplicadas as ideias e propostas de seu partido, resta o amargo sabor de malogro na boca. Na moderna democracia representativa a escolha recai sobre programas, projetos e propostas político/ideológicas ― marcas e marcos dos partidos políticos ―, não sobre líderes messiânicos e salvadores da pátria. O mandato dos eleitos, portanto, pertence aos partidos pelos quais se elegeram, sem, contudo, desconsiderar o fato de que o eleitor merece conhecer seu candidato, saber em quem está votando. Ao deixar o partido, o mandatário seria, consequentemente, obrigado a deixar, também, a cadeira ocupada em sua casa legislativa. Os partidos, então, contariam, em cada distrito eleitoral, com candidatos dispostos a defender seu programa e demais propostas partidárias, com rigor e irrestrita fidelidade. Prevalece, urge frisar, a objetividade do programa de governo partidário, sobre a subjetividade de políticos velhacos, nem sempre fiéis às promessas que fazem para conquistar vitória eleitoral. Deveriam, em conclusão, fidelidade ao partido pelo qual se elegeram. De igual forma, os partidos deveriam guardar irrestrita fidelidade e compromisso para com seu programa e às propostas assumidas em campanha. Assim, a fidelidade partidária se manifesta de duas formas básicas: como o mandato pertence ao partido, deputado que optar pelo desligamento de seu partido deve, obrigatoriamente, abandonar sua cadeira na casa legislativa; assim como também, devem os eleitos irrestrita fidelidade ao plano de governo partidário e às deliberações fixadas por seus partidos. Pode o político mudar de opinião, mudar sua linha de atuação, mudar de partido, mas consciente de que, assim fazendo, perderá seu mandato. O eleitor jamais será enganado, atraiçoado por candidato a deputado que defende e promete determinada coisa e, depois de eleito, muda de postura e termina por fazer exatamente o contrário do prometido.

 

Temos, por fim, o recall ― também chamado de “voto destituinte” ― ou “direito de revogação”, como elemento modernizador de nossa jovem democracia (a ser empregado tanto no parlamentarismo, quanto no presidencialismo). Recall político é o poder de cassar ou revogar o mandato do representante político, conferido ao eleitorado. O termo significa “chamar de volta” (recolher, retirada, revogação do mandato), destituindo-se do mandato um mandatário ímprobo, incompetente ou de atuação contrária à vontade popular. Pelo recall, voto destituinte ou direito de revogação, o eleitorado, mediante uma eleição especial, promove a substituição de seu representante no legislativo, antes da extinção normal do tempo de duração do mandato. Passam os representantes do povo a devotarem maior respeito à opinião pública e maior consideração pelos interesses populares, frente à possibilidade permanente de sua destituição. No sistema eleitoral distrital a prática do voto destituinte se torna muito fácil e precisa, eis que nos limites estritos do distrito eleitoral eleitor e eleito devem guardar perfeita sintonia, conexão. O eleitor elege seu representante, em seu distrito eleitoral, podendo “chamá-lo de volta”, caso não proceda bem ou caso se mostre infiel.

 

Instituto do direito público norte-americano, o recall deriva do Abberufungsrecht suíço.

 

No Brasil Império, entre os anos de 1822 e 1823, o Decreto de 16 de fevereiro de 1822, que instituía o Conselho de Procuradores Gerais das Províncias do Brasil, fixava, em seu preâmbulo, que: “...os quaes Procuradores Geraes poderão ser removidos de seus cargos pelas suas respectivas Províncias, no caso de não desempenharem devidamente suas obrigações, si assim o requererem os dous terços das suas Camaras em vereação geral e extraordinária, procedendo-se à nomeação de outros em seu logar”. Tal decreto, então, estabelecia a possibilidade de destituição dos eleitos, por iniciativa dos eleitores, caso não cumprissem suas obrigações. Na República Velha, alguns estados da Federação, como Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás e São Paulo adotaram, em suas constituições, o voto destituinte. Na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88, o tema da revogação do mandato eletivo foi proposto e debatido, com a denominação de “voto destituinte”, restando, lamentavelmente, rejeitado pelos senhores Constituintes.

 

Temos, portanto, o sistema parlamentarista de governo como o mais aperfeiçoado dentre todos os que existem, no campo da democracia representativa. Quando acompanhado de institutos profundamente democráticos como o voto distrital, a fidelidade partidária e o recall ou voto destituinte, o sistema aumenta consideravelmente a eficácia de seu funcionamento, além de reforçar a observância e o cumprimento da vontade popular soberana.

 


Coluna do DIB quinta, 04 de junho de 2020

O SISTEMA PARLAMENTARISTA DE GOVERNO - CHEFE DE ESTADO E CHEFE DE GOVERNO

 

O SISTEMA PARLAMENTARISTA DE GOVERNO

CHEFE DE ESTADO E CHEFE DE GOVERNO

A. C. Dib

 

 No sistema presidencialista de governo as funções de Estado (grafamos aqui com maiúscula para distinguir “Estado” alusivo a País e a nação, dos chamados “estados-membros” do regime federativo) e as de governo se concentram nas mãos de um só homem: o presidente da república. O supremo mandatário da república, o presidente, no presidencialismo é, a um só tempo, chefe de Estado e chefe de governo. Como resultado disso, temos que, no presidencialismo, as crises de governo se transformam, inevitável e irresistivelmente, em crises de Estado. Instabilidades governamentais acabam por converter-se em instabilidade das instituições da república. Vale observar que ― na democracia, notadamente ― governos são itinerantes, intermitentes, governos passam, são substituíveis, sucedem-se. Já as instituições de Estado se revestem de caráter permanente, pautam-se pela perenidade. Assim, no presidencialismo, quando o governo anda mal, sua fraqueza, seu desgaste, os impasses e conflitos acabam por atingir as instituições de Estado. Balança o governo, balançam as instituições republicanas e o próprio regime democrático. Vale lembrar que, no presidencialismo, que não conta com os institutos da responsabilidade do chefe de governo e com o da dissolução parlamentar[1] ― mecanismos excelentes de solução dos impasses políticos ―, não há como remover um mau governante do poder e não há como dissolver um mau parlamento, convocando novas eleições. O “remédio” é aguardar pelas próximas eleições ou, com grandes traumas, apelar pra “solução” muito adotada na combalida América Latina: o golpe de Estado.

No parlamentarismo a coisa é bem diferente: chefe de Estado e chefe de governo se distinguem, o que fortalece muito a estabilidade do regime político. Aqui as crises de governo não afetam e nem comprometem as instituições do Estado e são facilmente superadas.

 No parlamentarismo o chefe de Estado é o rei ― na monarquia parlamentarista ― e é o presidente da república ― no parlamentarismo republicano. No parlamentarismo republicano o presidente é, em regra, eleito pelas duas casas do parlamento, câmara dos deputados e senado, e eleito geralmente por maioria qualificada. O chefe de Estado, presidente da república, em regra é um nome de consenso nacional, figura veneranda e provecta da nação, nome suprapartidário que conta com o respeito, o respaldo e a confiança geral. Costumeiramente um grande jurista, um líder civil inconteste, um herói nacional, uma referência nacional ou um político querido e de incontáveis serviços prestados à pátria. O chefe de Estado não faz política, não milita em partidos políticos, não pratica atos de governo, não defende políticas ou propostas governamentais (nem, ao menos, opina em questões de governo). Está “acima” de tudo isso. É o grande árbitro nacional, mantendo-se neutro, sem partidarismos. Na velha Inglaterra, o rei é quase que um símbolo nacional, ao lado da bandeira, do hino e das armas reais. Os ingleses dizem: “o rei não governa, o rei reina”. Ao chefe de Estado são reservadas importantes atribuições, dentre as quais, a mais significativa: dissolver o parlamento, convocando novas eleições parlamentares, por iniciativa própria ou mediante solicitação do primeiro-ministro. Além disso, competem-lhe as atribuições de Estado: representa o país no exterior, é o comandante supremo das forças armadas, indica e nomeia magistrados dos tribunais superiores (com aprovação do senado), indica e nomeia ministros do tribunal de contas (aprovadas as indicações pelo senado), indica e nomeia o procurador-geral (também com sabatina e aprovação do senado), nomeia comandantes militares, diplomatas etc.. Como não governa, não tem responsabilidade política (só responde politicamente por atos de governo quem os pratica). Como, na democracia, “ninguém está acima da lei”, está sujeito à responsabilidade criminal, podendo submeter-se a processo de impeachment pela prática de crimes de responsabilidade e respondendo por crimes comuns.

Já a chefia de governo compete ao primeiro-ministro. Em regra, no regime bicameral (parlamento composto por câmara dos deputados e senado), o primeiro-ministro é eleito pela chamada “câmara baixa”, a câmara dos deputados, eleito pelo partido ou bloco partidário majoritário. A ele compete nomear e exonerar os demais ministros, componentes do gabinete ministerial, e, junto com o gabinete, aplicar seu programa de governo, traçar e executar as demais políticas nacionais, gerir a máquina da administração pública e preencher os cargos da administração, apresentar projetos de lei ao parlamento, etc.. Cabe, ainda, ao primeiro-ministro presidir as reuniões ministeriais, vetar, sancionar e promulgar as leis aprovadas pelo parlamento e outras atribuições mais. Pode o primeiro-ministro, atuar dentro do parlamento, defendendo seus projetos em plenário. É, em regra, o comandante máximo do partido que o elegeu. Faz política, promove negociações e articulações políticas, lidera a maioria parlamentar. Se o parlamento, injusta e indevidamente, aprovar voto de desconfiança, pode solicitar ao presidente que o dissolva, com celebração de novas eleições parlamentares. Responde, junto com o gabinete, pelos atos de governo, podendo ser responsabilizado política (queda do gabinete por aprovação de voto de desconfiança) e criminalmente (pela prática de crime comum).

No parlamentarismo é clara, nítida e palpável a distinção entre chefia de Estado e chefia de governo. “Caem” os governos, sucedem-se as políticas de governo, permanecem sólidas as instituições políticas do Estado. Crises de governo são fácil e rapidamente superadas, sem afetar a estabilidade institucional. Vão-se os governos, vão-se os políticos, vão-se os homens, permanecem intactas as instituições do Estado, sem riscos ou ameaças de rupturas institucionais, permanece inatingível e saudável a democracia.

[1] Ver os dois Artigos anteriores nos quais cuidamos, respectivamente, da responsabilidade política do chefe de governo e da dissolução parlamentar.


Coluna do DIB quinta, 28 de maio de 2020

O SISTEMA PARLAMENTARISTA DE GOVERNO - A DISSOLUÇÃO PARLAMENTAR

 

O SISTEMA PARLAMENTARISTA DE GOVERNO

A DISSOLUÇÃO PARLAMENTAR

A. C. Dib

 

Mecanismo relevante no sistema parlamentarista de governo, solução pacífica e constitucional de impasses políticos, obra primorosa de estruturação democrática do respeito pleno à vontade do eleitor é a chamada “dissolução parlamentar”.

 Pela dissolução do parlamento, o governo ― o gabinete ― tem o poder de convocar o legítimo soberano, o povo, para julgar conflitos políticos, pacificando divergências, pondo termo a impasses, destravando amarras fixadas pelo parlamento, mediante promoção de novas eleições parlamentares.

Garantindo que parlamentarismo não é “governo de assembleia”, não é governo do parlamento, impedindo uma hegemonia parlamentar que se mostra deletéria, o instituto da dissolução parlamentar corrige falhas do parlamento em suas posturas, dando ao governo a possibilidade de executar políticas necessárias, mas erroneamente embargadas ou violadas pelo parlamento. Em tais casos, o soberano, o povo, é chamado a julgar, mediante nova eleição parlamentar. Feitas as novas eleições, se o governo obtiver a esperada maioria, poderá manter-se, garantindo a execução do programa de governo que pretendia implantar. Na hipótese de resultar da nova eleição maioria parlamentar contrária ao governo, o eleitor, juiz máximo, terá fixado que não desejava a adoção daquelas medidas políticas propostas pelo gabinete, caso em que esse gabinete deverá renunciar. Prevalece, então, em qualquer caso, a soberana vontade popular, seja para reprovar o parlamento ― formando nova maioria, de apoio ao governo ― seja para reprovar o gabinete, que termina por cair.

 Em regra, cabe ao chefe de Estado ― rei, na monarquia parlamentar, ou presidente da república, na república parlamentarista ― dissolver a assembleia ― a câmara dos deputados ― convocando novas eleições. Pode o chefe de Estado dissolver a assembleia por iniciativa própria ou mediante provocação do primeiro ministro, que é o chefe de governo. Algumas constituições admitem também a dissolução da assembleia mediante iniciativa popular, manifestando-se o eleitor por meio de petição que contenha percentual de assinaturas do eleitorado fixado pela Constituição. Por fim, algumas constituições parlamentaristas chegam a admitir a própria autodissolução, ou a dissolução promovida pelo próprio parlamento, observando-se quórum estabelecido pela carta constitucional.

 A dissolução parlamentar funciona como contraponto à responsabilidade política do governo. Se, por um lado, o parlamento pode “derrubar” o governo, aprovando moção de desconfiança que o obriga a renunciar, por outro lado, contando o governo com respaldo popular, pode dissolver o parlamento, chamado o eleitor a decidir o imbróglio. Os institutos da dissolução parlamentar e da responsabilidade política do governo se contrapõem de forma harmoniosa, equilibrada, prestigiando sempre, e em qualquer hipótese, a manifesta vontade do eleitor.

 No parlamentarismo, parlamento não funciona sem contar com a simpatia do povo. Ai do parlamento se proceder mal, se atuar contra a vontade popular, se “sair dos trilhos”, se vier a se contrapor a um governo que encontre apoio popular na condução de suas políticas.

 Tal mecanismo garante a higidez e a flexibilidade do sistema que, ao contrário do presidencialismo, não é um sistema estático, engessado, pesado. No presidencialismo, ao povo resta aturar por quatro longos anos um mal governante, aturar por igual período, também, um parlamento suspeito, que não procede bem, que atue em benefício próprio ou contra os interesses populares, contra os interesses nacionais. Procedendo mal o governo, cai pela aplicação do instituto da responsabilidade política; procedendo mal o parlamento, terminará dissolvido, com celebração de respectivas eleições novas.

 Incomparáveis, assim, os mecanismos legais que conferem ao parlamentarismo maior leveza, maior segurança, mais flexibilidade, agilidade e transparência na superação serena de impasses políticos e, sobretudo, maior respeito à vontade soberana do povo. Crises e impasses que no presidencialismo latino americano costumam ser “resolvidos” pela guerra, pela guerra de guerrilha, pelo golpe de estado, pela revolução, pela imposição de ditaduras, enfim, pelo sangue derramado, no parlamentarismo se resolvem constitucional e pacificamente, pela responsabilidade política do chefe de governo e pelo instituto da dissolução parlamentar, além de outros mecanismos jurídico/políticos sabiamente previstos no harmonioso e evoluído sistema parlamentarista.


Coluna do DIB terça, 26 de maio de 2020

O SISTEMA PARLAMENTARISTA DE GOVERNO

 

O SISTEMA PARLAMENTARISTA DE GOVERNO

A RESPONSABILIDADE DO CHEFE DE GOVERNO

A. C. Dib

 

São incontáveis as vantagens do sistema parlamentarista de governo sobre o sistema presidencialista. Fruto do lento, natural, gradual e progressivo aperfeiçoamento e evolução das instituições políticas inglesas, o parlamentarismo oferece eficazes mecanismos legais de solução de crises políticas e impasses geradores de ingovernabilidade. Uma das instituições mais eficientes e seguras na superação constitucional das tais crises de governo, no parlamentarismo, é o chamado voto ou moção de confiança ― ou de desconfiança ― promovidos em razão da chamada “responsabilidade política” do chefe de governo ou do gabinete, que faz superar de forma ágil, simples e legal ditos impasses.

Importa diferenciar “responsabilidade política” de “responsabilidade criminal”. Responsabilidade política diz respeito a erros cometidos pelo governo na gestão da coisa pública, na aplicação de suas políticas, erros ou falhas que denotem dificuldade para governar, incompetência, inabilidade, resultando em impopularidade, fraqueza, perda de apoio, desgaste político. Também escândalos de qualquer espécie, resultantes em quebra da autoridade moral indispensável ao exercício do governo implicam em responsabilidade política. Má aplicação ou aplicação errônea de recursos públicos, quebra de promessas e compromissos políticos, inobservância do programa de governo, práticas governamentais moralmente condenáveis, implementação de políticas desastrosas, enfim, tudo resulta na responsabilização política do governo, e todas essas falhas cobram um preço alto do governo: a “queda do gabinete”.

Já a responsabilidade criminal diz respeito à prática de crimes cometidos pelo agente público, sejam crimes comuns, tipificados no Código Penal, sejam os chamados “crimes de responsabilidade”, que são aqueles que o governante pode vir a praticar no exercício do poder (atentar contra a existência da União, contra a segurança nacional, contra a livre atuação dos outros Poderes, contra o livre exercício de direitos constitucionais, contra as leis, contra a probidade na Administração e contra a lei orçamentária). A responsabilidade política não diz respeito à prática de crimes; está, sim, ligada à incompetência, à ineficácia e à inabilidade para governar. No parlamentarismo, quando o governo “trava”, ele cai.

No parlamentarismo Executivo e Legislativo se confundem, eis que o governo ― o gabinete ― é formado pelo parlamento, ou, pela mais importante e significativa ala do parlamento: a maioria parlamentar. Assim, para governar, é indispensável que o gabinete goze da confiança do parlamento. E não há na democracia instituição mais sensível à vontade, ao estado de humor e à opinião do eleitorado que o parlamento.

No presidencialismo o chefe de governo, o presidente, não tem responsabilidade política. É, portanto, politicamente irresponsável. Assim, não responde politicamente pelas falhas nas políticas implantadas, por seus desacertos, pela incompetência demonstrada, por dificuldade revelada para governar, pela impopularidade que atrapalhe o exercício do poder, por escândalos que comprometam sua credibilidade e autoridade moral. No presidencialismo não há voto ou moção de desconfiança; no presidencialismo presidente não “cai”. Não importa quantos erros o presidente possa cometer na aplicação de suas políticas, quão desastrosa se mostre sua atuação, quão fraco, impopular e desacreditado ele fique: no presidencialismo não há como remover do poder um mau governante. Resta ao desafortunado eleitor esperar pacientemente pelo fim do mandato desse inábil gestor. Vale frisar que impeachment é um processo de natureza político/criminal. O impeachment pune os chamados “crimes de responsabilidade” praticados pelo presidente. É, portanto, o impeachment um remédio constitucional amargo, traumático, gerador de instabilidade política, que busca apurar e punir crime praticado pelo governante. E o resultado do impeachment, quando aprovado, não é a queda pura e simples do governante, mas sua condenação político/penal, com aplicação de pena ou punição ― perda do cargo e dos direitos políticos. Por outro lado, não havendo a possibilidade de impeachment, o “recurso” costumeiramente empregado para remover, então, o mau governante, no presidencialismo, é o golpe de estado, quebra da constituição, violação institucional, muito em voga na trágica história de nossa sofrida e pouco desenvolvida América Latina. Eis aí outra “eficiente” maneira de “superação” dos impasses no presidencialismo, o golpe de estado, de consequências imprevisíveis, mas sempre trágicas: ditaduras, violências, conflitos armados, guerrilhas e sangue, muito sangue.

Muito diferente é o instituto da responsabilidade política do governante, que permite a retirada rápida, fácil e constitucional do falho, do impopular e incompetente, sem dor, sem traumas, sem ameaça de rupturas institucionais, sem geração de instabilidade política, com a substituição do governo decaído por outro mais adequado e ajustado à opinião pública. No parlamentarismo, definitivamente, ninguém governa à revelia da vontade popular. Pecou politicamente, cai. E fim de papo!

Frente à “derrapada” do governo, a Câmara dos Deputados pode, por meio de aprovação do voto de desconfiança, substituí-lo por outro mais capaz. E o próprio primeiro ministro pode solicitar à Câmara dos Deputados um voto de confiança, o que lhe conferirá respaldo e vigor necessários para aplicação das políticas exigidas e devidas, ainda que amargas ou impopulares momentaneamente.

Pelo sistema da responsabilidade política o primeiro ministro ― chefe de governo no parlamentarismo ― responde politicamente também pelos atos de seus subordinados. Na medida em que escolheu, nomeou seus ministros, quando estes falham gravemente, não pode se esquivar argumentando que “não sabia de nada”, não teve culpa pelo ato do outro, não se responsabiliza pelo ato de seu ministro. O princípio reza que: se nomeou o homem errado, responde politicamente por isso. É a chamada culpa in eligendo e in vigilando. A nomeação em si mesma foi errônea, implicando em responsabilidade do governante. Insistimos: não confundir responsabilidade política com responsabilidade criminal. A responsabilidade criminal é pessoal, intransferível. Só o próprio autor do crime responde por sua prática. Mas se o ministro, componente do gabinete, cometer crime ― prática de corrupção, por exemplo ― responderá criminalmente pela prática, mas seu superior, o primeiro ministro, responderá politicamente pela falta grave do subordinado.

Assim, a responsabilidade política do governo, do gabinete é um dos institutos que atestam a superioridade do parlamentarismo sobre o presidencialismo na solução de impasses que, mal resolvidos, podem levar a gravíssimas crises políticas, resultando em instabilidade política e em nefastas rupturas constitucionais. Exemplos do caos político abundam e pululam na história do presidencialismo brasileiro.


Coluna do DIB terça, 05 de maio de 2020

APOLOGIA DE INTERVENÇÃO: FASCISMO OU IGNORÂNCIA?

 

APOLOGIA DE INTERVENÇÃO: FASCISMO OU IGNORÂNCIA?

A. C. Dib

 

                        Em uma publicação no Facebook, na qual chamei de “fascistas” os apologistas de intervenção militar, fui censurado por uma grande amiga que, retrucando a adjetivação, respondeu dizendo que “os que eu chamei de fascistas seriam, em verdade, gente simples e sofrida, pessoas do povo fartas de corrupção na política e cansadas da velhacaria dos maus políticos”.

                        Depois de muito meditar nas palavras dessa querida amiga, firmei entendimento de que lhe assiste parcial razão: muitos daqueles que “militam” no movimento por intervenção militar o fazem por total desconhecimento de causa, por absoluta ignorância. Lastimavelmente, parecem ignorar o que seja um golpe de estado, uma ditadura, a seriedade da ruptura constitucional com a respectiva supressão da liberdade e da democracia.

                        Penso que muitos ali não viveram ― ou vivenciaram ― os anos do ciclo militar: ou (como eu) eram crianças nesse período ou já nasceram na vigência do regime democrático restaurado.

                        Bem assim, néscios no assunto, simplórios, desconhecem a real dimensão de uma ditadura, ignoram o que reside por detrás do sorriso de um tirano: supressão da liberdade de pensamento, de escolha e de opinião, supressão de direitos e garantias individuais, violências generalizadas, tortura a presos políticos, assassinato de opositores, prisões arbitrárias, censura à imprensa e à livre expressão, imposição de ideias e de costumes, perseguição a desafetos indefesos, violações a direitos humanos, opressão e medo. Tais apologistas da intervenção militar não imaginam ou calculam o terror que impera em um regime ditatorial, o pavor de desaparecer misteriosamente na calada da noite, o desespero de não ter defesa contra inimigos ferozes e poderosíssimos, a total vulnerabilidade e fragilidade frente ao gigantismo do Estado. Em 1964, muitos dos que clamavam por intervenção militar só passaram a valorizar a liberdade depois de perdê-la. Certo que, naqueles idos não muito distantes, imperava agitação (no seio das próprias Forças Armadas, inclusive), caos político e o advento da célebre “ameaça vermelha”, o que, absolutamente, não se verifica hoje, com as instituições funcionando em pleno vigor democrático/constitucional.

                        Já vi alguns desses alienados apologistas sustentarem que não desejam golpe de estado e implantação de uma ditadura, mas, tão somente, uma mera “intervenção militar”, como se a tal intervenção fosse uma prática constitucional e asséptica, na qual os militares, frente à incompetência do poder civil, assumiriam temporariamente o poder e, varrendo daqui, espanando dali, eliminariam a poeira e a bagunça, colocariam ordem na casa e rumo na nau e, discretamente, se retirariam, devolvendo gentilmente o poder aos civis. Ignoram que a última intervençãozinha durou vinte anos ― vinte longos anos de madrugada sombria e tenebrosa. Isso sem contar os anos de Estado Novo ― ditadura de Vargas ―, também muito eficaz e prolífica nas maldades praticadas em nome da Pátria. Em um desses grupos de apologistas da intervenção militar, certa feita, publicada uma foto de presidente do ciclo militar, imperou a dúvida se o retrato seria de Médici ou de Figueiredo. Semelhante desconhecimento é de estarrecer, eis que é abissal a diferença que separa ambos os generais: enquanto Figueiredo foi o homem da anistia, da abertura política, Presidente que restaurou as liberdades democráticas, Médici foi um dos mais truculentos ditadores que o Brasil já conheceu.

                        Já ouvi que o Brasil não teve uma ditadura genuína, mas uma “democracia à brasileira”. Cito, aí, o pensamento de Sobral Pinto, para quem: “Não existe a tal democracia à brasileira; existe, sim, peru à brasileira, eis que a democracia é uma só: ou existe, ou não”. Já ouvi, também, com ares de deboche do interlocutor, que o Brasil não viveu de fato ditadura, mas uma “ditamole”, eis que ditaduras como a chilena ou a argentina teriam sido bem mais violentas que a brasileira. Curioso medir o grau de autoritarismo de uma ditadura pela altura da pilha de cadáveres que produz.

                        Não existe, meus amigos, “ditadura boazinha”: toda ditadura é má, torpe, desleal, vil, impiedosa, agressiva, sanguinária. Ditadura não é solução pra nada, mas, isto sim, fonte de problemas, de dramas, de infelicidade e sofrimentos. A ditadura se mantém pela força e pelo medo. O medo é sopro de vida das ditaduras, alimento dos ditadores. E o medo se impõe com aplicação da violência. Ditadura não é panaceia redentora e reformadora para corrigir todos os problemas do Brasil. Delirante utopia, lamentável desconhecimento da história recente brasileira.

                        Só na democracia encontraremos solução para os problemas nacionais, pela livre fluência e debate de ideias, pela livre escolha de propostas e de governantes, pelo diálogo fraterno e fixação de entendimentos. Escolhas ruins são corrigidas por novas escolhas. O voto é profundamente didático e o processo político democrático forma legítimos cidadãos. Eventuais falhas do modelo democrático se fazem corrigir com mais e mais democracia. Só no regime democrático impera a verdadeira vontade e soberania populares.

                        Juscelino Kubitschek, com seu programa “Cinquenta Anos em Cinco”, há muito já demonstrou que a democracia convive maravilhosamente bem com o desenvolvimento econômico. O célebre Julgamento do Mensalão e a Operação Lavajato, por sua vez, fizeram ver que não necessitamos de ditaduras para punirmos corruptos (punições fartamente distribuídas sem arbítrio, com total observância das garantias constitucionais de contraditório, ampla defesa e devido processo legal).

                        De toda sorte, se a maioria dos apologistas da intervenção militar são pessoas humildes, sofridas, simplórias e desprovidas de total domínio daquilo que defendem, temos que os “líderes” ou “cabeças” desse movimento não são tão ingênuos e inocentes assim. Esses, sim, são pessoas de formação totalitária, extremistas natos e convictos, fascistas conscientes e bem calçados em seu ardor radical, liberticidas que se valem da ignorância e da credulidade dos tolos para venderem seu peixe podre e fétido.

                        Claro, também, que ainda que larga parte desses apologistas de golpe de estado não saibam ao certo do que estão a falar e a pregar, ainda assim a tese que defendem é profundamente perniciosa, nociva, maléfica e desastrosa, além de criminosa. Trata-se de tese fascista. Se na democracia em vigor defendem a ditadura, em uma ditadura não poderiam defender a adoção da democracia.

                        Violar a ordem democrática por meios violentos, com ruptura constitucional e propósito de imposição de regime antidemocrático e ditatorial é crime e fazer apologia de fato tipificado como crime é crime também. Democracia não é “a casa da mãe Joana”, o regime da desordem. Democracia ― governo do povo ― não é anarquia ― ausência de governo. Também na democracia ― e principalmente na democracia ― existem leis que controlam e limitam o poder dos governantes e se fazem impor a todos igualmente, sem exceções. Segue em curso investigação para identificar os líderes do movimento criminoso por golpe de estado, com fechamento do Congresso Nacional ― a chamada “Casa do povo” ― e fechamento do Órgão máximo do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal. Esperamos que ditas investigações cheguem a bom termo, o mais rapidamente possível, fazendo com que os idealizadores do projeto fascista de golpe de estado, com implantação de ditadura, sejam rigorosamente punidos, na forma da lei.

                        O Presidente Bolsonaro, por sua vez, parece estimular veladamente o malfadado movimento, talvez acalentando o sonho utópico de se converter “nesse homem forte de que o Brasil tanto necessita”. Felizmente o povo brasileiro, em sua larga maioria, parece estar vacinado contra esse vírus do autoritarismo, vendo com ceticismo o messianismo populista de salvadores da Pátria. E os Chefes Militares, nossos oficiais generais, homens muito preparados, sérios, lúcidos, devotados à Constituição e ao regime democrático, não vislumbram qualquer clima para passo tão sério e grave. Ao contrário, no instável Governo Bolsonaro os ministros militares constituem o elemento de equilíbrio e racionalidade a conferir um mínimo de credibilidade a tão perdido governo. Seguem os militares trabalhando com patriotismo, sem politicagens, com rigorosa isenção técnica, no cumprimento da relevante missão que a Carta de 1988 lhes reservou. Outrossim, radical, polêmico, despreparado, psicologicamente instável e sempre testando ao máximo o limite da estabilidade institucional, não temos dúvida de que, na absurda hipótese de um golpe militar, Bolsonaro seria o primeiro a cair, seria o primeiro cassado.


Coluna do DIB segunda, 06 de abril de 2020

O NÃO-CONSERVADOR

 

O NÃO-CONSERVADOR

A. C. Dib

 

                   Em muitas de minhas publicações no Facebook criticando o Presidente Bolsonaro, um amigo costumava contestar ou refutar o conteúdo da publicação contrapondo-lhe mazelas atribuídas ao Lula e à Dilma. Assim, se eu falasse em equívocos, ele apontava equívocos análogos de Lula e Dilma; se eu falasse em escândalos, ele citava escândalos piores dos governos Lula e Dilma; se eu falasse da barriga do Bolsonaro, ele apontava a barriga do Lula e a da Dilma.

 

                   ― Por que você não fala da barriga do Lula e a da dona Dilma?

 

                   Certa vez, não resisti e perguntei:

 

                   ― Mas, afinal, quem é Lula? Quem é Dilma?

 

                   Nada mais comum que associar à esquerda a oposição ao governo Bolsonaro. Inadmissível, inconcebível, impensável que um liberal na política, homem de centro ― conservador, mesmo, em questão de moral, tradição e costumes ― venha a firmar oposição a Bolsonaro, baluarte do conservadorismo. “Se opor a Bolsonaro, só mesmo sendo um extremista de esquerda”. E quanto mais duro o opositor, maior esquerdista seria. Escandaloso que um conservador não goste de Bolsonaro. Seria o mesmo que dar um tiro no próprio pé, ou algo como uma auto-oposição. Ledo engano associar o conservadorismo a extremismos, a ditaduras de direita, a autoritarismos.

 

                   O conservadorismo, grosso modo, tem como características gerais a defesa da tradição, das particularidades nacionais, regionais e locais, da autoridade, além de posicionar-se contra o coletivismo, o individualismo e o racionalismo político.

 

                   Edmund Burke, tido como o primeiro teórico político do pensamento estritamente conservador, em 1790, quando a Revolução Francesa ainda prometia uma utopia sem sangue, previu, em sua Reflections on the Revolution in France, que, com a rejeição radical e abrupta da tradição e de valores herdados, a revolução descambaria para o terror e para a ditadura. Dito e feito.

 

                   No Brasil Império, notável foi a influência do Partido Conservador no processo de abolição da escravidão. Sob a gestão do Conservador Eusébio de Queirós, Ministro da Justiça, a “Lei Eusébio de Queirós”, de 1850, proibiu o tráfico negreiro para o Brasil. Também ao Partido Conservador devemos a “Lei do Ventre Livre”, ou “Lei Rio Branco”. O conservador Primeiro-Ministro João Maurício Wanderley, o Barão de Cotegipe, conseguiu a aprovação da chamada “Lei dos Sexagenários”. Finalmente, na gestão do Gabinete Conservador de João Alfredo Correia de Oliveira foi promulgada a Lei Áurea. O apoio à abolição da escravatura custou a Pedro II sua coroa, eis que os grandes latifundiários escravagistas, em represália, apoiaram o golpe de Estado que proclamou a República brasileira.

 

                   Por essa época, o Presidente americano Abraham Lincoln ― umas das referências históricas de democracia e liberdade ― colocava abaixo, a duras penas, a escravidão naquela República. Vale lembrar que Lincoln pertencia ao Partido Republicano, associado ao conservadorismo na política norte-americana.

 

                   Voltando ao Brasil, temos memoráveis exemplos de conservadores que se consagraram como grandes e destemidos combatentes da democracia, de seus valores e ideais. O constitucionalista e político gaúcho Paulo Brossard, com seu chapéu panamá, sua gravata borboleta, bengala e relógio de algibeira, antes mesmo de discursar, já revelava fisicamente seu conservadorismo. No Rio Grande do Sul, Brossard foi tenaz adversário político dos esquerdistas João Goulart ― o Jango ― e do cunhado deste, Leonel Brizola. No Congresso Nacional, instituído o regime ditatorial de 1964, filiou-se ao MDB, partido de oposição, destacando-se por sua combatividade na defesa da democracia. Foi o único deputado federal a se pronunciar da tribuna da Câmara contra a eleição indireta para a presidência da República, no final de outubro de 1969, do General Médici. Em uma das mais belas páginas da história política brasileira, discursou analisando o sentido da palavra “eleger”: “…Eleger, de eligere, quer dizer escolher, separar, estremar, nomear, preferir, selecionar, designar. E no caso não se trata de eleger, porque a eleição já foi feita”.

 

                   Outro notório conservador, o político mineiro Tancredo Neves, foi outra referência brasileira na defesa dos mais singelos e caros ideais democráticos. Como principais características da longeva atuação política de Tancredo Neves, temos: a defesa heroica e intransigente da democracia; a grande habilidade e talento como articulador político e conciliador de opostos; a extrema lealdade a todos os Presidentes da República com quem atuou. No campo da lealdade e da coerência política, Tancredo foi Ministro da Justiça de Getúlio Vargas ― não no Estado Novo, mas no governo democrático de Vargas ―, tendo Vargas morrido em seus braços. Apoiou o governo do Presidente Juscelino Kubitschek, conservando apoio e amizade após a cassação, o exílio e a prisão do criador de Brasília. E, por fim, com a renúncia de Jânio Quadros, articulou a implantação do parlamentarismo, para evitar a ruptura institucional prenunciada frente à iminente posse de Jango na Presidência, sendo nomeado Primeiro Ministro por Jango. Posteriormente, reintroduzido o sistema presidencialista, foi líder do governo Jango na Câmara dos Deputados, sendo dos poucos que foram ao Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, para se despedir do ex-presidente quando este partiu para o exílio no Uruguai. Antes disso, porém, quando o Presidente da Câmara, Auro de Moura Andrade, declarou vaga a Presidência da República, Tancredo, lembrando que o Presidente Goulart ainda se achava em território nacional, dirigindo-se a Moura Andrade, berrou a plenos pulmões: “Canalha! Canalha!”. Foi o único congressista, membro do PSD, a não votar, em 11 de abril de 1964, no Marechal Castelo Branco, na primeira eleição indireta de Presidente da República produzida no regime militar.

 

                   O advogado Heráclito Fontoura Sobral Pinto, conservador apaixonado e fervoroso militante católico, ao longo de toda sua vida pública e profissional, sempre conciliou seus ideais conservadores com princípios constitucionais clássicos de direitos humanos e direitos e garantias individuais dos cidadãos. Na defesa aguerrida de presos e perseguidos políticos nos regimes de exceção instaurados no Brasil ― Estado Novo e regime militar de 1964 ― ele, conservador que era, converteu-se em herói das esquerdas. Advogado de Luís Carlos Prestes na ditadura de Vargas, em particular travou acalorados debates com seu cliente, tentando convertê-lo ao cristianismo, enquanto o Cavaleiro da Esperança forcejava em doutriná-lo ao comunismo.

 

                   Paulo Brossard, Tancredo Neves e Sobral Pinto foram conservadores que nunca se deixaram seduzir, iludir ou deslumbrar pelas promessas de ditadores direitistas e de regimes autoritários de direita. Conciliaram sempre o ideal conservador com os valores democráticos de liberdade, igualdade, eleições livres e diretas, respeito às minorias, direitos humanos e garantias individuais.

 

                   Assim, associar o conservadorismo a regimes fortes de direita, ao autoritarismo de extrema direita e a ditaduras direitistas é manifesto equívoco praticado por quem desconhece a história e desconhece a doutrina e a prática política.

 

                   Claro que o conservadorismo respeita a hierarquia social. Não obstante, na década de oitenta do século pretérito, Ronald Reagan e Margaret Thatcher atrelaram fortemente o conservadorismo ao liberalismo econômico. Perdura, nos dias presentes, tal modelo conservador umbilicalmente vinculado ao livre mercado. A mobilidade social se vê, portanto, prestigiada no conservadorismo, embasada no trabalho duro, na criatividade e no talento pessoal do empreendedor.

 

                   Não comungo do pensamento de petistas que classificam Bolsonaro como fascista. Creio que não chega a tanto.

 

                   Fascismo é uma ideologia política de cunho totalitário que tem como características principais um nacionalismo extremado; desprezo absoluto pela democracia representativa e pela liberdade política e econômica; um líder forte e militarista; emprego da violência contra opositores, além de empregá-la, juntamente com a guerra e com o imperialismo, como meios legítimos de autoafirmação nacional; economia mista, com adoção de políticas econômicas protecionistas e intervencionistas, como meio de conquista de autossuficiência econômica do país; e forte arregimentação da sociedade, com subordinação de interesses individuais aos interesses da nação.

 

                   Conforme disse, não acredito que Bolsonaro seja um fascista. Mas se fascista não é, também não é um político claramente identificado com os valores democráticos. Igualmente, Bolsonaro não é um conservador autêntico, parecendo-se mais um radical com palpáveis tendências autoritárias. Seu passado e seu presente depõem contra ele. Causa espécie sua peremptória intolerância a oposicionistas e a matérias jornalísticas que lhe sejam desfavoráveis. Bolsonaro toma as críticas como questões pessoais e reage mal atacando seus críticos. Também sua característica agressividade, sua truculência e seu talento para polêmicas não se coadunam com o conservadorismo. Uma das principais características do conservador é a prudência. Conservador raiz não se envolve em debates estéreis, não se comporta de modo temerário, não se mete em aventuras. Ainda que tenha jurado lealdade ao regime democrático e à Carta de 1988 antes de sua posse, Bolsonaro não inspira confiança. Seus fanáticos apoiadores falam em golpe de estado, nas redes sociais, como uma panaceia redentora do Brasil. Pregam o golpe e defendem ditaduras como quem sugere um bom filme. De igual forma, preocupa e choca declarações de Eduardo Bolsonaro ― reveladoras de extremo desamor e desprezo pela democracia ― sugerindo golpe de estado, seja pelo fechamento do Supremo Tribunal Federal, seja pela possível reimplantação do Ato Institucional número 5. Seguramente, a vocação ― e formação ― autoritária do jovem deputado tem por espelho um paradigma, um ídolo inspirador, um mito.

 

                   Portanto, que os confrades liberais e os amigos conservadores firmem oposição a Bolsonaro, não deixando à esquerda o protagonismo e a primazia de tal atuação. Oposição responsável, séria, construtiva, apoiando os acertos e criticando com firmeza os desacertos, na defesa vigilante, altiva e ingente dos sagrados princípios da democracia.


Coluna do DIB segunda, 30 de março de 2020

O ESTADO TEOCRÁTICO DE DIREITO

 

O ESTADO TEOCRÁTICO DE DIREITO

A. C. Dib

 

 

 

                   O quadro aqui desenhado é de pura ficção científica.

 

                   Pandemia de coronavírus. Brasileiros em suas casas, amargando quarentena. Escolas fechadas, serviços públicos parcialmente desmobilizados, transportes públicos semi-interrompidos, concentração de pessoas desautorizada, comércio quase que desativado, decretação de Estado de Calamidade Pública, ruas desertas, economia em recessão, mundo caótico e perplexo. É decretado toque de recolher.

 

                   Bolsonaro vai à televisão e ao rádio, em cadeia nacional. Aparece de máscara cirúrgica ― ajeita, bota, tira, recoloca. Em decorrência da gravíssima peste que ameaça dizimar a população brasileira, assume, emergencialmente, poderes excepcionais e extraordinários.

 

                   É decretado recesso do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal. A vigência da Constituição Federal de 1988 é suspensa. Tanques de guerra nas ruas das principais Capitais. O Ato Institucional nº 5 volta a ser editado, atualizado. Partidos Políticos são dissolvidos. A concessão de funcionamento da Rede Globo de Televisão é revogada.

 

                   Bolsonaro declara que, agora sim, poderá governar sem amarras, conduzindo o Brasil à grandeza que o destino sempre lhe reservou.

 

                   Um plano de organização e ação terrorista orquestrado por antigos membros do Partido dos Trabalhadores vem à tona. Desmascarado e revelado o movimento subversivo, Bolsonaro endurece ainda mais. Prisões abarrotadas.

 

                   Como somos brasileiros e não desistimos nunca, políticos cassados do Partido dos Trabalhadores fundam o Movimento Stalinista Democrático Revolucionário ― MSDR, que passa a atuar na clandestinidade.

 

                   Bolsonaro, em cadeia nacional de rádio e televisão, lágrimas nos olhos, assegura que tudo o que faz tem o propósito de salvaguardar a democracia e a liberdade.

 

                   Nesse cenário distópico, é constituído pelo governo um Conselho de Pastores de Igrejas Neopentecostais ― “Conselho Teológico Nacional” ― para legislar sobre moral e costumes. O Conselho atuará, também, como Corte Constitucional Suprema, analisando recursos e ações diretas. Cada uma das maiores igrejas neopentecostais brasileiras indica representantes para o Conselho, referendada a indicação pelo Presidente da República. Ao Conselho caberá, também, promover a censura prévia aos meios de comunicação de massa. Bem assim, compete ao Conselho ― competência direta ― apreciar e julgar casos de Crimes Contra o Sentimento Religioso, Crimes Contra a Moral, os Bons Costumes e a Castidade, heresias, apostasias, simonia, anátemas, ateísmos, idolatrias, bruxarias, satanismos e congêneres.

 

                   A Bíblia Sagrada é adotada como parâmetro constitucional regente das normas infraconstitucionais. O mandamento constitucional é o de que norma nenhuma poderá confrontar preceitos bíblicos.

 

                   As religiões de matriz africana são declaradas satanistas e ilegais. Passam, então, a atuar na clandestinidade. Seus agentes, quando capturados em flagrante delito, são internados em campos de reeducação teológica.

 

                   O funcionamento da Igreja Católica é tolerado, mas a destruição pública de imagens sacras passa a ser admitida e o Papa Francisco ― comunista ― é declarado persona non grata em todo o território nacional. A CNBB é dissolvida, é cassado o título de “padroeira do Brasil” de Nossa Senhora Aparecida e abolido o feriado de 12 de outubro.

 

                   O homossexualismo é declarado contrário à natureza humana, sendo seus agentes levados à internação para aplicação da cura gay.

 

                   As doutrinas criacionista e de terra plana passam a ser ministradas nas escolas e a doutrina darwinista de evolução das espécies é julgada inconstitucional.

 

                   É decretado o exílio de cientistas que defendem o aquecimento global. As vacinações são declaradas facultativas.

 

                   Bolsonaro confessa ser “homem da direita”, mas, como o nazifascismo é de esquerda, Bolsonaro é de direita democrática de centro.

 

                   Em nossa realidade fantástica, são retiradas das universidades as seguintes matérias: história, geografia, sociologia, filosofia, ciência política, relações internacionais, jornalismo, psicologia e letras, o que gera o fim da balbúrdia universitária. O Conselho Teológico Nacional passa a nomear reitores das universidades ― em regra, pastores e bispos neopentecostais. Cursos de teologia ― de grande prestígio ― ministrados, exclusivamente, por pastores e bispos neopentecostais, são implantados nas universidades.

 

                   Os Estados Unidos, aliado do Brasil de primeira hora, é convidado a instalar bases em território nacional.

 

                   Nesse ínterim, físicos israelenses desenvolvem um buraco de minhoca espaço-temporal que consegue interligar passado, presente e futuro, permitindo a tão sonhada viagem no tempo. Sendo Bolsonaro o maior aliado de Israel, o governo israelense passa ao governo brasileiro os planos que permitem a confecção do buraco de minhoca nexo espaço-temporal.

 

                   Mesmo vendo a ciência com grande desconfiança, Bolsonaro convoca físicos brasileiros, que, munidos dos indispensáveis cálculos, desenvolvem secretamente a máquina do tempo brasileira. Bolsonaro não perde tempo: traz, diretamente do ano de 1969, o General Médici, o Brigadeiro Burnier, o General Newton Cruz (que ainda é vivo, mas, na versão Século XXI, já está de pijama) e o Coronel Ustra, que passam a integrar o estado maior de Bolsonaro, juntamente com os três zeros ― o 01, o 02 e o 03.

 

                   Nessa distopia, um técnico corrupto furta e vende os planos da máquina do tempo para o Movimento Stalinista Democrático Revolucionário ― que, assaltando bancos, tinha dinheiro em caixa. Cientistas esquerdistas do MSDR constroem, então, sua máquina do tempo e importam, do ano de 1969, os três Carlos ― o Prestes, o Marighella e o Lamarca ―, que passaram a integrar o alto comando do MSDR. Não satisfeito, o MSRD traz, ainda, Fidel Castro e Che Guevara, eleitos por aclamação comandantes supremos do Movimento.

 

                   O Conselho Teológico Nacional, nesse realismo mágico, elabora um livro intitulado “As maravilhas do dar”, a ser inserido no Novo Testamento, logo após o Livro do Apocalipse. Nele são narrados casos maravilhosos e milagrosos de pessoas que muito deram e muito receberam. Posteriormente, o Conselho define regras alusivas ao dízimo, convertendo-o em tributo, para a glória de Jesus.

 

                   Bolsonaro é declarado “Mito e Guardião Perpétuo do Brasil”. É decretada, pelo Conselho Teológico Nacional, imunidade plena de Bolsonaro contra o coronavírus.

 


Coluna do DIB quarta, 25 de março de 2020

A CRIA DO PT

 

A CRIA DO PT

A. C. Dib

 

                   Bolsonaro é cria do PT!

 

                   Calma, leitor amigo! Sei que a afirmação bombástica, à primeira vista, pode parecer estapafúrdia, inverossímil, absurda.

 

                   Tal afirmação teria o condão de promover o inimaginável: unir petistas e bolsonaristas. Assim, ambos os grupos se aproximariam em um abraço fraterno para, irmanados, descerem a porrada neste humilíssimo escriba. Urge, com isso, a fim de proteger meu lombo de possíveis pancadas, cuidar de reestruturar o pensamento, de forma mais didática e palatável.

 

                   E aí está: o PT criou todas as condições que levaram Bolsonaro à presidência da República. Essa, portanto, é a tese que defendemos no presente artigo: Bolsonaro, curiosamente, deve sua eleição ao Partido dos Trabalhadores, o grande responsável por dita eleição.

 

                   Após quatorze anos de poder, profundamente impopular e desgastado pela escandalosa corrupção que quase quebrou a Petrobras, o PT caiu como jaca podre, espalhando fedor e sujeira para todos os lados.

 

                   Até então, Bolsonaro, em seus longos e obscuros anos na Câmara dos Deputados, não passava de mais um deputado do chamado “baixo clero”, sem peso ou influência alguma. Elegia-se como lobista dos interesses dos Servidores Públicos da caserna. Até aquele momento, não passava de um tipo bizarro e bisonho, saudosista da ditadura militar e defensor de torturadores, tipo inexpressivo e risível, sem credibilidade, mantido em seu cantinho a acumular poeira.

 

                   Fenômeno curioso se deu quando o PT começou a soçobrar: em condições inversamente proporcionais, enquanto o PT ruía, Bolsonaro ascendia, crescia, se impunha. O Capitão ― que controla as redes sociais com rara habilidade ― converteu-se no antipetista por excelência. Passou a personificar, melhor que ninguém, o antipetismo, a oposição dura e sistemática ao PT, ao comunismo e a todos os valores agregados a essas duas instituições. Na cabeça de muitos, ninguém melhor que um radical de extrema direita para fazer frente ao petismo/comunismo reinantes. Surge o lídimo antagonista do PT.

 

                   Uma das consequências mais nefastas e deletérias da roubalheira desenfreada promovida pelo PT e por seus apoiadores foi a de destruir, no coração de milhares de jovens, a crença e a fé no regime democrático. O PT desmoralizou a ― não muito hígida ― democracia brasileira. Vários grupos se formaram, nas redes sociais, defendendo golpe de estado e a materialização de nova ditadura militar. Esse grupo de descrentes da democracia terminou por desaguar seus votos no candidato que melhor identificava esse “ideal autoritário”: o nosso Jair. Melhor assim, já que a alternativa possível seria a de partirem pra luta armada, pela guerrilha ou pelo terrorismo de extrema direita. Felizmente, o processo eleitoral democrático canalizou a ira e a grande frustração desses eleitores, que se identificaram com “O Mito”.

 

                   Outro grupo expressivo que se formou na sociedade brasileira foi o de apoiadores da Operação Lavajato. Caía por terra a impunidade que sempre imperou em selvas tupiniquins. Políticos poderosos, empresários riquíssimos e servidores públicos de alto escalão purgavam seus crimes no xilindró. Sérgio Moro, o destemido Juiz da Lavajato, converteu-se em herói nacional.

 

                   Respeitosamente, não tenho lembranças de discursos ou manifestações de Bolsonaro contra a corrupção, enquanto estava na Câmara dos Deputados. Ao contrário, o então Deputado parecia guardar ótimas relações com seus colegas do famigerado Centrão. Se alguma vez bateu na corrupção, o fez por estar associada ao PT, seu arqui-inimigo. Golpe de mestre foi o de cooptar Moro para seu time. Juntou-se ali a fome com a vontade de comer. O ingênuo Magistrado acreditou que conseguiria fazer muita coisa no Ministério da Justiça. Não se deu conta de que teria que negociar seus projetos anticrime com o Centrão e com Rodrigo Maia. Isso sem falar na oposição acirrada do PT a toda e qualquer pretensão de seu antigo algoz.

 

                   De toda sorte, os apaixonados apoiadores da Lavajato viram em Bolsonaro a determinação de que o Executivo Federal encamparia a luta contra a corrupção travada por Moro e pelo Ministério Público. Mal sabiam que o Capitão recuaria de seu ardor anticorrupção com a eclosão de escândalos e investigações envolvendo seu 01.

 

                   Por fim, expressiva parcela do eleitorado brasileiro ― talvez parcela majoritária ― despejou votos em Bolsonaro, no segundo turno da eleição, frente à possibilidade de continuação do reinado petista. Temos, aqui, eleitores de centro, fartos do PT ― com sua política externa ideológica e seus mimos a caudilhos, ditadores e tiranos, operados com dinheiro público ― que não foram jamais partidários de Bolsonaro, mas viram nele o chamado “mal menor”. Se Bolsonaro, no segundo turno, tivesse enfrentado um candidato de centro ou da esquerda moderada, cremos que dificilmente teria conquistado a Presidência. Desgraçadamente, foi o PT pro segundo turno eleitoral, colocando em verdadeiro pânico o Brasil. Muitos dos eleitores de Bolsonaro, portanto, votaram premidos pelo pavor, sem qualquer opção.

 

                   A grande polarização que se viu formada na sociedade, pelas duas últimas eleições, foi, em grande medida, criada pelo próprio PT. Com suas camisetinhas e bandeiras vermelhas com estrelinha, estabeleceram o slogan do “nós e eles”. Lula passou a atacar seus opositores, apresentando-se como vítima da perseguição da “elite branca” e dos “coxinhas”. Com sua inigualável truculência e seu talento para polêmicas, Bolsonaro cuidou de amplificar esse patético acirramento de ânimos e a trágica divisão no seio de nossa sociedade. Seu proveito foi indiscutível.

 

                   Já se disse que o espectro ideológico não é uma linha horizontal, mas apresenta o formato de uma ferradura na qual as pontas extremas se aproximam. Comunismo e fascismo têm muito em comum, se identificam em inúmeros pontos. Não causa surpresa observar que muitos petistas ― em pleno Século XXI, pós queda do muro de Berlim e do comunismo ― ainda falam em “mais valia”, “luta de classes”, “dialética marxista” e “revolução”. Nas hostes bolsonaristas, bolsominions divulgam mensagens fascistas, com ataques à imprensa ― ou a jornais que não lambem as botinas do Chefe ―, ataques a instituições da República ― Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal ― e apologia de golpe de Estado. Curiosíssimo observar que tanto Lula como Bolsonaro ― e os respectivos seguidores de cada ― voltam a artilharia contra a Rede Globo de Televisão e, notadamente, contra a jornalista Miriam Leitão.

 

                   Vale observar que, em muitos aspectos, Bolsonaro e Lula se parecem: ambos são populistas, centralizadores e personalistas. Lula sempre inviabilizou o aparecimento e crescimento de lideranças que pudessem ofuscar, no PT, a sua própria. Bolsonaro converte em inimigo a qualquer aliado que falar em disputar a Presidência da República.

 

                   Triste, pois, o legado petista. Além de desacreditar, aos olhos de muitos, a nossa democracia, o Partido dos Trabalhadores lega ao Brasil esse presentinho ― de grego: Bolsonaro Presidente.


Coluna do DIB sexta, 23 de agosto de 2019

A MALDIÇÃO DA COR

 

A MALDIÇÃO DA COR

A. C. Dib

 

                   A miserável vida de Carolina Maria de Jesus, moradora de rua e, nas horas vagas, escritora, nada deixa a dever à dos mais famélicos e maltratados personagens de Victor Hugo. De fato, a autora de Quarto de Despejo, obra celebrada ─ internacionalmente ─ como marco da chamada “literatura documentária de contestação” (característica dos anos sessenta/setenta do último Século), teve a pobreza por companheira de vida e da morte. Diário de Bitita, seu outro romance, é o retrado dessa existência paupérrima, permanentemente fustigada pelo feroz racismo dos primeiros anos da República, pela injustiça, pela fome, pela humilhação e pela aguerrida luta por sobrevivência, em um mundo marcado pela desigualdade e total falta de esperança e de oportunidades. Retrato este, tingido em cores lúgubres da brutal realidade, que a saudosa autora conheceu na própria carne.

                   Os primeiros anos de vida, equivalentes aos primeiros capítulos do diário, apresentam as doces ilusões e sonhos, característicos da infância. Não obstante, a infante Bitita já sinaliza possuir espírito crítico e contestador, viva curiosidade, imaginação criadora e inventividade, em meio a um mundo de adultos desiludidos, acomodados, acovardados e esmorecidos. Libertos os negros, a República ─ recém-parida ─ não lhes conferiu meios de sobrevivência dignos. Morando em taperas de pau-a-pique, desempregados ou subempregados e sub-remunerados, padecendo pela fome, pelas doenças e pela ignorância funesta, alguns se entregam ao álcool, outros, vencidos, desistem da luta e da vida e meninas buscam remédio na prostituição, ou ─ as mais afortunadas ─ no casamento com um homem bom e laborioso. Poucas ─ e precárias ─ são as opções. Para agravar ─ “nada é tão ruim que não possa piorar” ─, além das hercúleas adversidades econômicas e de trabalho, essas pessoas ainda enfrentam a permanente desconfiança e aterradora perseguição policial, ou, perseguição renhida por parte de uma polícia analfabeta, rota e pouco apegada à letra da lei, que via na gente pobre e negra potenciais criminosos.

                   A vida da adolescente e jovem adulta não se mostra mais amena ou fácil. Descortinam-se, à sua frente, patrões desleais, trabalhos mal e parcamente remunerados e a mais absoluta ausência de direitos que contemplem o labor. Ainda assim, a jovem Bitita mantém vivo seu espírito livre e criativo, suas expectativas e sonhos e a boa disposição de resistir às intempéries da natureza social. Não se revolta, mas, ao contrário, preserva o coração largo, generoso e agradecido a todos os que lhe estendem a mão ‒ por mais tacanho que seja o gesto.

                   O relato termina inconcluso, com a ida de Bitita para São Paulo, em busca de melhores dias. Fica em aberto seu “final”: que o leitor o idealize. Permanece, enfim, um retrato cru da triste realidade dos negros, num Brasil subdesenvolvido e arcaico. Antes, formalmente cativos, e, depois, então, acorrentados à vala opressora da total miséria.

                   A narrativa se faz em linguagem simples, coloquial e direta. Seguramente, Bitita tem muito de sua criadora, Carolina Maria de Jesus. A experiência pessoal da autora teria pesado e projetado a construção da personagem. E isso se a própria vida da heroica autora ─ que, em meio a adversidades extremas, ainda encontrava tempo e condições psíquicas de produzir obras literárias, sensíveis e inspiradas ─ não se fizer tingir por cores mais tristes que a de sua Bitita.

                   Se a vida não lhe sorriu ─ refiro-me à autora ─, se lhe subtraiu meios dignos de subsistir, não lhe alquebrou a coragem e o talento de criar, a liberdade de pensar, a ousadia da expressão e o desejo de registrar o que viu e viveu. E a Literatura ─ com sua magia artística ─ lhe facultou gravar o nome na rocha ígnea dos autores pátrios. Isto ninguém lhe tira.


Coluna do DIB quarta, 07 de agosto de 2019

SIN NOMBRE (POEMA DO BRASILIENSE A. C. DIB)

 

SIN NOMBRE

 A.  C. Dib

 

Me gusta mirar y oír la lluvia cayendo triste

en mi jardín.

 

Me gusta sentir la brisa caliente de verano

en mi piel y en mi pelo.

 

Me gusta la noche silenciosa,

con sus estrellas y con la luna blanca y risueña.

 

Me gusta el amor de la mujer,

mirar su cuerpo,

sentir su olor,

oír su risa.

 

Soy como la lluvia

que cae suave y después desaparece.

 

Soy como la brisa caliente

que sopla en tu piel y en tu pelo

y después muere.

 

Soy como las estrellas y la luna

de la noche silenciosa

que desaparecen por la mañana.


Coluna do DIB sexta, 02 de agosto de 2019

O HOMEM QUE DISSE BASTA!

 

O HOMEM QUE DISSE “BASTA!”

A. C. Dib

 

“Quando o gato sai os ratos fazem a festa”.

‒ dito popular ‒

 

                   Segundo o Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso “a corrupção mata”. Faço minhas as palavras de sua excelência. A corrupção mata. A dinheirama que mergulha propinoduto adentro ─ bilhões de reais em dinheiro público ─ e desaparece no escoadouro pútrido do ralo da corrupção é dinheiro que falta e deixa de ser aplicado na saúde e nas pesquisas científicas, na educação, na segurança pública e defesa, nos transportes, nas obras de infraestrutura e sociais e etc., etc., etc. E os maiores e principais atingidos por este desvio de recursos, aqueles que sofrem o abalo primevo da carência de tais verbas, aqueles que padecem da falta de socorro médico e purgam em longas filas, da escola deficitária e de baixa qualidade, do transporte público de má qualidade, da carência e deficiência de segurança e outros padecimentos mais, em suma os grandes prejudicados são exatamente as pessoas mais humildes, carentes, desassistidas, enfim, exatamente “o público focado pelas esquerdas”, alvo dos discursos, dos afagos, das preocupações e lágrimas dos esquerdistas.

                   A corrupção, portanto, não constitui crime de baixo potencial ofensivo, crime de pequena monta, crime “brando”. Ledo e crasso engano subestimá-la. A mácula ao erário constitui fato gravíssimo. A corrupção constitui crime de extrema gravidade, crime de resultados extremamente prejudiciais e nocivos à Pátria, crime que fere agudamente os interesses do povo brasileiro ─ malferindo, notadamente, vale insistir, direitos dos mais pobres e necessitados de nossos irmãos. A corrupção, no montante institucionalizado e, mesmo, “formalizado”, “oficializado” que se viu em passado recente, chega ao ponto de desestabilizar a democracia ─ conquistada com grandes sacrifícios ─ e de desestabilizar as instituições republicanas. A corrupção gera o desalento no coração das pessoas, a desconfiança do sadio jogo democrático/eleitoral, a descrença popular nas instituições da República. No dizer do saudoso Rui Barbosa, a alma esmorece e o espírito embrutece “de tanto ver o mal triunfar”. Vende-se ao povo a ideia de que “todo político é corrupto”, de que “política só se faz mediante corrupção” ou que “corrupção é normal na política”. Prova disso é o assustador número de jovens brasileiros defendendo, nas redes sociais, temas do tipo “golpe de estado”, “fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal” e “implantação de ditadura militar”, panaceias contra a crise moral na política.

                   Dante Alighiere, ciceroneado por Virgílio, se deparou com os corruptos no oitavo círculo do inferno, o Malebolge, todo ele e suas muralhas em pedra e da cor do ferro. Ali ficam mergulhados em piche espesso e fervente. Quando vêm à tona para respirar, os demônios os torturam dilacerando suas cabeças. Vizinhos dos corruptos no oitavo círculo são os rufiões e sedutores, os aduladores, os simoníacos, os hipócritas, os ladrões, os maus conselheiros, os semeadores de discórdias e os falsários.

                   Na Grécia antiga líderes políticos andavam nus, tanto para exibirem orgulhosamente as cicatrizes conquistadas na defesa da pátria, como, também, para demonstrarem que não levavam bolsos ou bolsas, nos quais o ouro poderia tilintar. “À mulher de César não basta ser honesta: além de ser honesta tem também que parecer honesta” ─ diziam os romanos.

                   Na velha Inglaterra a política é atividade nobre, reservada a poucos, ou destinada a homens nobres de caráter e de conduta e reputação ilibadas. Tipos abjetos, suspeitos, indignos, enlameados não são bem vindos ao augusto exercício da política. Não se atrevem sequer a bater às portas marmóreas que dão acesso ao universo político, pois sabem que se assim ousarem restarão defenestrados como persona non grata pelo titular da soberania, o povo.

                   Pedro II, Imperador do Brasil por cerca de meio século, morreu pobre em seu exílio na Europa, ajudado financeiramente pela compaixão de alguns partidários do Império. Meu avô Frutuoso foi chefe político no interior do Piauí, pela época da República Velha. Farmacêutico brilhante (e, por tabela, dentista e médico prático), a condição o habilitava e catapultava sobre as ondas dos bravios mares da política. Naqueles áureos idos política não era atividade lucrativa, ao contrário, implicava em expressivos prejuízos financeiros. Pela época do saudoso vovô Frutuoso, dilapidava-se o patrimônio na política.

                   Claro que política não é atividade para ingênuos, imaturos, nefelibatas e românticos. “Inocência cai bem às noivas, não aos políticos”, diziam os antigos (temo que nos dias correntes a expressão cairia no politicamente incorreto, senão no ridículo). Deveras, política exige destreza, habilidade, malícia. Seria ─ se é que existe semelhante possibilidade ─ a “esperteza do bem”. O político carece de saber extrair vantagens e dividendos políticos das situações que os confrontam, ainda que adversas. Importa frisar que essa “desenvoltura” não diz respeito à desonestidade, à velhacaria, a práticas criminosas e de corrupção. Ser manhoso na política não é o mesmo que devastar o cofre público, exigir propinas, fraudar licitações, hipervalorizar obras públicas. Ser sagaz na política significa não ser ingênuo e bonachão.

                   No Brasil presente ─ raras e honrosas exceções registradas ─, desgraçadamente, impera o contrário: quanto mais bandido o indivíduo, maior será seu sucesso político. Parece que ser homem mau, desonesto e inescrupuloso é pré-requisito e condição sine qua non ao brilho e aos louros da política. Que ninguém se engane: o famigerado “jeitinho brasileiro” é sinônimo de burla à lei. Ditos indivíduos parecem ver na política meio de ganhar dinheiro fácil e volumoso, via de “bons negócios”, atalho para “abrir portas”, conquistar vantagens, comodidades e facilidades junto à Administração Pública e a seus fornecedores e contratados, auferir lucros. Esquecem-se que “liderar é servir”. Líder, de fato, é aquele que serve, sacrificando-se, se preciso for, por seus liderados. Valores como serviço, patriotismo e idealismo andam em baixa por estas paragens. De fato, a corrupção é o cancro canceroso de nossa política; é o que vigora de pior na cultura política nacional. E os nossos corruptos, quando pilhados em flagrante, não têm sequer a dignidade e o pudor de meter uma balinha na cachola, como fazem os norte-americanos, ou de cometer um bom harakiri, como os nipônicos. Ao contrário, sofrem condenação penal, cumprem a cana e, logo depois, cara lavada, voltam a disputar eleições e a exercitar cargos públicos como se nada tivesse acontecido. Além de corruptos, caras-de-pau!

                   A genuína tradição da Terra Brasilis era a da impunidade. Costumeiramente, amargavam cana por aqui os chamados “três Ps”: pretos, pobres e poetas. Os grandes medalhões da política tupiniquim, nossos coronéis, senhores de feudos hereditários, de títulos, terras e de homens, esses não se viam arranhar pelas garras da lei. Não eram, sequer, importunados. As denúncias não prosperavam, disquisições não vingavam, sentenças tardavam. Escândalos viravam piada de salão (como sugeriu o senhor Delúbio Soares), afrontas à lei convertiam-se em pizza (Ângela Guadagnin bailou escandalosamente no plenário da Câmara, alguém se lembra?), crimes permaneciam insolúveis e criminosos riam-se debochados, tripudiando de todos e de tudo, na mais absoluta segurança da impunidade e certeza de que eram intocáveis. A lei se aplicava da forma mais elástica possível, aflorando interpretações as mais canhestras imagináveis. Reinavam, absolutos, os bons advogados ─ pagos a preço de ouro ─ as chicanas, as filigranas processuais, recursos intermináveis, imunidades constitucionais, privilégios de foro, prescrições e perempções penais.

                   Tal quadro de gritante impunidade e desmandos começou a mudar por ocasião do histórico “Julgamento do Mensalão”. Ali, no colendo Supremo Tribunal Federal, conduzido pela batuta firme, decisiva e segura do maestro Joaquim Barbosa, a Suprema Corte, mediante atuação enérgica e determinada do doutor Roberto Gurgel, mui digno Procurador Geral da República, passou a escrever a história de maneira diferente. Ruiu o sólido castelo da impunidade. Pela primeira vez em nossa história, na vigência de regime democrático constitucional, políticos poderosíssimos, titulares do partido do governo e em pleno exercício do poder, restaram cabal e inapelavelmente condenados em ação penal, sendo recolhidos “aos costumes” para cumprimento de penas. O Julgamento do Mensalão representa paradigma jurídico/político na guerra contra a impunidade e contra a corrupção, divisor de águas, marco revolucionário e luz em fim de tenebroso túnel escuro.

                   Posteriormente ao pioneirismo ponta-de-lança do Julgamento do Mensalão surgiu a não menos histórica Operação Lavajato. Frente à rapinagem voraz de lobos rapaces, nossa Petrobrás, orgulho nacional, modelo de empresa estatal enaltecido em todo o mundo ─ em especial pelas esquerdas ─ viu-se saqueada e espoliada em negociatas envolvendo bilhões de reais. Achacada por corruptos e amarrada pelo controle do preço dos combustíveis do Governo Dilma, a Estatal só não quebrou pelo fato de ser estatal, mas amargou prejuízos incalculáveis. Deveras, antes da Lavajato a corrupção havia se transformado em moeda política. Determinados políticos só atuavam mediante pagamento de vultosas quantias. Em ação conjunta da Polícia Federal e do Ministério Público Federal e em persecuções penais presididas pelo Juiz Sérgio Moro, crimes dos mais engenhosos foram esclarecidos, quadrilhas terminaram desbaratadas, bilionários barões da construção civil foram encarcerados e políticos poderosos, que se achavam acima do bem e do mal, inalcançáveis dos tentáculos da lei, restaram condenados de modo exemplar. Todos esses fatos seriam inconcebíveis e inacreditáveis até alguns poucos anos atrás.

                   A Lavajato revelou ao Brasil que a máxima clássica de que “a lei é para todos” efetivamente se aplica. Princípios retóricos de nossa Carta Política, tais como o de que “todos são iguais perante a lei” e de que “ninguém está acima da lei”, maravilhosamente, se materializaram, concretizaram-se pela singeleza da mera observância da lei. Políticos de várias agremiações partidárias encontraram punição pelos crimes perpetrados. Foram as sentenças condenatórias, proferidas pelo Juiz Sérgio Moro, confirmadas ─ e, mesmo, agravadas ─ nas instâncias superiores recursais. Muitos pedidos e recursos produzidos pela acusação restaram denegados e as decisões, mui bem dosadas e sopesadas, fundamentadas em farto material probatório.

                   Desafiada a impunidade, a Lavajato restituiu ao humilhado brasileiro seu orgulho e dignidade. Devolveu-lhe a confiança na política e nas instituições pátrias, aqueceu seu desalentado coração, injetou-lhe otimismo nas veias, voltou a ativar o civismo, o amor à Pátria e o emprego do verde-amarelo (vibrado antes apenas em Copas do Mundo). Viu-se, assim, que as instituições democráticas efetivamente funcionam. A lei não é para poucos. Não cabia mais, portanto, falar em “golpe” e em “implantação de regime militar”. E o Juiz Sérgio Moro, a seu turno, converteu-se em herói de muitos, ídolo de toda uma geração de brasileiros. Magistrado que, com coragem inabalável, independência e altivez distribuía justiça, sem olhar a quem, aplicando a lei aos casos sobre os quais se debruçava.

                   Descortina-se agora, no horizonte político/jurídico da Pátria, movimento orquestrado para mudar tudo isso. Importa questionar: a quem interessa desacreditar o Poder Judiciário e o Ministério Público? A quem aproveita desmoralizar a Operação Lavajato? A quem beneficia a anulação de condenações criminais produzidas na benfazeja Operação?

                   Os hackers que invadiram celulares de várias autoridades da República ─ magistrados (inclusive de Cortes Superiores), Procurador Geral da República e demais membros do Ministério Público, Ministros de Estado etc. ─ não são garotos peraltas brincando de devassar segredos de Estado, mas criminosos profissionais hábeis e de altíssima periculosidade, cyberterroristas e sabotadores imbuídos do propósito de desestabilizar o cenário político nacional. Ao que parece ─ perduram as investigações ─ faziam do “hackeamento” ─ perdoem-me o neologismo ─ meio de extorquir e chantagear as vítimas da subtração de mensagens particulares.

                   E o tal do Glenn Greenwald? Como entra nisso tudo? Disciplinando o “Crime de Receptação”, reza o Artigo 180 do Código Penal brasileiro:

 

  1. Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte:

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

 

                   Quer nos parecer, venia permissa, que o ato de adquirir ou receber produto de crime, conhecendo tal fato, e dele fazer uso, representa ação tipificada no referido dispositivo da Lei Penal. Penso, assim, que o senhor Greenwald incorreu no mencionado crime de receptação, razão pela qual deverá responder criminalmente, na forma do Diploma Penal.

                   Já a responsabilização criminal e administrativa do então Juiz Sérgio Moro e demais procuradores da República parece esbarrar no princípio insculpido no inciso LVI, do Artigo 5º, da Lei Maior, que assim dispõe:

 

Art. 5º (...)

LVI ‒ são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;

 

                   O citado dispositivo constitucional, contido no Artigo 5º ─ Direitos, garantias e deveres individuais e coletivos ─, Cláusula Pétrea da Carta, adota o princípio, muito em voga no Direito Anglo-Saxão, dos “frutos da árvore envenenada” ou fruits of the poisonous tree, segundo o qual o vício de licitude na colheita de certa prova termina por contaminar todo o conjunto probatório derivado. Provas “colhidas” de forma criminosa, portanto, não se aproveitam para apenar o réu. Claro que a ideia de alçar Moro ao Supremo Tribunal Federal, agora, parece ter inapelavelmente caído por terra (para gáudio de seus vários inimigos, aqueles tantos por ele condenados e outros tantos que se sentem ameaçados por sua presença na vida pública). Seria interessante, apenas para variar um pouco, ver um juiz não tão político na Suprema Corte, ou um Ministro que simplesmente aplicasse a lei de forma absolutamente objetiva, sem o tal “salto triplo carpado hermenêutico”. Ficará, porém, para uma outra vida a presença de Mouro naquela Instância Máxima.

                   Não queremos aqui, de forma alguma, defender qualquer ilícito. Não há dúvida de que a violação de princípios sagrados como o do “devido processo legal”, o “amplo direito de defesa”, o “direito ao contraditório”, que implicam, fundamentalmente, na imparcialidade dos magistrados ─ se é que ocorreram ─, merecem ser sopesados. Implicariam na anulação de Decisões proferidas pelo honorável Juiz Federal. Sempre acreditei que a constatada prática de corrupção nos governos petistas, por sua extensão e gravidade, implicavam em punições rigorosas, razão pela qual entendo que as normas de regência deveriam ser agravadas. Para tanto ─ atingindo, claro, casos futuros ─ caberia ao legislador federal alterá-las, tornando-as mais severas, mais “duras”. Desgraçadamente, ao que parece, o ilustre Presidente da Câmara, senhor Rodrigo Maia, e parcela expressiva do Congresso Nacional parecem empenhados em punir, sim, magistrados, membros do Ministério Público e policiais, impondo-lhes responsabilizações penais. Advogamos, portanto, ação dura contra corruptos, não pela burla da lei, mas pelo agravamento de penas e simplificação do rito processual, a fim de permitir punições severas em espaço mais curto de tempo.

                   Deplorável, assim, o presente estado de coisas. Igualmente lamentável o papel ─ papelão, talvez ─ do Partido dos Trabalhadores desempenhado nos últimos anos. Em seu pragmatismo de líder sindical, acostumado ao “toma lá, dá cá” das negociações sindicais e à tática de “pedir muito para conseguir o máximo” das lides trabalhistas, Lula levou para seu governo algumas das figurinhas mais cavilosas e emblemáticas da República. Conseguiu, com isso, folgada maioria no Congresso Nacional, mas deu no que deu. “Diga-me com quem andas e eu te direi quem és”, protesta o ditado.

                   Não sou, de modo algum, um intransigente antipetista. Ao contrário, falo com a autoridade de ex-eleitor do Partido dos Trabalhadores. Ajudei a eleger Lula Presidente em sua primeira eleição ao cargo e elegi dois petistas governadores do Distrito Federal. Sou, portanto, ex-eleitor do PT, decepcionado, arrependido e escandalizado, vale frisar. Em seus longos anos de reinado vermelho ─ quatorze anos, se não me engano ─ o PT parece ter-se deslumbrado com o fausto do poder. “Quem nunca comeu melado, quando come se lambuza”, diz a sábia máxima popular. Hoje, de volta à oposição, o PT parece amargar o pior momento de sua quilométrica trajetória. Fez de Sérgio Moro seu inimigo número 1, elegendo sua perseguição e cerco como prioridade pessoal e máxima. Parece ter como bandeira política, hoje, tão somente a defesa risível ─ não fosse patética e trágica ─ do “Lula livre”, como se Lula fosse algum preso político, injusta e arbitrariamente encarcerado por uma ditadura. Ainda que sua condenação seja anulada, perdurarão os fatos tidos por ilícitos que, não resta dúvida, serão objeto de novas ações penais. Como propostas de combate à corrupção, o PT apresenta, hoje, as seguintes: desmanche e extinção da lavajato, prisão de Sérgio Moro, libertação de Lula e punição por abusos a magistrados e promotores (proposta que, juntamente com o Centrão, abraça com ardor). Em arrombo do ridículo, o PT converteu-se hoje no Partido do combate ao combate à corrupção ou no Partido da luta contra a luta contra a corrupção. O PT é hoje o Centrão da esquerda (avesso a qualquer medida capaz de resvalar em seu status quo). Choca a excitação, a euforia e o entusiasmo manifestado por certos indivíduos frente aos fatos produzidos pelos hackers e pelo senhor Greenwald. É, diríamos, a festa dos ratos.

                   Aos acusadores ─ combatentes contra a corrupção ─ adotou a tática do ataque como defesa e assumiu o pouco convincente discurso da vitimização. Ao invés de bater no peito e promover o mea culpa, produziu trocentas manifestações de desagravo ao companheiro Dirceu e romarias ao cárcere de Lula (dentro em pouco, defenderão sua beatificação). Rasgou sua extensa história de lutas, dentre as quais a luta contra as velhas e viciadas práticas políticas e sua própria luta contra a corrupção (alguém se recorda do quanto atacavam Maluf, Collor e Roriz?).

                   A fim de resgatar a credibilidade malferida deveriam, inicialmente, com absoluta humildade, identificar e reconhecer os próprios erros, suplicando o perdão da Nação. A seguir, promover amplo expurgo em seu seio, expulsando de seus quadros todos os implicados em práticas ilícitas (a começar por Lula). Ato contínuo, deveriam apoiar a Operação Lavajato e defender legislação forte contra corruptos e corrupção. Deveriam, aliás, manifestar gratidão à Lavajato, que identificou seus desvios, o que lhes facultaria a correção da rota e a retomada da moralidade.

                   Se restar verdadeiramente comprovado que Sérgio Moro exorbitou em sua atuação como juiz, forçosamente as decisões vinculadas a tais práticas merecerão revisão ou anulação. Teria Moro, afinal, no afã de pescar gatunos, orientado estratégias aos acusadores? Verificamos, de toda sorte, que Moro está longe de ser aquela personagem do grande boneco inflável, visto em manifestações de rua, um super-herói monumental. Em definitivo, Moro não é o Super-homem. Trata-se, em verdade, de homem frágil, fraco, falível e vulnerável, como são todos os homens. É, contudo, um homem que teve a coragem de dizer “basta!” quando todos diziam amém.


Coluna do DIB terça, 14 de maio de 2019

EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE CAPITÃO

 

 

EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE CAPITÃO

A. C. Dib

 

Bão balalão,

senhor capitão.

tirai este peso

do meu coração.

não é de tristeza,

não é de aflição:

é só de esperança,

senhor capitão!

a leve esperança,

a área esperança...

área, pois não!

peso mais pesado

não existe não.

ah, livrai-me dele,

senhor capitão!

Rondó do Capitão – Manuel Bandeira

 

Fiz, na companhia de minhas filhas Carolina e Luísa (que fez como “treineira”), vestibular na UnB, disputando vaga para o segundo semestre de 2013 do Bacharelado em Letras. Bastante fora de forma, paradão já há um bom tempo (que não revelo para não entregar minha idade), não esperava aprovação: fi-lo imbuído do propósito de, pelo meu exemplo, estimular o empenho das meninas. Qual não foi a minha surpresa quando o resultado saiu. Aprovado! Verdade que em terceira chamada, mas aprovado, aprovadíssimo, diria José Dias, de Dom Casmurro. E pra lá seguiu o velho turco, entusiasticamente apoiado por Wanisa ─ que compartilha comigo o amor ao saber ─, novamente tomando assento nos bancos escolares, após longos anos de conclusão da primeira graduação.

 

No primeiro dia de aula, tímido que sou, pensei em empregar a estratégia que usava no Segundo Grau: esconder-me no fundo da sala. Ao me deparar com a turma, vi que não teria como me camuflar ou como passar despercebido: de cerca de quarenta alunos, éramos, mais ou menos, eu, tiozão, e trinta e nove meninas muito parecidas com minha filha mais velha. Mudei, assim, de estratégia, passando a sentar na primeira fileira, frente à mesa da professora. A estratégia revelou-se vitoriosa e vem rendendo bons frutos até o presente momento.

 

E o que começou como brincadeira, passatempo sem maiores pretensões, foi aos poucos ganhando corpo, foi-se solidificando, ganhando ares e contornos de coisa séria, compromisso profissional. E cá estou, creio que no derradeiro semestre, em ritmo de Trabalho de Conclusão de Curso, já namorando a ideia de um mestrado.

 

Extravaso agora, excitado, meu amor à Literatura ─ que já conhecia da leitura de alguns clássicos sem, contudo, conhecer sua Teoria, igualmente apaixonante. E tem sido privilégio, orgulho e incontida alegria pertencer a essa importante Universidade ─ núcleo efervescente da ciência, da cultura e do saber ─ e conviver com seus valorosos e inesquecíveis mestres. Muitos e bons são os amigos que a rica experiência vem me proporcionando conquistar, especialmente entre os professores.

 

Falo em privilégio na certeza de que poucos são os brasileiros que dele desfrutam, ou melhor, pertencer ao mundo acadêmico, receber instrução de elevadíssima qualidade, estudando de graça em uma das principais universidades brasileiras. Grato sou a Deus, que me ilumina e fortalece, ao Estado, que me proporciona tal vivência e à Doutora Wanisa, que me apoia, pelo usufruto de tamanho privilégio, que procuro honrar dedicando-me com respeito, seriedade e afinco às aulas e aos estudos.

 

Hoje, porém, acompanho com tristeza e preocupação as últimas notícias pertinentes à Educação no Brasil: corte de verbas federais para pesquisas nas áreas das Humanas e corte de verbas federais para algumas das mais importantes universidades federais do País, dentre as quais a Universidade de Brasília.

 

Cortar verbas em Educação!??? Aqui no Brasil??? Delírio kafkiano, brincadeira de mau gosto, ensandecimento ou emburrecimento? Vamos lá, senhor Capitão! Tirai esse peso de meu coração! Em Educação não se cortam verbas, se aplicam. Notadamente no Brasil, País carente de Educação, em qualidade e em quantidade. Toda e qualquer verba que se destine a essa área é pouco para um país de tal dimensão, de tão grande população, de tamanhas carências e que se diz “país do futuro”, com pretensões a primeiro mundo. Claro que outras importantes áreas demandam recursos, mas sem Educação nada se faz, nada se conquista. Sem Educação comprometeremos negativamente a saúde, a segurança, os transportes, a qualidade de vida e a própria economia. Já dizia Aristóteles que “a educação tem raízes amargas, mas os seus frutos são doces”. Na mesma linha Emmanuel Kant, para quem “o homem não é nada além daquilo que a educação faz dele”. Vale lembrar, por fim, nosso Monteiro Lobato, segundo o qual “um país se faz com homens e livros”.

 

Curioso cortar recursos públicos e investimentos em matérias de Humanas. Sem desmerecer as Exatas e Biológicas, relevantes a qualquer nação que almeje à grandeza e à independência científica e tecnológica, são os profissionais e estudantes da Filosofia, da Sociologia, da História, da Ciência Política, do Direito, enfim, das Humanas exatamente aqueles que pensam as relações humanas e sociais, pensam as instituições políticas e jurídicas, pensam o Estado, pensam o Brasil, pensam o Mundo. Bolsonaro revela desconfiança e certa dose de temor daqueles que ousam pensar e que ousam opinar, discutir, questionar, dissentir.

 

Claro que no Curso temos professores filiados à esquerda, à visão marxista de mundo ─ talvez a maioria, eu arriscaria dizer. Alguns mais discretos e neutros, outros mais apaixonados e exaltados. No entanto, dizer que o discurso e proselitismo de alguns mestres influenciariam os alunos é subestimar a inteligência e a capacidade de opinião dos jovens. Os jovens não são ingênuos como supõe o Governo. Há alunos que professam a mesma visão de tais professores, mas não se converteram à esquerda na universidade: ali já ingressaram firmes em tais convicções. De minha parte, nunca me furtei de defender, em sala de aula, minhas convicções liberais, sem jamais sofrer qualquer reprimenda, retaliação ou perseguição de quem quer que fosse, e sem jamais violar as amizades que ali tenho feito. O fato é que, em regra, os professores, professem a ideologia que for, não costumam perder de foco a visão da academia como fórum de debates livres, troca de ideias e de informações. Sempre prevaleceu o respeito à opinião divergente, posso afirmar com a autoridade de quem lá está.

 

Dizem, então, para “filmarmos os professores que promovem pregações de esquerda”, em técnica de fiscalização e perseguição muito própria dos alcaguetes dos regimes totalitários. Em verdade, deveriam filmar os longos e cansativos anos de estudos de um professor universitário para atingir o exigido grau de excelência que ostentam, deveriam filmá-los preparando com amor as aulas que ministram, ou filmá-los ao final do mês contando os parcos caraminguás que percebem em seu honroso mister.

 

Fala-se em balbúrdia para perseguir universidades federais com cortes de verbas. Balbúrdia, sinônimo de algazarra, confusão, desordem, tumulto, ensina o Dicionário Aurélio. Mesmo apresentando índices elevados em rankings nacionais e internacionais, passa a UnB a padecer, por corte de verbas indispensáveis, tendo por arrimo a desairosa pecha de desordeira, bagunceira. Penso que balbúrdia é negar preciosos investimentos à Educação, balbúrdia é perseguir professores honestos, balbúrdia é eleger universidades como persona non grata ao regime. Tudo o que diminui, desprestigia e enfraquece a Educação é imoral balbúrdia.

 

Vamos lá senhor Capitão! O senhor por acaso nunca foi jovem? É da natureza do jovem o espírito contestador ─ da autoridade, em especial ─, desafiador, revolucionário. Georges Clemenceau, estadista francês, já dizia que “um homem que não seja um socialista aos 20 anos não tem coração e um homem que ainda seja socialista aos 40 não tem cabeça”. Universidade sem barulho, sem protestos, sem espírito jovem e sem paixão não tem coração, não tem alma, não tem vida. Apesar de contestadores, os jovens são honestos e francos em suas ideias, são expansivos, verdadeiros. Não envergam as máscaras próprias do homem de meia idade. Não simulam e nem dissimulam, como fazem os políticos muito bem descritos pelo Cardeal Mazarin. Gosto mais da companhia dos jovens que das pessoas de minha idade. Negar dinheiro à educação é tirar de muitos jovens a esperança em dias melhores e é impedir o Brasil de crescer, de se desenvolver cumprindo seu destino.

 

Como bom estrategista militar ─ o que não parece ser ─ Bolsonaro deveria saber que ideias não se combatem com truculência, com mão pesada, com ameaças e retaliações. Ideias se combatem, de maneira certeira e eficaz, com outras ideias.

 

Não morro de amores por Darcy Ribeiro. Atribuo a ele ─ e a Leonel Brizola ─ boa parcela de responsabilidade pelo golpe militar de 1964, que redundou em vinte anos de ditadura no Brasil. Mas me vejo forçado a admitir razão ao antropólogo por frase proferida em palestra, nos idos de 1982, mais atual que nunca: “Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios”. A frase se ajusta como uma luva ao discurso do governo de priorizar o combate à criminalidade. Quer derrotar a criminalidade? Invista maciçamente em Educação, eis a resposta. Eduque nossos jovens, dando-lhes pleno acesso ao processo de aprendizagem. Em longo prazo os resultados aflorarão. Eduque hoje para não necessitar combater criminalidade amanhã. Dos países que já atingiram o desenvolvimento, não há nenhum que não tenha investido polpudos recursos em Educação de qualidade.

 

Ataques a veículos de imprensa e a jornalistas, política externa ideológica ─ no melhor estilo PT ─ e agora chicotadas aplicadas nos lombos da Educação. Em definitivo, há algo de podre no reino da Dinamarca.

 


Coluna do DIB sábado, 27 de abril de 2019

BATMERD - HISTÓRIA EM QUADRINHOS DE A. C. DIB

BATMERD

A. C. Dib

 


Coluna do DIB segunda, 22 de abril de 2019

POLÍTICA EXTERNA E IDEOLOGIA

 

POLÍTICA EXTERNA E IDEOLOGIA

A. C. Dib

 

Desde o saudoso tempo do Barão do Rio Branco ─ o florescer de nossa diplomacia ─ nossa política externa sempre foi pragmática. Nossa ação em cenário internacional ─ acordos, tratados, alianças, comércio exterior, fixação de posições políticas, enfim, a atuação do Estado em âmbito externo ─ sempre focou objetivamente nossos estratégicos interesses econômicos, políticos e militares.

 

Talvez em fugaz exceção, o Estado Novo de Getúlio Vargas, ditadura de caráter próximo ao fascismo nacionalista, tenha oscilado dubiamente entre o Eixo e os Aliados, antes de optar pelo segundo grupo, ajudado pela Alemanha nazista que torpedeou algumas de nossas embarcações. O esforço de guerra contra o totalitarismo nazifascista resultou na queda do próprio Estado Novo: paradoxal que, após combater contra a tirania e pela democracia e liberdade, permanecesse a existir tal como era.

 

Desgraçadamente, essa saudável tradição histórica, que busca prestigiar e priorizar sempre os soberanos interesses nacionais, viu-se brusca e erroneamente rompida já no limiar da chamada “Era Petista”. Afastando-se dessa linha pragmática, os governos petistas ─ Lula e Dilma ─ adotaram modelo de “política externa ideológica”. Os interesses pragmáticos brasileiros cederam, então, lugar a interesses puramente ideológicos ─ interesses esses, atrevo-me a dizer, que não eram os da Pátria, mas do governo, notadamente interesses de viés esquerdista ─, passando a prestigiar e apoiar tudo o que dissesse respeito à concretização de ideais socialistas/comunistas. Curioso observar que a ênfase esquerdista na política petista deu-se, essencialmente, na área externa, eis que internamente a política econômica adotada ─ especialmente na gestão Lula ─ era a neoliberal.

 

Símbolos incontestes da política externa ideológica petista foram, inicialmente, o senhor Marco Aurélio Garcia ─ baluarte do jurássico esquerdismo petista ─, que parecia ser o grande ideólogo e mentor de tal política externa e, em segundo plano, o chanceler Celso Amorim, diplomata de carreira, umbilicalmente associado ao esquerdismo, que foi Ministro das Relações Exteriores e ─ em caricato propósito da Presidenta Dilma de alfinetar os militares e as Forças Armadas ─ Ministro da Defesa do Brasil.

 

Apoio incondicional a ditadores truculentos como Castro, de Cuba e Chávez da Venezuela, foi marca registrada de tal política, além do entusiástico flerte com o Irã de Ahmadinejad e a Síria do genocida Bashar Al Assad.

 

Em controversos episódios que tiveram por protagonistas alguns vizinhos latinos ─ e, não é de pasmar, de esquerda ─ a baixeza áulica externada pelo Governo Lula frente a abusos, afrontas e violações a normas internacionais produzidas por tais parceiros chocou a Nação. Vale rememorar a nacionalização manu militari ─ literalmente, com o emprego de soldados armados que a invadiram e tomaram ─ de refinaria da Petrobrás em solo boliviano, decretada por seu presidente, Evo Morales. Bem assim, imposição firmada, com rara petulância, pelo presidente paraguaio Fernando Lugo de alteração de cláusulas contratuais relativas a Itaipu, com nova adequação francamente desfavorável ao Brasil. A cada crítica, a cada ataque, a cada provocação do trio de tiranetes Morales, Lugo e Rafael Correa do Equador ─ o Brasil tornou-se saco de pancada dos três ─, Lula reagia com a placidez, a bonomia e a tolerância de um pai magnânimo e compassivo, a afagar docemente a cabecinha dos filhotes trelosos. Isso enquanto que os nossos hermanos esquerdistas brilhavam pra suas torcidas, como audazes vitoriosos sobre o avassalador imperialismo brasileiro. Como o Brasil sempre lidera todos os modismos políticos latino americanos, a Era Petista foi a era gloriosa da esquerda latino americana: o casal Kirchner na Argentina, Chávez na Venezuela, Morales na Bolívia, Correa no Equador, Lugo no Paraguai e Daniel Ortega na Nicarágua ─ isso para mencionar apenas os mais histriônicos ─, sem falar no longevo ─ no poder e na idade, eis que todo comunista vive duzentos anos ─ Fidel Castro em Cuba, a hors concours do comunismo latino americano.

 

Bem caracterizando a questão, temos a maneira como a ideologia petista enfrentou duas situações internacionais diversas. Uma delas foi o episódio em que dois pugilistas cubanos pediram asilo político ao Brasil. Como resposta, em menos de 24 horas da oficialização do pedido, o Ministro da Justiça de Lula, Tarso Genro ─ arrimo jurídico do esquerdismo petista ─, com competência, firmeza e determinação raras vezes exibida em sua pífia gestão à frente do Ministério, devolveu os dois atletas às garras totalitárias de Fidel. Por outro lado, cuidando-se do terrorista Cesare Battisti, evadido da justiça italiana que o perseguia por homicídios, os governos petistas o protegeram com a ferocidade de mãe leoa defendendo sua prole. E Battisti não tinha a seu favor nem mesmo o argumento empregado por terroristas e guerrilheiros brasileiros dos anos sessenta/setenta de que “combatiam contra uma ditadura militar”, eis que combateu o Estado Italiano, regime democrático constitucional.

 

Já o BNDES seguia financiando obras milionárias em países governados por ditadores de extrema esquerda, em contratações de reembolso dúbio e incerto. E o programa Mais Médicos, sob o propósito nobre de levar atendimento médico às populações carentes do Brasil parecia, em verdade, ocultar o fim de injetar milhões de reais nas barbas castristas. Para atuarem em solo brasileiro, os pobres discípulos de Hipócrates eram obrigados a deixar suas famílias em Cuba, como garantia, faziam-se acompanhar de agentes políticos cubanos, eram alojados em estabelecimentos militares, tinham suas correspondências fiscalizadas e eram proibidos de relacionamentos íntimos com os nativos ─ era o velho totalitarismo comunista nadando de braçadas no País regido pela Carta de 1988, a Constituição Cidadã. E ai de quem pedisse asilo político: lá estava o zeloso Tarso Genro a fiscalizar o bom comportamento dos súditos de Castro.

 

Virada a página do petismo, ao que parece, a sábia política externa pragmática continua em baixa. Em tempos de Capitão Bolsonaro o Brasil inaugura agora a política externa ideológica/teológica/fundamentalista.

 

Segue o senhor Presidente advogando a proposta de transferir a embaixada brasileira para Jerusalém, no melhor estilo Donald Trump. Ignorando a extrema complexidade das relações reinantes no Oriente Médio, Bolsonaro, em sua míope óptica simplista, simplória e maniqueísta divide o mundo entre mocinhos e bandidos, heróis e vilões, cavalaria e índios selvagens, no melhor estilo velho oeste. Na visão evangélica fundamentalista e neopentecostal ─ adotada por Bolsonaro ─ a aproximação com Israel estaria inserida em um plano divino de preparação para a segunda vinda de Jesus Cristo à Terra.

 

Benjamin Netanyahu, Primeiro Ministro de Israel ─ reeleito recentemente ─, político habilidosíssimo, experiente, astuto e traquejado, usa Bolsonaro como trunfo político, exibindo-o vitoriosamente ao eleitorado israelense.

 

Em entrevista concedida ao Estadão, datada de 03 de abril de 2019, Michel Gherman, Mestre em Antropologia e Sociologia pela Universidade Hebraica de Jerusalém e Doutor em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes da aludida Universidade, assim se expressou sobre a visita de Bolsonaro a Israel:

 

Não é casual que a terceira viagem internacional seja a Israel. Temos um grupo que crê que a aproximação do Brasil a Israel ocupa uma etapa teológica, em uma expectativa escatológica, de retorno de Jesus, mas temos outro grupo (esse parece ser efetivamente o grupo de Bolsonaro) que acredita em uma Israel imaginária, que combate os bárbaros, que derruba o terrorismo, que é baseada em uma lógica judaico-cristã (seja lá o que isso signifique).

A visita de Bolsonaro é histórica, porque ignora a Israel real e investe naquela Israel de seus sonhos. Vai ao Muro das Lamentações, atira com arma, enfim, dá vazão a seus desejos. Faz isso ameaçando interesses econômicos, lógicas de mercado, tirando o Brasil do pragmatismo internacional, colocando-o em perspectivas apenas ideológicas. A visita de Bolsonaro a Israel prova o que muitos desconfiavam: o liberalismo do governo dele pode terminar na porta da igreja, ou do quartel.

 

Não temos e nunca tivemos problemas com os árabes. Temos, sim, com eles comércio rendoso e dinâmico. Não existe motivo algum para insultá-los, hostilizá-los. Chamamos pra nós sarna pra coçar. Romper com países desse núcleo implicaria em polpudos prejuízos financeiros ao País. De igual forma, atrair a ira árabe contra nós pode implicar em atrair também o terrorismo islâmico. Vale lembrar que o próprio Tio Sam, maior potência econômica e bélica do globo, País vivenciado na luta contra o terrorismo internacional, líder mundial, calejado em invasões, intervenções e em intromissões, hábil na espionagem internacional, acostumado à beligerância, sangrou em seu coração atacado que foi por terroristas no trágico episódio do 11 de setembro. Frente à águia americana o Brasil é um galinho garnisé mal emplumado. Não temos experiência, know how, treinamento e equipamento para travar essa guerra. O Brasil é um país de extensão continental, o que dificulta sua proteção. Essa luta não é nossa, já temos problemas demais a resolver. Urge que a ideologia e as paixões voltem a dar lugar ao equilíbrio, à serenidade e racionalidade e ao pragmatismo.

E na mesma visita a Israel, vem o senhor Bolsonaro, em outro rompante de grande infelicidade, defender que o nazismo é doutrina de esquerda. Com isso, procura afastar do nazismo sua verdadeira vocação de extrema direita, o que apoiaria a tese que, de fato, se pretende vender: a de que a direita e a extrema direita seriam uma coisa só. Em verdade, o espectro ideológico não é uma linha reta e horizontal, mas, tem sim o formato de uma ferradura, na qual os extremos se aproximam. Nazifascismo e comunismo, doutrinas totalitárias extremas e opostas, na ponta, cada qual, do espectro ideológico, terminam por se aproximar em muitos pontos doutrinários e de prática militante, tendo em comum primordialmente a vocação de domínio de coração e mente de seus súditos.

 

Quanto à China, grande parceiro econômico do Brasil na atualidade, em acordos comerciais travados e sacramentados nos longos anos de reinado petista, e parceira no BRICs, Bolsonaro, se não a hostiliza, segue tratando-a com a desconfiança, a frieza e a equidistância devidas a um contendor. Não há dúvida alguma de que isso implicará em consequências para o Brasil, seguramente não muito boas.

 

Pelo andar da carruagem, não causará assombro o dia em que Bolsonaro, acompanhado da Ministra Damares e do Chanceler Ernesto Araújo, convocar coletiva de imprensa para defender a aplicação no ensino público das doutrinas criacionista e de terra plana.


Coluna do DIB quinta, 11 de abril de 2019

AVENTURAS EM TERRAS LUSITANAS

 

AVENTURAS EM TERRAS LUSITANAS

A. C.  Dib

 

                   Em recente e edificante viagem à pátria de Camões, muitas e maravilhosas foram as experiências vividas. Celebrando vinte e cinco anos de matrimônio, optamos pela cidade do Porto ─ que até então não conhecíamos ─ para vivenciar nossas bodas em grande estilo. Para gáudio geral, a opção revelou-se a mais feliz possível.

                   Porto ─ outrora Portus Cale ─, segunda cidade portuguesa ─ atrás de Lisboa ─, é berço do primitivo Condado Portucalense, sendo sua primeira capital. Da retomada do Porto teve início a reação portuguesa frente à invasão e domínio dos mouros sobre boa parte da Península Ibérica. Brinco e primor de cidade, encantadora e romântica, adequada às nossas Bodas de Prata. Berço do notável rei, Infante Dom Henrique, cognominado O Navegador e famosa pelo fortificado e dulcíssimo vinho que leva seu nome ─ em verdade produzido na Região do Douro, a nordeste de Portugal. Seus habitantes ─ envaidecidos ─ se intitulam “tripeiros”, título decorrente de episódio da história, no qual doaram todo o estoque de carne, em altruísta esforço de guerra, restando-lhes para consumo apenas as vísceras bovinas.

                   Ainda que desconhecêssemos a cidade do Porto, já conhecíamos Portugal ─ Lisboa e outras cidades mais ─ e gratas foram as surpresas que tivemos nesse regresso. Os serviços melhoraram consideravelmente, com intenso profissionalismo e expertise na gestão do turismo: se antes éramos recebidos com certa dose de impaciência e rabugice, hoje os pais lusitanos se desdobram em amabilidades e atenção. A gastronomia, aproximada à mediterrânea, com foco nos frutos do mar, azeite saborosíssimo e vinhos inigualáveis, agora diversificou-se mais, sofisticou-se: a carne de vaca, antes infalivelmente cozida, agora já se acha em casas especializadas em assados e grelhados e em churrascarias, com peças selecionadas e importadas do Uruguai e da Argentina. A hotelaria apresenta-se incensurável, digna das melhores cidades do globo, com hotéis e hospedagens para todos os gostos e condições financeiras. A história e as tradições portuguesas, riquíssimas, a inspirar-lhes desmedido orgulho, dispensam qualquer comentário.

                   No Porto, cumprimos périplo básico aos marinheiros de primeira viagem: tour pela cidade ─ com guia e no Yellow Bus ─; visita a Cave de Cálem ─ pertencente à Casa Ferreira ─, localizada em Vila Nova de Gaia, com direito à degustação; cruzeiro pelo caudaloso Rio Douro; visita à uma quinta ─ notadamente a Quinta do Valdoeiro, pertencente à Casa Messias e localizada na Região da Bairrada; visita à Rua Santa Catarina ─ a rua das lojas de grife ─, com almoço no Café Majestic e visita à belíssima e histórica Livraria Lello ─ curiosamente salva da falência pela série Harry Potter, que usou a livraria como cenário em alguns filmes. Visitamos também a cidade/Universidade de Coimbra, localizada próxima ao Porto.

                   Aos que apreciam a alta gastronomia e não se incomodam de desembolsar uns bons cobres, sugiro um jantar ─ com reserva prévia ─ no ultrassofisticado restaurante Antiqvvm ─ registro que não sou pago pela propaganda, fazendo-a exclusivamente por amor aos meus leitores.

                   Agora, uma das experiências mais pitorescas e interessantes que tivemos ─ e não posso deixar de dividir aqui ─ foi o convívio com os ingleses. De fato, depois dos brasileiros, creio que os ingleses são o povo que mais visita Portugal. Assim, em descoberta curiosíssima assinada pela Doutora Wanisa das Graças, com boa dose de espanto, verificamos quão parecidas são as senhoras inglesas dos seus maridos. Desenvolvo a teoria de que, engraçadinhas ao se casarem, com o passar dos anos, com o convívio diário e com a admiração intensa, vão essas damas, em perturbador fenômeno de mimetismo, vão assumindo, pouco a pouco, o aspecto físico e as características de seu husband. Fenômeno camaleônico! Seus rostinhos, rigorosamente lavados, sem qualquer pintura ou uso de adornos, apresentam-se engelhados como vetustos maracujás de gaveta. O cabelo, inapelavelmente grisalho, é um misto de Noviça Rebelde (feito em ambiente doméstico) com Joãozinho. No vestir, calças compridas, camisa social de gola e botões, sapato baixo e paletozinho. De aspecto físico são magras, secas e sem curvas como o suculento bacalhau português. Ver um inglês é o mesmo que ver sua cônjuge. Gêmeos siameses!

                   Agora verifico de onde vem o sisudo aspecto do inglês. Tivesse eu consorte daquelas também assumiria tal carranca. A primeira ministra britânica Theresa May seria a Miss Universo frente às damas sub análise.

                   Observamos igualmente que os nobres bretões levaram das escarpas highlanders às terras lusitanas toneladas e toneladas de vírus da influenza. Para nosso infortúnio, não havia um só lugar livre de um lastimável infectado. E tome espirros, e tome tosses guturais, e tome catarros, e tome fungadelas, e tome o vibrar de lenços brancos frente a narizes sanguíneos e intumescidos. Fico a me perguntar: Caralho! Eles tem a bomba atômica, porventura desconhecem a vacinação anual de gripe? Tal como desconhecem tintura de cabelo (e o próprio cabeleireiro), maquilagens e adornos femininos, cosméticos e saias (atualmente empregadas exclusivamente por cavalheiros escoceses)?

                   Em suma: nada como uma boa viagem para se abrir a mente! E ─ descoberta fascinante! ─ as véias inglesas são idênticas a seus circunspectos maridos. Cara de um...

                   God save the Queen!


Coluna do DIB quarta, 03 de abril de 2019

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E OS CRIMES PRATICADOS NA INTERNET

 

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E OS CRIMES PRATICADOS NA INTERNET

A. C.  Dib

 

                        Discute-se, nos dias que correm, a iniciativa do colendo Supremo Tribunal Federal de mandar investigar crimes praticados contra a Corte e contra seus ministros, por internautas, nas redes sociais. Dizem alguns que tal iniciativa violaria o princípio constitucional de liberdade de expressão. Para outros a iniciativa de investigação cumpriria à polícia federal, mediante provocação do Ministério Público Federal. Pecaria, então, a Suprema Corte por desconsiderar atribuições que, legalmente, tocariam a outros órgãos, não a ela. Não adentraremos aqui na análise técnica da iniciativa e competência para a disquisição. Cuidaremos sim de determinados crimes praticados nas redes sociais e das atribuições constitucionais de nossa Corte máxima.

                        Muitos internautas parecem acreditar que Internet é terra de ninguém. Ali não se aplicam as leis pátrias ─ ou quaisquer leis que sejam ─, valendo xingar, insultar de todas as formas, difamar, caluniar e ameaçar a quem não se gosta. Promovem, assim, ofensivas publicações, maculadoras da honra alheia e, alegre e distraidamente, repassam mensagens deste naipe, agressivas e beligerantes. Ledo engano de quem assim pensa.

                        Importa alertar aos desavisados: crimes contra a honra ─ calúnia, injúria e difamação ─ ensejam SIM responsabilidade penal quando praticados na Internet. E, seguramente, sofrem a agravante de serem divulgados e disseminados publicamente. E incorre em crime quem repassa ditas publicações, eis que fazer apologia de crime também é crime, tipificado em nosso Código Penal.

                        Vale, igualmente, avisar aos incautos que “liberdade de expressão” não confere a ninguém o direito de enxovalhar a honra alheia. Se a Carta Constitucional de 1988 garante o sagrado direito de expressão, assegura, também, o igualmente sagrado direito à imagem, à honra e ao bom nome. Violações à imagem e à honra alheia motivam, ainda, direito do ofendido a indenização por danos morais.

                        Também o crime de ameaça se vê reprimido no Código Penal brasileiro, ou “ameaçar alguém por palavras, gestos ou outros meios de lhe causar mal injusto e grave”.

                        O Congresso Nacional, notadamente em sua legislatura anterior à atual, tíbio, fraco, pequeno e amesquinhado, fragilizado por incontáveis escândalos protagonizados por alguns de seus membros e por notícias de corrupção, desacreditado e rigorosamente impopular, acabou por conferir ao Poder Judiciário relevo, destaque e protagonismo nunca vistos antes na história brasileira. A Lavajato, em verdade, roubou a cena política nacional. Enquanto o Legislativo patinava e derrapava em lama viscosa esparramada por políticos, amarrado e incapaz de dar respostas ao clamor popular contra a escabrosa corrupção reinante, o Judiciário, dentro de sua missão constitucional urge frisar, exibia músculos prendendo poderosos, julgando, condenando e punindo os vendilhões da Pátria. Vale enfatizar que antes da Lavajato o precursor “julgamento do mensalão” promovido pelo Supremo Tribunal Federal, sob a firme batuta do regente, maestro Joaquim Barbosa, deu início a tais combates, serviu de ponta-de-lança, abriu barreiras e indicou o caminho das pedras e luz no fim de lúgubre túnel da impunidade.

                        O Excelso Pretório, hoje atacado por muitos, afigura-se como guardião da Constituição. Na condição de instância máxima do Poder Judiciário, é a derradeira barreira contra injustiças, abusos, violações a direitos e desmandos. Garantidor mor e final de direitos, garantias e liberdades fundamentais individuais. É o Supremo Tribunal zeloso guardião dos mais caros princípios constitucionais, legados pelos constituintes de 1988 e inseridos na “Constituição Cidadã”. Atrevo-me, mesmo, a declarar que o Estado Democrático de Direito e suas instituições democráticas, encontram, em boa medida, garantia de aplicação e materialização na ação firme, serena, desapaixonada e segura do Supremo Tribunal Federal. É a Suprema Corte brasileira um dos pilares de nosso regime democrático.

                        Muitos têm, ao que parece, lamentavelmente, dificuldade em entender a relevante missão constitucional reservada ao Supremo Tribunal Federal. Atacam a Corte e seus ministros, pelas redes sociais, sempre que desatendidos em seus interesses ou pretensões. Inocentes úteis, fazem o jogo perigoso dos aspirantes a ditadores, buscando enfraquecer e aviltar o órgão supremo do Judiciário brasileiro. Podemos não gostar deste ou daquele ministro, discordar desta ou daquela decisão, mas o clima de absoluto desrespeito, reinante no facebook e demais redes sociais não condiz com imperativos da boa convivência democrática.

                        Urge, portanto, que a Suprema Corte reaja, na defesa de sua imprescindível autoridade legal e moral. Ninguém ataca a honra alheia impunemente. A própria democracia exige um Judiciário imparcial, atuante, soberano e forte.

                        Cadeia para os apologistas de crimes, de golpes militares e da ditadura!


Coluna do DIB quarta, 13 de março de 2019

IMPRENSA LIVRE E DEMOCRÁTICA

 

IMPRENSA LIVRE E DEMOCRÁTICA 

A. C. Dib

 

                   Enseja preocupação os reiterados e virulentos ataques que o Presidente Jair Bolsonaro promove contra veículos de comunicação e contra jornalistas. A divulgação de qualquer notícia que não lhe caia no gosto desperta a hipersensibilidade e a ira presidencial.

                   Despiciendo dizer que o grande fetiche e fantasia dos tiranos é o de poder controlar a imprensa. Noticiazinhas açucaradas, cor de rosa, favoráveis, abonadoras, aduladoras, estas sim, são válidas, aceitáveis, dignas de nota. Notícias desfavoráveis ─ ainda que verdadeiras e corretíssimas ─ constituem perseguição, complô e trama rocambolesca, urdida por satânicos e implacáveis inimigos, com o fim de desestabilizar o governo.

                   Vale recordar que, há bem pouco tempo, os próceres e altos dignitários do Partido dos Trabalhadores, frente a escabrosos crimes atribuídos a membros do partido, ao invés de explicarem os fatos delituosos, refutando fundamentadamente as imputações que lhes pesavam, buscavam “defesa” no ataque, ou melhor, atacavam jornais, emissoras de televisão e jornalistas, que acusavam de parciais. Caso emblemático foi o da jornalista Miriam Leitão ─ episódio de triste memória ─ covardemente agredida, quase linchada, em um avião, no transcurso do voo, por numeroso grupo de petistas, meramente inconformados com a propalação de notícias alusivas à Operação Lavajato. Hoje aferimos ataques à jornalista, nas redes sociais, mui semelhantes aos anteriores, só que produzidos por bolsonaristas.

                   Em entrevistas e pronunciamentos concedidos antes da posse, nosso Capitão/Presidente firmou “compromisso sagrado” com a observância da Carta Constitucional e com a preservação da democracia. Esperamos não aflorar a velha vocação autoritária, tantas vezes manifestada em contundentes pronunciamentos remanescentes de sua longeva ─ e marcante ─ passagem pelo Congresso Nacional. Que os deuses atenienses venham a iluminá-lo, afastando-o das tentações totalitárias.

                   Chover no molhado é afirmar que a imprensa livre é um dos pilares do regime democrático. Não impera a democracia sem uma imprensa livre, independente, atuante, séria, comprometida com a verdade dos fatos e que proporcione a todo o povo acesso pleno à informação desimpedida de qualquer amarra ou censura.

                   Além do mais, motiva preocupação e temor o mal exemplo presidencial. Não faz muito tempo, hordas de internautas, nas redes sociais, descrentes dos rumos percorridos pela Nação, batiam na tecla da “intervenção militar” como forma de sanar miraculosamente os problemas da Pátria. Esses mesmos internautas, partidários do golpismo e da ditadura militar, serenaram os ânimos frente à eleição de Bolsonaro. Agora, na linha do líder e mestre, postam às escâncaras mensagens contra órgãos da imprensa e contra jornalistas, a quem acusam de perseguir O Mito. Já dizia o saudoso Umberto Eco que as redes sociais deram voz aos imbecis, vaticínio que se confirma nos dias presentes. E como se não bastasse a irracionalidade vigorante na internet, vem o Presidente da República, a quem toca o bom exemplo dos líderes políticos comprometidos com a causa democrática, atiçar os ânimos, encorajar o desatino e abrir as portas ao autoritarismo, com ataques e respostas duras a toda e qualquer crítica recebida.

                   O Imperador Pedro II e o Presidente Juscelino Kubitschek, esses autênticos estadistas, seguramente os maiores líderes brasileiros que a História registra, ignoravam olimpicamente críticas contidas na imprensa, mesmo ataques truculentos, vinculados por determinados jornais, produzidos por opositores. Aos ataques respondiam, serenamente, com obras, realizações, feitos patrióticos, abraçados, sempre, ao ideal da democracia e da liberdade de imprensa e de expressão. Getúlio Vargas, dizem, em sua “fase democrática” ─ posterior ao Estado Novo, urge esclarecer ─, na altura de sua inconteste experiência e sapiência política, pagava humoristas para produzirem anedotas tendo-o por personagem. Churchill ─ por sinal, uma das referências de Bolsonaro ─ sabia, como ninguém, rir de si mesmo, tirando vantagens políticas de suas fraquezas e convertendo derrotas em vitórias. Já Fernando Collor de Mello, o Caçador de Marajás, por sua vez, respondia agressiva e ameaçadoramente a toda e qualquer crítica, empregando aí seu porta-voz, o jornalista Cláudio Humberto, a quem cabia insultar os adversários, criando para tanto, inclusive, o bordão “bateu, levou”. Defenestrado do poder, não deixou grande saudade.

                   Que a maturidade política, finalmente, aflore no coração e na mente de nosso Presidente e que a imprensa brasileira faça o seu salutar trabalho, cumprindo o papel que lhe cabe na ordem democrática, com destemor, altivez e independência, livre da tutela e da intimidação dos autoritários de plantão.


Coluna do DIB terça, 06 de março de 2018

Ô VONTADE DE SER PRESO, RECEBENDO AQUELA REVISTADA


Coluna do DIB quinta, 31 de agosto de 2017

A VOLTA DAS VIVANDEIRAS

A VOLTA DAS VIVANDEIRAS

A. C. Dib

 

 

      Eu os identifico a todos. E são muitos deles, os mesmos que, desde 1930, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do Poder Militar.

Marechal Castello Branco

 

 

                   O assédio de civis sobre os militares, com o fim de seduzi-los, arregimentá-los e induzi-los a incursões políticas e a aventuras golpistas não é fato novo na crônica política tupiniquim. O Marechal Castello Branco, em toda sua calejada experiência e sólida formação acadêmica, em priscas eras, já identificava a ação aliciante e perniciosa das vivandeiras alvoroçadas. Para os neófitos, importa esclarecer: vivandeiras eram aquelas mulheres que vendiam mantimentos, ou que os levavam, acompanhando tropas em marcha. Assim, Castello Branco nos falava daquelas futriqueiras políticas que “comercializam” ou advogam a causa do golpe militar ou golpe de Estado junto aos militares, tentando vender-lhes seu produto.

                   Tais vivandeiras, de que já nos falava o saudoso Marechal/Presidente, afloram uma vez mais, laborando para vender seu pútrido peixe de data de validade vencida. Grupos, grupos e mais grupos vêm surgindo no Facebook alardeando e defendendo teses golpistas e a volta dos militares ao poder. Surgiram timidamente, adotando nomes relacionados ao Juiz Sérgio Moro e à Operação Lava-Jato, com slogans de apoio ao honorável Magistrado e à intitulada ação estatal de combate à corrupção. Pouco a pouco, entretanto, vão-se tornando mais explícitos em seus propósitos conspiratórios, mais diretos, mais honestos e claros. Vão abandonando as palavras de ojeriza à corrupção e de solidariedade à operação que lhe confere combate e vão adotando discurso golpista, contrário às instituições democráticas, partidário da reimplantação de regime militar no Brasil. E tome fotos do General Médici e tome mensagens de “como eram bons aqueles saudosos anos ordeiros e de grande seriedade moral” e tome dizeres proféticos, vaticinando o fracasso da democracia.

                   Apaixonado que sou pelo tema “combate à corrupção” – tema esse caro e prioritário ao povo brasileiro na atualidade −, inicialmente aderi a alguns desses grupos. Com o pipocar, aqui e ali, de uma ou outra mensagem de saudosismo dos anos militares, minha reação – costumo comentar todas as publicações – era de censura, de repúdio a semelhantes teses. Achava-me, então, voto vencido, com todos os demais participantes apoiando, entusiasticamente, ditas ideias. Em verdade, já por ocasião da gigantesca manifestação popular pelo impeachment de Dilma, estando na cidade de São Paulo, tive o orgulho de marchar pela Paulista, clamando pela remoção da Presidenta do trono dadivoso do poder. Já naquela ocasião, tive o desprazer de me deparar, em plena Paulista, com um caminhãozinho de som, no qual as poucas pessoas que o ocupavam vociferavam palavras de ordem de retorno aqueles idos, de triste memória. Chocado e enojado, cuidei de colocar boa distância entre mim e o sinistro caminhãozinho de som. Verifico agora que aquilo era o prenúncio do que se vê hoje, em larga escala.

                   Mas voltando aos grupinhos do Face, constatando que protestar contra aquelas publicações golpistas era pregar no deserto, fui me desligando dos indesejados grupinhos. Ocorre que a memória robótica, simplista e automática do Facebook parece ter-me associado ao movimento golpista. Firmaram entendimento de que eu gosto da coisa. E tome propostas e convites de ingresso em novos grupos. Grupos que trazem, como pano de fundo, fotos de milicos perfilados, batendo continência, com seus galões, quepes, espadas e uniformes esverdeados; fotos de brasões; de símbolos marciais e etc., vão ganhando de roldão a minha tela. Já vi, inclusive, foto do Juiz Sérgio Moro cercado de militares, como se o ínclito Juiz Federal fosse um dos mentores da patética tese militarista – na fotografia, Moro, certamente, participava de alguma solenidade. Parece que associar Moro aos militares enriquece a fatídica propaganda. E foi-se a timidez primordial, perdeu-se a cautela. Impera, agora, a ousadia explícita, com denominações mais honestas e autênticas, do tipo “Intervenção Militar Já!”.

                   Não falam em golpe de Estado, golpe militar e ditadura militar. Empregam a expressão – asséptica e vaga – “intervenção militar”. Já vi, até mesmo, um cara falar em “intervenção militar momentânea”, até a próxima eleição. Como se ditadura militar tivesse hora marcada e prazo de validade! Outro cretino me apareceu com a proposta de “intervenção militar constitucional”. CONSTITUCIONAL?! Não sei que diabo é isso. Se existe na Carta de 1988 previsão de atuação das Forças Armadas como Poder Moderador, por favor, avisem-me, eis que desconheço.

                   Brincadeiras à parte, a coisa é muito preocupante. Em passado recente, o Brasil já assistiu a esse filme aterrorizante. Também em 1964 tivemos a “Marcha da Família, com Deus e pela Liberdade”, que encorajou e respaldou a posterior ação golpista. Bem verdade que, em 1964, o cenário político nacional e mundial era bem diverso: em meio à Guerra Fria, que dividia em dois o planeta – espécie de Tratado de Tordesilhas ideológico −, existia, concretamente, a chamada “ameaça vermelha”, ou ameaça de golpe de estado comunista. No Brasil dita ameaça se fazia personificar na figura caudilhesca de Leonel Brizola e por tipos incendiários como Darcy Ribeiro, que já falavam aberta e despudoradamente em fechamento do Congresso Nacional. Situações de quebra da hierarquia e da disciplina – dogmas de fé para os militares – eram veladamente encorajadas pelo Governo João Goulart. Eclodiu, então, o golpe, aplicado com retórica de “contragolpe”. E, urge registrar, mostrou-se mui bem recebido e aplaudido por expressiva parcela da sociedade, já saturada da instabilidade e dos desmandos reinantes no Governo Jango.

                   O fato é que – frase já surrada, mas de grande verdade – “golpe de Estado todos sabem como começa, mas ninguém sabe como irá terminar”. Nasce o golpe laureado de angelicais propósitos para, pouco a pouco, na sequência, ir apresentando suas garras e mandíbulas. Muitas das vivandeiras que aplaudiram o nascer do ciclo militar, anos mais tarde engrossavam as fileiras compostas por milhões de brasileiros que, tomando as ruas das capitais na memorável Campanha das Diretas-Já, sacramentaram o fim daquele ciclo, lançando-lhe a última pá de terra.

                   Muitos julgavam – santa ingenuidade! – que os militares tomariam de assalto o poder, sanariam as irregularidades, aplicariam a ordem ao caos, expulsariam do poder os comunas totalitários e, limpa e desinfetada a Casa, devolveriam o poder aos civis. Qual! Ledo engano! Terminaram, sim, por reivindicar usucapião do poder. E lá se foram vinte anos de quebra de direitos e de garantias individuais, violações diversas aos direitos humanos, torturas, homicídios políticos, tutela da vontade popular e outras violências repressivas. Que não voltem jamais aqueles anos negros!

                   Caros amigos, não existe ditadura boa. A pior das democracias é melhor que a melhor das ditaduras. Muitas pessoas, desatentas e mal-acostumadas, só valorizam com exatidão a liberdade que usufruem apenas depois de perdê-la. Curioso observar quão parecidos são os fascistas e os comunistas em seus propósitos totalitários, ao defenderem ditaduras purificadoras e redentoras.

                   De tudo isso, aflora o desserviço incomensurável que prestam ao País os políticos corruptos. Desviam do erário bilhões de reais oriundos das economias populares, que seriam aplicados na educação, na saúde, nos transportes, na segurança, em habitações, infraestrutura, enfim, deixam órfãos e desassistidos milhões de brasileiros carentes destes serviços públicos. Bem assim, tais crápulas terminam, ainda, por minar a fé de milhares de pessoas na democracia e em suas instituições, o que, a meu sentir, é muito mais grave. A corrupção generalizada e desenfreada gera o desalento no coração dos homens, a descrença no bem, nos valores morais e na política, a total desconfiança das instituições do Estado, a revolta e a indignação. Resta, portanto, o povo – notadamente os mais jovens, que não vivenciaram os anos de tirania – fragilizado, vulnerável ao canto de sereia das vivandeiras, sujeito ao aliciamento criminoso de aventureiros e ao fascínio por ideologias que se valem da democracia para decretar-lhe a morte.

                   Corrupção não se combate com golpes e com ditaduras. Contra a corrupção, aumentemos a carga e a dose de democracia. Povo nas ruas reivindicando direitos, imprensa livre e atuante, instituições estatais – Poder Judiciário, Ministério Público e polícia – atuando plena e constitucionalmente, voto nas urnas e eleitores manifestando consciente e patrioticamente seu desejo de renovação política. E a democrática Carta Magna de 1988 forte, robusta, rigorosa e fielmente aplicada, respaldando o absoluto Estado de Direito. Tais são as armas genuinamente hígidas e eficazes anticorrupção.

                   E os militares, rigorosamente alheios a todo esse debate, seguem de forma serena, discreta e austera, cumprindo a missão que lhes confere a Lei Maior de garantia dos poderes constitucionais. Acredito que eles, melhor que ninguém, sentiram o peso desgastante do doloroso, mas didático, exercício do poder no transcurso daqueles anos. Citando, uma vez mais, o grande brasileiro Humberto de Alencar Castelo Branco: “Forças armadas não fazem democracia. Mas garantem-na. Não é possível haver democracia sem Forças Armadas que a garantam”.

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Coluna do DIB segunda, 14 de agosto de 2017

O PARADOXO PETISTA

O PARADOXO PETISTA

 A. C. Dib

 

 

                   Que ninguém se atreva a me acusar de ser um sistemático e empedernido antipetista: não sou. Ao contrário, ajudei a eleger Lula presidente em sua primeira eleição. Aspirava, então, por mudanças e acreditei no discurso ético/moralizador petista. Posteriormente, desgostoso frente ao retumbante “escândalo do mensalão” e, especialmente, desgostoso com a política externa petista – caso dos pugilistas cubanos, caso Cesare Battisti, apoio a ditadores totalitários, apoio irrestrito aos bolivarianos, enfim – jurei a mim mesmo que, antes de lançar um novo voto na urna petista, cortaria fora minha mão. Tempos depois, violei meu propósito, ajudando a eleger Agnelo Queiroz governador do Distrito Federal (para, uma vez mais, me arrepender amargamente da escolha).

                   E que ninguém me acuse de ser um apaixonado e fiel tucano: não sou. Jamais votei em FHC, sendo que, hoje, admito que o arrogante professor da Sorbonne fez – este sim – um governo ético, sério e nacionalista, com sua política neoliberal – que colocou nos rumos a economia brasileira, em momento de grave crise econômica mundial –, de austeridade fiscal e privatizante. Após FHC, Lula já pegou um País de economia estável, organizada, em forte ritmo de crescimento, com inflação sanada e controlada – pelo Plano Real – e promissor processo de industrialização e geração de empregos.

                   Em verdade, não gosto de rótulos. Não sou petista e nem, tampouco, tucano. Sou – mutatis mutandis – como aquela “metamorfose ambulante” da música do Raul Seixas.

                   Triste mesmo – e profundamente equivocada – é a postura presentemente adotada pelo Partido dos Trabalhadores frente à gravíssima crise ética, política e criminal que terminou por lançar sua estrelinha vermelha na lama.

                   A agremiação política poderia extrair importantes lições do acachapante escândalo que se abateu sobre ela, defenestrando-a do poder. Poderia, o Partido, ter batido no peito, produzindo, constrito e envergonhado, o mea-culpa perante a perplexa Nação Brasileira. Poderia, humildemente, admitir seus muitos erros, pedir perdão por tê-los cometido, demonstrar arrependimento, desejo de remir seus pecados e de mudar para melhor. Promoveria, então, um grande e rigoroso expurgo, separando o joio do trigo. Puniria, de forma exemplar, seus membros – podres, ainda que históricos – envolvidos na prática da corrupção. Buscaria – pela confissão, pelo arrependimento e pela purgação – a redenção. Tal seria a atitude esperada – atitude difícil, é verdade, mas, igualmente, de muita coragem. Admitir os próprios erros, revelar arrependimento e rogar por perdão é atributo de almas nobres, elevadas, honestas e generosas. Com isso, o Partido dos Trabalhadores, revelando grandeza – “errei, admito, mas busco, agora, acertar” −, terminaria por renascer, tal qual fênix chamuscada pelo fogo da culpa e do arrependimento. Emergiria de suas malcheirosas cinzas, renascendo temperado como o aço, renovado pelo sofrimento, expurgado, melhorado, calejado e rejuvenescido.

                   Lamentavelmente, tal não acontece. Em postura de arrogância histórica, ímpar, insuperável e inadmissível, o Partido dos barbudos e da estrelinha encarnada se recusa a admitir os erros e crimes cometidos. Ao contrário: se diz injusta e imerecidamente perseguido pela “elite branca”, pelos “coxinhas”, pela maquiavélica e tirânica elite capitalista, contrária às suas políticas populares. É, em verdade, vítima de infame e difamante perseguição. Alvo de ardilosa conspiração. Vale-se, então, da tática do ataque como defesa. Ataca, assim, a imprensa – notadamente a Rede Globo de Televisão, “inimigo-mor” −, ataca o Ministério Público, ataca o Poder Judiciário – com foco principal no Juiz Sérgio Moro −, em suma, ataca quem investiga, quem noticia e quem dá combate à corrupção. É engraçado, aliás, observar corruptos de diferentes credos políticos – corruptos esquerdistas, corruptos conservadores e corruptos liberais −, em uníssono discurso, partindo para o ataque contra a Rede Globo e contra o referido magistrado curitibano. Tal discurso, primário e infantiloide, parece subestimar a inteligência do povo brasileiro.

                   O arrogante PT se mostra, assim, insensível ao clamor de nossa população, já enojada por tanta roubalheira, por tanta cupidez, pelo jogo de interesses pessoais, por tanto desprezo pela coisa pública e por tanto desamor ao Brasil.

                   O que dão a entender é que os interesses mesquinhos do Partido superam os soberanos interesses do povo brasileiro e da Pátria. O ideal de poder – poder pelo poder – supera o ideal de moralidade pública, de aplicação da lei, de combate ao crime e de interesse público e da vontade popular.

                   Falam, agora, em eleições gerais – na vã esperança de reeleger Lula presidente −, o que implicaria em golpe de Estado, eis que a Carta de 1988 não contempla, no momento presente, possibilidade de eleições gerais. Em passado recente, porém, acusaram de golpe o constitucional e bem aplicado impeachment de Dilma Rousseff, que tinha cravada em seu seio a mais azeitada e engrenada máquina de corrupção governamental de que se tem notícias.

                   E, assim, segue o – alquebrado e roto, mas intransigente – Partido dos Trabalhadores, cego em sua arrogância, em sua insensibilidade e insensatez, surdo ao brado popular, a exigir justiça e punição aos maus políticos, mudo no discurso que o povo brasileiro esperava ouvir de sua boca.

                   Ao invés de purificar e renovar seu barril de maçãs, removendo aquelas podres e carcomidas de vermes, especializou-se na promoção de atos de desagravo de seus membros. Tal é a triste realidade presente, daquele que já foi paradigma do purismo, baluarte da ética, referência e esperança dentre os partidos nacionais, a voz dos mais humildes e desassistidos.

                   E por falar em humildes e desassistidos, nunca é demais lembrar que são estes exatamente as primeiras e maiores vítimas da corrupção bilionária detectada, já que, como consequência do desvio de verbas públicas, restam privados de assistência médica adequada, de melhores escolas, de segurança, de transporte descente, além de atingidos pela crise econômica gerada, pelo desemprego e pela carestia. Mais um dentre muitos paradoxos enfrentados, hoje, pelo Partido dos Trabalhadores.

 

 


Coluna do DIB terça, 02 de maio de 2017

BLACK ROSE

BLACK ROSE

A. C. Dib 

 

Captain’s log, day 1.263 after the Apocalypse.

 

                            Nonothing. GUIMARÃES ROSA was right. “Nonothing” – “Nonadain Portuguese − is a word that defines well my present situation. Nonothing. No. Nothing. Food, water, nature, men, women, civilization… nothing!

                            The process was slow: deforestation; air pollution, water pollution, soil pollution; urban growth; overpopulation; greenhouse effect; global warming; and, finally, the “Big Bang”… our Big Bang!

                            Those men… blind, selfish, greedy, idiots! They didn’t know when stop! They didn’t think about their own sons. They didn’t think about the future. But, what a future! ORWELL and KAFKA, together, couldn’t imagine such a future. “Brave New World”! Now it is too late!

 

 

Captain’s log, day 1.264 after the Apocalypse.

 

                            I had had, before, a beautiful house, a good job, respectable social position, and we had things in abundance. At present, I live in a dark basement. It’s my home.

                            I had a dog named Wolf. He was a good friend, loyal and very funny. Now, I raise rats and cockroaches. I depend on them to survive. I make clothes with rat’s fur, besides eating them and the cockroaches. Rats and cockroaches… I admire them. They are survivor, like me. Bacteria and viruses survived, too. But I don’t like them. I am afraid of them. But before, in good times, I also had fear of rats and cockroaches.

 

 

Captain’s log, day 1.264 after the Apocalypse, at night.

 

                            To tell you the truth, my life is not too bad. I even have a little greenhouse, here in my basement. Sun light and fresh air are no longer suitable for life. I use, then, artificial light. I have two little plants here: a lemon tree and “the rose”.

                            My lemon tree gives me oxygen, dry leaves and branches for the fire and vitamin “c”. Certainly, I won’t die of scurvy. It’s just a lemon tree, but I talk to it, like ZEZÉ talked with his orange tree.

                            The rosebush, on the other hand, is a special plant. Black rose. With genetic modification, done by scientists. But scientists couldn’t give the black rose a good fragrance. Its smell is not good. It reminds me of putrid flesh.

                            In my basement, I have a big battery that I call “matrix”. I also have a bike, which doesn’t move because it doesn’t have wheels. I cycle it to supply electric energy to matrix. I pedal a thousand times in the morning and a thousand times before going to bed. Riding my bike is good for my health. With matrix I can supply electric energy to my other machines: the urine filter, the air filter, bulbs, batteries, boiler, irradiation measurer, and others.

                            Oh, yes! My urine filter! With three liters of urine I can make a glass of fresh water, which is essential for my survival and the survival of my plants, my rats and my cockroaches.

                            With my excrements I can make good food, for my rats and my cockroaches. It’s better to eat rats and cockroaches than excrement!

 

 

Captain’s log, day 1.273 after the Apocalypse.

 

                            I really miss Laura. I miss her smell; I miss her long straight, black hair; her body; her shiny smile; her friendship. Dear Laura! My sweet love! Laura and I survived after the war over water. When all was finished, I talked to her:

                            − Now, we are Adam and Eve! We have to populate the planet!

                            But we couldn’t do that. Laura had cancer. I saved Laura’s music box. I listen to it every day. Allegro vivace by MOZART.

                            I saved a little treasured too, that I put away in my cupboard: five and a half bottles of scotch whisky. But I don’t drink it; I use it like medicine, to disinfect the wounds on my skin. A handsome leper… I also saved a box of cigars. But they dried out. I threw them in the fire.

 

 

Captain’s log, day 1.277 after the Apocalypse.

 

                            Every day, I go out to explore the area, in the evening. During the day the temperature is too hot while at night the temperature is very cold. Before I go out, I wear my waterproof uniform, to protect me from the black rain, acid and corrosive; I wear my helmet; my boots; put my gas mask and the oxygen tank. Every day, looking for someone, looking for something, looking for hope, maybe. Before this, however, I visit Laura’s grave.

 

 

Captain’s log, day 1.284 after the Apocalypse.

 

                            I could cry no more. My tears dried. I also don’t know how to pray any more. I think GOD forgot me. But, before, human beings forgot GOD. The loneliness is very sad. ROBINSON CRUSOE had better luck then me; he had FRIDAY. FOUR HORSEMEN AT THE APOCALYPSE galloped over humanity. HUNGER, PEST, WAR and DEATH. Terrible, implacable, merciless.

 

 

Captain’s log, day 1.300 after the Apocalypse.

 

                            I would like to wake up of this nightmare! If we could go back to the past, we could modify the present. I would like to delete the past! Bad luck! We lost everything. But I didn’t lose my humanity. I am a man. The last man. Writing my memoirs for the future generations. Rats and cockroaches will inherit the Earth. Rats and cockroaches will read my diary in the future.

 

 

Captain’s log, day 1.303 after the Apocalypse.

 

                            This isn’t the Land of Oz. But, every day I go out of my shelter. I insist; I’m looking for. I’m looking for what?! I confess: I don’t know! But I insist. The wind blow; I listen a distant sad groan. The red ground, burnt. The ghost cities in front of me… And I’m looking for, and looking for and looking for…

                            I am not GUIMARÃES ROSA or JOYCE, but I love neologisms.

                            Nonothing.


Coluna do DIB quarta, 19 de abril de 2017

E POR FALAR EM REFORMA POLÍTICA...

E POR FALAR EM REFORMA POLÍTICA...

A. C. DIB

 

 

                   Lugar-comum na vida pública brasileira é apelar para “reforma política” sempre que alguma crise aflora no cenário político nacional.

                   Nos dias presentes, frente à maior crise ética de nossa história, fruto do mais escabroso caso de corrupção já perpetrado e constatado em nossos quinhentos anos de existência, não poderia ser diferente. Eclode, uma vez mais, a salvadora proposta de reforma política, panaceia redentora, solução para a tempestade que assola a judiada Pátria.

                   Antes de reformar nossas instituições políticas, a reforma premente e – genuinamente – procedente é a do caráter – ou, mau caráter – dos “estadistas” que gerenciam presentemente o País e dos que votam suas leis.

                   Claro está que os atuais mandatários – boa parte dos quais comprometidos até a medula óssea com o escândalo de corrupção ora combatido pela Lava-Jato – resistirão até as últimas consequências a qualquer proposta moralizadora ou renovadora.

                   Exemplo disso – patente e paradigmático – deu a Câmara dos Deputados, há bem pouco tempo, ao desfigurar o Projeto de Lei de Iniciativa Popular de combate à corrupção. A “Casa do Povo”, curiosa e estarrecedoramente, ao invés de aprovar os imprescindíveis artigos do projeto, que firmemente afrontavam e puniam – com rigor – a danosa prática, terminou por inserir no projeto dispositivos que – é de vomitar! – punem exatamente aos que dão combate à corrupção e aos corruptos: magistrados e membros do Ministério Público. Astutas raposas, Suas Excelências terminaram por converter o combate à corrupção em blindagem, garantia e proteção aos corruptos tupiniquins.

                   Agora – incansáveis e imaginativos – propõem, a título de “reforma política”, aprovar sistema eleitoral proporcional pelo chamado processo de listas fechadas. Assim, na eleição de deputados federais, estaduais, distritais e de vereadores, aos eleitores restaria a opção de votar nos partidos políticos. Os partidos mais votados enviariam às câmaras e assembleias, na condição de “eleitos”, os integrantes de suas listas de candidatos. Dispensável registrar que encabeçariam tais listas aqueles mesmos velhos caciques de sempre. A esperada e imprescindível renovação política de nossas casas legislativas converter-se-ia em sonho distante e em doce ilusão.

                   Propostas verdadeiramente sérias, motivadoras de renovação e de aprimoramento de nossas instituições político/democráticas são: o voto distrital, o fortalecimento dos critérios de fidelidade partidária e o recall.

                   O sistema eleitoral proporcional, mais triste legado e equívoco produzido pela Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88, desgraçadamente inserido na Carta de 1988 – salvo melhor juízo, pelo Senador/Coronel Jarbas Passarinho −, tem como resultado ensejar a ingovernabilidade, frente ao elevadíssimo número de partidos políticos que ganham vida pelo malfadado sistema. Partidos sem fim, a configurar sopa de letras de siglas inesgotáveis. Se já é difícil governar com poucos, tarefa hercúlea é a de governar com duzentos partidos, o que impõe ao governante malabarismos, acrobacias e um emaranhado de acordos canhestros e cavilosos, para formar a indispensável “base de apoio” ou “base aliada”. Em sentido contrário, tem o sistema eleitoral distrital, primeiramente, o asséptico efeito de reduzir o número de partidos aos poucos que, verdadeiramente, possuem peso, voz e representatividade, promovendo, então, a indispensável estabilidade para governar. Ademais, acaba com o complexo cálculo do quociente eleitoral – termina eleito o candidato mais votado em seu distrito – e aproxima eleitor e eleito, de forma que o eleitor passa a identificar aquele representante em quem votou, podendo vigiar sua atuação, além de acessá-lo e pressioná-lo com maior eficácia.

                   Corroborando o modelo eleitoral distrital, seria devido fortalecer o princípio da fidelidade partidária. Deveras, o modelo proporcional faculta a criação de legendas de aluguel, partidos sem representatividade e sem nenhum colorido ideológico, meros veículos eleitorais de políticos mal-intencionados e de caciques ladinos. Terminam, a seguir, depois de eleitos, “trocando de partido como quem troca de camisa” – diz a sabedoria popular −, assim que lhes aperte o calo. Ao cidadão, que elegeu seu deputado esperando ver aplicadas as ideias e propostas de seu partido, resta o amargo sabor de malogro na boca. Na moderna democracia representativa a escolha recai sobre programas, projetos e propostas político/ideológicas – marcas e marcos dos partidos políticos −, não sobre líderes messiânicos e salvadores da pátria. O mandato dos eleitos, portanto, pertence aos partidos pelos quais se elegeram, sem, contudo, desconsiderar o fato de que o eleitor merece conhecer seu candidato, saber em quem está votando. Ao deixar o partido, o mandatário seria, consequentemente, obrigado a deixar, também, a cadeira ocupada em sua casa legislativa. Os partidos, então, contariam, em cada distrito eleitoral, com candidatos disposto a defender seu programa, além da defesa − óbvia – dos interesses dos eleitores do distrito. Deveriam, em conclusão, fidelidade ao partido pelo qual se elegeram. De igual forma, os partidos deveriam guardar irrestrita fidelidade e compromisso para com seu programa e às propostas assumidas em campanha.

                   Temos, por fim, o recall como elemento modernizador de nossa jovem democracia. Recall político é o poder de cassar ou revogar o mandato do representante político, por parte do eleitorado; significa “chamar de volta” um mandatário ímprobo, incompetente ou de atuação contrária à vontade popular.

                   No Brasil Império, entre os anos de 1822 e 1823, o Decreto de 16 de fevereiro de 1822, que instituía o Conselho de Procuradores Gerais das Províncias do Brasil, fixava, em seu preâmbulo, que: “...os quaes Procuradores Geraes poderão ser removidos de seus cargos pelas suas respectivas Províncias, no caso de não desempenharem devidamente suas obrigações, si assim o requererem os dous terços das suas Camaras em vereação geral e extraordinária, procedendo-se à nomeação de outros em seu logar”. Tal decreto, então, estabelecia a possibilidade de destituição dos eleitos, por iniciativa dos eleitores, caso não cumprissem suas obrigações.

                   Na República Velha, alguns estados da Federação, como Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás e São Paulo adotaram, em suas constituições, o voto destituinte.

                   Na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88, o tema da revogação do mandato eletivo foi proposto e debatido, com a denominação de “voto destituinte”, restando, lamentavelmente, rejeitado pelos senhores Constituintes.

                   Cuidando, pois, de reforma política, com a seriedade e o respeito que o momento exige, ficam lançadas ao debate as propostas de sistema eleitoral distrital, criteriosa fidelidade partidária e do recall político, inovações moralizadoras e de indiscutível autenticidade democrática, favoráveis aos soberanos interesses do povo brasileiro, já tão maculados e vilipendiados.


Coluna do DIB segunda, 06 de março de 2017

GULULUPA

GULULUPA

A. C. DIB

 

 

                   O senhor Héracles Alves era o inspetor de alunos do Liceu Piauiense.

                   O augusto e tradicional Liceu Piauiense compunha conhecida rede de colégios públicos dos estados do nordeste brasileiro, pelo que os estados federativos que se prezassem tinham o seu próprio Liceu – Liceu Maranhense, Liceu Cearense, etc.

                   Liceu, colégio ginasial, era instituição de ensino mista, ou frequentada por moças e por rapazes. O uniforme dos jovens estudantes denotava a importância e gravidade da provecta instituição educacional: uniforme de brim, de cor cáqui – estilo militar −, calça comprida com lista azul estendendo-se pelo lado de fora de cada perna, camisa social branca, gravata preta, paletó com quatro botões e dois bolsos fechados, cada bolso em um dos lados do peito e quepe de pano, sem aba, com lista azul correndo em ambos os lados.

                   Foi o célebre mestre João Arcanjo, pedreiro de renome, pintor, decorador, paisagista, arquiteto e engenheiro prático, talentoso artista plástico, carioca, contratado pelo Estado do Piauí, o responsável pelas obras decorativas e demais benfeitorias úteis e voluptuárias reinantes no Liceu Piauiense. Mestre João Arcanjo, vale frisar, foi, igualmente, o mentor e criador de outras relevantes obras públicas levadas a cabo em Teresina, como as dos Correios e Telégrafos, da Praça Rio Branco, da Praça Pedro II, erigindo e adornando em tais localidades coretos, bancos, praças com seus desenhos de jardins e outras artes.

                   Anos depois, o Liceu Piauiense teve seu nome alterado para Colégio Estadual do Piauí.

                   Voltando, então, para o senhor Héracles Alves, temos que o circunspecto inspetor de alunos do Liceu Piauiense era homenzarrão alvo, corado, de lustrosa cabeleira negra emplastrada com brilhantina e cuidadosamente penteada. Andava com tal apuro no vestir, enfiado em bem cortado terno de casimira, que, aos novatos e aos desavisados, poderia passar por diretor da veneranda casa educacional.

                   Cabia ao honorável bedel apontar, para a direção, o nome dos rebeldes e indisciplinados – isso quando não levava, ele mesmo, pelo braço ou pelos colarinhos, o traquinas. Percorrido, com ares severos e olhos de águia, corredores, pátios, salas, biblioteca e demais dependências da escola, observando o rigoroso cumprimento das regras, vigiando o uso do uniforme, censurando comportamentos, repreendendo e fiscalizando.

                   Por tais atribuições pouco simpáticas, o senhor Héracles Alves não era lá muito popular entre os jovens. Visto com certa animosidade pela estudantada, alvo de malquerenças e deboches, por vezes tinha seu bom nome gravado em paredões e muros, acompanhado de outros desairosos nomes. Outras tantas, a ofensa vinha gritada, não se sabe donde. E senhor Héracles, prontamente, punha-se a investigar, diligenciando à cata do injuriador.

                   Ocorre que para o atento censor e disciplinador nome algum era mais feio, mais ofensivo, mais imoral, ignóbil e abjeto que “gululupa”. Até hoje não se sabe bem que diabos queria dizer a tal ofensa de gululupa. O que se sabe é que na combativa cabeça do diligente inspetor nome algum poderia macular com superior gravidade a honra, a dignidade e o bom nome de um homem que a alcunha de gululupa. Em posse de tal informação, a rapaziada, que não era boba, não poupava boa dose de gululupas com o fiscal. E tome gululupa: gululupa daqui, gululupa dali e d’acolá.

                   Oswaldo, filho mais velho de Frutuoso dentre os filhos homens, veterano daquele educandário, certa feita, desejoso de pregar uma peça no inspetor de alunos, escreveu em seu quepe, com tinta preta e em letras garrafais, o tão temido impropério: G U L U L U P A. Ato contínuo, pôs-se a passear distraidamente pelas dependências da escola, assobiando e mirando os céus.

                   Desmedido foi o assombro do senhor Héracles ao cruzar com Oswaldo. Apuradíssimo, rubro, quase a suar, chamou por Oswaldo em voz baixa, mas com muitos acenos.

                   − Senhor Oswaldinho, senhor Oswaldinho, mas o que é isso aí em seu quepe?

                   Oswaldo, demonstrando surpresa, tirou o quepe da cabeça e o examinou.

                   − GULULUPA?! Mas o que é isso, senhor Héracles? – disse, em tom de grande espanto. – GULULUPA? Mas o que é isso?

                   − Schiiiiiiiiiiii! – exclamou senhor Héracles, em tom de súplica, a pedir silêncio com o dedo indicador na frente dos lábios e a outra mão acenando para falar mais baixo.

                   − Mas o que significa isso, senhor Héracles? Quem escreveu isso em meu quepe? Gululupa?

                   − Não pronuncie essa palavra, senhor Oswaldinho! – pedia o senhor Héracles, suplicando para que o mancebo falasse um pouco mais baixo.

                   − Não pronuncie esse nome infame! Venha aqui comigo! Por favor, venha comigo!

                   Os demais rapazes, colegas de Oswaldo e cúmplices no trote, olhavam a cena de longe, com frouxos de riso. Seguiram ambos, Héracles e Oswaldo, para o banheiro masculino.

                   − Vamos lavar o seu quepe, senhor Oswaldo! – disse o senhor Héracles, algo desesperado. – Tiremos dele este nome pavoroso!

                   E tomou o quepe das mãos de Oswaldo, pondo-se a lavá-lo de maneira frenética, esfregando-o com sabão debaixo da água corrente.

                   Oswaldo, com muito custo, segurava o riso, que teimava em lançar-se da garganta, explodindo pela boca.

                   − Não pronuncie este nome em nenhuma hipótese, senhor Oswaldo! É por demais repulsivo, condenável! – insistia o escandalizado inspetor, falando em voz baixa, buscando abafar o som das palavras. E prosseguia a nervosa lavagem, lutando contra o gululupa que, indelével, teimava em permanecer com eles.


Coluna do DIB segunda, 27 de fevereiro de 2017

CONSELHOS MACHADIANOS

CONSELHOS MACHADIANOS

A. C. Dib

 

                   Aquele já era, provavelmente, o vigésimo trajeto que Anna fazia, repetidamente, da porta da sala até a porta do quarto. Ia e vinha, num caminhar frenético, com a mão esquerda pousada no peito, sobre o coração, e com os dedos da direita tamborilando nas ancas. Mirava o nada, com ares de profundo terror, como que a buscar solução para os insondáveis enigmas do Universo. Subitamente, emergiu das profundezas, nas quais se achava mergulhada, sendo despertada por uma voz fraca, de um ligeiro falar cantado, tal qual o de um gago, que dizia:

                   ‒ Menina, acabarás por abrir sulcos profundos na reluzente madeira deste teu soalho, frente aos incontáveis trajetos que te levam de cá para lá, e de lá para cá! Mas, afinal, é, realmente, de vida ou morte este palpitante caso que, agora, vejo te consumir?

                   Anna virou-se instantaneamente, deparando-se com um mulato provecto, de cabelos, bigode e cavanhaque brancos, vestindo austeros e garbosos trajes do Século XIX, a mirá-la através de um pincenê.

                   ‒ Quem é você? ‒ indagou Anna, tomada de espanto, quase a gritar.

                   ‒ Sou o teu alter ego. Sou a voz da tua consciência, ou a voz da razão, que forceja por trazer-te para o mundo da lógica. Mas, podes me chamar de Machado de Assis! ‒ disse o espectro.

                   ‒ Não entendi nada! ‒ falou a atônita Anna. ‒ Você é um fantasma?

                   ‒ Podes me chamar assim, caso prefira. Fantasma em carne e osso, ou melhor, em espírito e luz, vindo do limbo, tal qual Brás Cubas. Dize-me, jovem, qual é a razão de tamanho desespero?

                   ‒ Sou profundamente ciumenta, mas sigo, religiosamente, o horóscopo. Hoje, folheando o jornal, dei com a seguinte previsão do meu signo, touro, que dizia: “Seu dia pode ser preenchido com amor e liberdade no relacionamento. Você gosta de ficar grudadinho, mas, às vezes, esse comportamento acaba irritando seu parceiro”.

                   ‒ Jamais confies em horóscopo, em signos do zodíaco e em cartomantes! Mas, e então? O que fizeste após ler a previsão para o signo de touro?

                   ‒ Meu marido, Daniel, costuma dizer que eu o sufoco, com meu amor desenfreado e com meu ciúme desmedido. Hoje, então, convencida pelo horóscopo, liberei Daniel para ir ao bar, beber com os amigos. Antes de nos casarmos, Daniel costumava passar as tardes de domingo no bar, na companhia dos amigos, bebendo, rindo, brincando e tagarelando. Depois, então, cuidei de mudar isso. Penso que lugar de homem casado e sério é em casa, ao lado da mulher.

                   ‒ Assim, agora estás aflita e insegura. Estará o nosso Daniel nos braços de alguma libertina, frequentadora da dissoluta estalagem? ‒ indagou Machado de Assis, confiando os pelos do cavanhaque.

                   ‒ Você debocha porque não está no meu lugar! Não sabe o que é ser casada com um homem bonito, e ter que conduzi-lo em rédeas curtas, lutando para preservar sua fidelidade e para preservar o casamento.

                   ‒ Estás enganada, Anna! Redondamente enganada, em teu modo de proceder. Esse teu ímpeto possessivo, sim, acabará minando teu matrimônio. E vejo que não tens olhar de ressaca, mas um devorador e aterrador olhar de paixão.

                   ‒ E o que posso fazer, se sou ciumenta da cabeça aos pés?

                   ‒ Refreia esse teu avassalador ciúme, ou acabarás demente, como Rubião. Já leste Otelo?

                   ‒ Quem é esse tal de Rubião? É da turma de solteiro do Daniel?

                   ‒ Vê, Anninha, o que, em verdade, atrai os homens é a indiferença. Segue o bom conselho do Bruxo do Cosme Velho, e, afianço, terás Daniel comendo em tua mão, doce com um cordeirinho.

                   Anna, parecendo alheia ao que lhe era dito, assim falou:

                   ‒ Estava pensando em telefonar para ele, com a desculpa de pedir para trazer algumas cervejas. Poderia, assim, estudar a sua voz e assuntar os sons à sua volta.

                   ‒ Segura-te! Resiste a tal tentação, ou porás a perder o gesto de liberalidade, hoje praticado!

                   ‒ E se eu fosse pessoalmente ao barzinho, com a desculpa de comprar algumas cervejas, para abastecer nossa geladeira?

                   ‒ Adentrai vós, na geladeira, e refrescai a própria cabecinha vaga. Ah! Que falta faziam as geladeiras, em meu tempo! ‒ suspirou Machado de Assis.

                   ‒ O senhor não poderia ir, por mim, ao bar, sondar o ambiente? Vá, e, depois, volte aqui, para me contar o que viu.

                   ‒ Dante contou o que viu. Eu, porém, não tenho vocação para bisbilhoteiro. Criança, o adultério é da natureza humana. Há muito, foi-se o romantismo. Acorda para o realismo da vida. Almejas à felicidade? Concede alforria para Daniel, e faze-te de cega, surda e muda. Se, de fato, amas Daniel, hás de querer sua felicidade, não sua servidão. E, por fim, em última e pior sorte, na eventualidade do adultério ‒ se houver, urge frisar ‒, ainda poderás, quem sabe, pagar dita infidelidade do poltrão na mesma moeda. Mira-te em Virgília, que não titubeou. Fecha-se uma porta, abre-se uma janela.


Coluna do DIB segunda, 13 de fevereiro de 2017

ANO NOVO, NOVAS ESPERANÇAS

ANO NOVO, NOVAS ESPERANÇAS

A. C. DIB 

 

                  No campo da vida pública brasileira o palpitante ano de 2016 teve na Operação Lava-Jato seu ponto-forte, carro-chefe, ápice e clímax. O histórico “Julgamento do Mensalão”, regido, na Suprema Corte brasileira, pela batuta corajosa, altiva e independente do maestro Joaquim Barbosa, fez escola.

 

                  A prisão, julgamento e condenação criminal de políticos poderosos ‒ políticos no auge do exercício do poder, vale frisar ‒ e de ‒ igualmente ‒ poderosos empresários bilionários são fato e feito inéditos na política e na crônica criminal tupiniquim e constituem marco histórico no combate à nossa longeva impunidade e na repressão à corrupção que grassa em solo verde-amarelo.

 

                  Aberta a caixa-preta da corrupção ‒ Caixa de Pandora ou boca do inferno ‒, os fatos e números assustam e estarrecem, primeiramente, pelo volume avassalador de valores sangrados dos cofres públicos ‒ notadamente, dos cofres de nossa Petrobrás, em cifras de bilhões de reais ‒, e, em seguida, pela constatação de que tal prática criminosa e danosa ao erário converteu-se em política de governo da era petista, prática organizada em modelo empresarial, moeda corrente e de troca, modus vivendi e modus operandi dos Governos Lula e Dilma e de seus apoiadores.

 

                  A luta ingente e aguerrida de instituições nacionais como o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Federal, resultando no pleno cumprimento das leis e na prisão de poderosos figurões da República e de influentes empresários é de ineditismo ímpar em nosso País, ao menos em período de normalidade democrática, eis que em momentos de ditadura e de governos de exceção prisões já se deram, mas com abuso de poder e violações de direitos. Tal ação exemplar e constitucional injeta no peito do brasileiro orgulho e alguma esperança na quebra de viciados paradigmas. Ídolos políticos que ocupavam o coração dos brasileiros – Juscelino, Ulysses, Tancredo Teotônio e outros gigantes de nosso passado político – cedem lugar em amor, admiração e idolatria a magistrados, promotores e policiais – caso do emblemático Juiz Sérgio Moro e do festejado “japonês da Federal”.

 

                  Nossas instituições políticas se mostram sólidas, amadurecidas e, mesmo, resistentes, frente ao salubre e asséptico vendaval punitivo que tem varrido a vilipendiada Pátria. A Constituição Federal brasileira de 1988 ‒ Constituição Cidadã, no dizer de Ulysses Guimarães ‒ revela saúde e virilidade soberana. Constata-se, então, que, a despeito da ousadia, do cinismo e da cupidez de ladravazes travestidos em estadistas e de todo o esforço que vêm promovendo para obstar a ação legal, o Brasil dos tempos presentes se revela “Pátria do império da lei”, não mais aquela outra, de triste memória, do império da impunidade, no qual só paravam e esquentavam lugar no xilindró os três Pês: pobres, pretos e poetas. O pavilhão nacional tremula, hoje, mais alegre e vistoso, bafejado por ares dos novos tempos.

 

                  Aflora, igualmente, como fato político novo, carregado de promessas transformadoras, a chamada “Voz das Ruas”. Fruto das inovações tecnológicas do Século XXI ‒ informática, internet, celular, Facebook, WhatsUpp e demais redes sociais ‒ a mobilização popular espontânea, sem a presença e interferência de lideranças políticas ou partidárias, tendo como elo ou elemento de união a insurgência contra a corrupção e contra as demais mazelas governamentais, chegou para ficar, deixando insones os poderosos e sacudindo, com estrondo, as estruturas políticas da República. A voz rouca e tonitruante das ruas, composta por apaixonados brasileiros trajando verde e amarelo, carregando, altivos, a Bandeira Nacional, convocados e arregimentados nas redes sociais e plenamente cientes da roubalheira desenfreada e conscientes de seus direitos, se fez ouvir, em dezenas de cidades do Brasil, tomadas em suas ruas por milhões de pessoas, resultando, dentre outras coisas, no impeachment de uma Presidente da República – má presidente, diga-se, eis que leniente e inerte, talvez, até, conivente, frente à escandalosa roubalheira que grassou em seu malfadado governo. A indignação popular tem-se feito ouvir, seja em apoio ao combate à corrupção, seja em demonstrações de repulsa e asco a cavilosas figuras da vida pública brasileira. Políticos antes insensíveis, debochados, arrogantes e plenamente confiantes no binômio poder/impunidade, agora se mostram amofinados, cautelosos, desconfiados e temerosos. Aqueles descrentes e materialistas talvez, no presente, estejam já arriscando algumas orações e volvendo os gulosos olhos para os Céus.

 

                  Urge, porém, preservar e manter a eficiente e frutuosa mobilização popular, eis que os partidários e militantes da corrupção não dormem jamais, mas trabalham, silenciosamente, na calada da noite e à surdina. Exemplo inequívoco dessa ação inescrupulosa foi a recente tentativa de desfiguração e descaracterização do Projeto de Lei Anticorrupção, encaminhado pelo Ministério Público e, desgraçadamente, votado e totalmente alterado pela Câmara dos Deputados. Tal votação, inclusive, deu-se literalmente na calada na noite, madrugada adentro, aproveitando-se os votantes da grande comoção popular que, naquele momento, envolvia o Brasil, em prantos pelo trágico sinistro que vitimou o avião do time da Chapecoense e desatento ao que se passava na “Casa do Povo”. Espertamente suas Excelências subtraíram do ótimo texto primitivo dispositivos fundamentais à luta contra o câncer da corrupção, inserindo, curiosamente, dispositivos para punir exatamente aos que promovem tal luta − juízes, promotores e policiais −, deixando-os fragilizados e vulneráveis à ação maligna daqueles mesmos poderosos a quem combatem. Os protestos populares que se seguiram foram suficientes para impedir que o Senador Renan Calheiros fizesse o mesmo no Senado, aprovando e ratificando, em regime de urgência e a toque de caixa, a violação ao texto primevo do Projeto, tal como fez, vergonhosamente, a Câmara dos Deputados.

 

                  Urge, pois, saldar os novos tempos, que, mesmo difíceis e tormentosos, inspiram esperanças e fazem vislumbrar, em longínquo e estreito túnel escuro, bruxuleante e tênue luz no seu fim. Que venham novas e vibrantes manifestações populares; sejam nossas ruas coloridas de verde e de amarelo e de tremulantes bandeiras e brados de amor pelo Brasil. E que aflorem, em nossas Cortes, outros Juízes Joaquim Barbosa e Sérgio Moro, que não se amedrontem ante os poderosos, e não se enverguem, e que não vacilem em promover Justiça – com “J” maiúsculo – a quem merece.

 

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Coluna do DIB quinta, 29 de dezembro de 2016

COMENTÁRIOS SOBRE AS MEDIANAS DÉCADAS DE TITO FLAVIUS

COMENTÁRIOS SOBRE AS MEDIANAS DÉCADAS DE TITO FLAVIUS

A. C. Dib

 

                   Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar. Olhou-a de um jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar.

                   Fiel e perene era o amor que Tito Flavius cultivava por ela ‒ amor à primeira vista, aliás, nascido no mesmo dia em que a conhecera ‒, mas, naquele dia, não se sabe o porquê, aquele amor se acentuou. Desejava-a com ardor, com sofreguidão. Desejava-a com paixão, com loucura, como nunca a desejara.

                   A frieza e indiferença, características da meia-idade, evadia-se diante dela. O palpitar do coração, aos pulos, tal qual o de um colegial, crescia no velho peito de Tito Flavius, juntamente com incontida excitação.

                   Curioso ‒ pensou ‒ é que os anos não lhe pesam, mas, ao contrário, robustecem sua graça, seu charme, sua incomparável beleza e seu valor.

                   Admirou, à distância, a suavidade de suas curvas. Aproximou-se, lentamente, sem desviar o olhar. Afagou, suavemente, sua pele lisa e reluzente. Deixou correr os dedos pelas curvas sinuosas da amada.

                   Ansiosa e irresistivelmente, montou-a num só pulo, desejoso de sentir seu balanço suave, macio.

                   Aspirou seu refinado aroma, invariável desde o dia em que a conheceu.

                   Relaxou, prazerosamente, ao sentir, abaixo de si, o generoso estofamento de seu couro.

                   Há! Aquela inigualável italiana! Musa inspiradora! Uma verdadeira máquina! Uma potranca! A seu lado, o calejado coração de Tito Flavius se reconfortava. O sangue fluía mais forte. Sentia-se remoçado. Como ela, outra não havia no mundo. Como respondia bem a todas as suas carícias e comandos. Um regalo para os olhos, e um bálsamo para a alma. Linda, maravilhosa e obediente, mas dona de personalidade ímpar.

                   Jubiloso, Tito Flavius entoou alguns versos melodiosos de Zingara, à Peppino di Capri.

                   Não mais se contendo, deixou sair de si, com energia, toda a carga de prazer, há muito represada. Com um grito, lançado do fundo da alma, acionou a chave de sua exuberante máquina.

                   Ouviu, então, em êxtase, o potente ronco do motor de sua amada Ferrari Testarossa conversível, e, num átimo de segundo, arrancou, fazendo cantar os pneus e levantando, da fricção destes com o solo, vistosa nuvem de fumaça e algumas fagulhas.

                   Largou, imprimindo plena velocidade ao automóvel escarlate, sentido, forte, o bater do vento em seu rosto, e o arder do sol a lhe crestar a pele, naquela radiante manhã de inverno.


Coluna do DIB terça, 20 de dezembro de 2016

TESTOSTERONA

TESTOSTERONA

A. C. Dib

 

                   A tarde corria monótona, lenta e modorrenta.

                   O estudo de física − com suas fórmulas, leis e equações − se fazia vital à sobrevivência escolar, eis que a prova final se aproximava, e a média presente rastejava, muito aquém do exigido para a aprovação na matéria. Ocorre que, para Caíque, uma dose de física equivalia a um frasco de purgante de jalapa.

 

                   Mirou o relógio, ansioso. Não, ainda não era a tão esperada hora do lanche da tarde. Costumava interromper o estudo para lanchar, pontualmente, às dezesseis horas. Aí, então, como ninguém é de ferro, já que tinha mesmo que comer, refestelava-se na poltroninha favorita, com os pés ‒ ou com o prato de comida ‒ apoiados no pufe fronteiriço, e, na TV, assistia ao imperdível Festival Hanna Barbera. Não se dava conta, mas, mesmo comendo um boi inteiro, não acrescia uma grama sequer à esquálida magreza, que o caracterizava. Findo o Festival, já era hora do banho. Lamentavelmente, então, via-se obrigado a protelar, uma vez mais, o estudo da física, cabalmente adiado para o dia seguinte.

 

                   Ideia de gênio: já que não era, ainda, a hora do lanche, comeria uma tigela daquela deliciosa saladinha de frutas ‒ feita pela fiel Alzinélia ‒, não como lanche da tarde, mas como segunda sobremesa do almoço.

 

                   Resolvido o dilema, marchou para a cozinha, postando-se diante da geladeira. Da salada de frutas, instantaneamente, lembrou-se dos generosos peitões de Alzinélia, a quem foi, certa feita, apresentado pelo buraco da fechadura do quartinho de empregados. Tal lembrança, forçosamente, estendia em mais cinco ou dez minutos os banhos diários.

 

                   Lançando-se à poltrona, com a salada de frutas quase a derramar da tigela, constatou, indignado, que a Sessão da Tarde passava intragável dramalhão romântico, dos anos cinquenta, com o ator Tyrone Power.

 

                   Aborrecido, com os frutos da salada a estufarem as bochechas, pegou o jornal, esparramado sobre o pufe, e passou a lê-lo, superficial e distraidamente. Quem garante não teria a sorte de encontrar, ali, matéria jornalística de conteúdo picante, acompanhada da competente foto de uma dona pelada?

 

                   Correndo os olhos, deparou-se com destacado anúncio, em letras garrafais, que assim dizia: 

 

 

Maria Joana Knijnick, solteira, procura pessoa do sexo oposto, para fim de casamento. O interessado deverá ser pessoa sensível e que tenha o hábito de oferecer flores.

End. Rua da Esperança, 43. 

 

 

                   Leu com interesse. Teria se equivocado? Era aquilo mesmo? A dona procurava um marido, por anúncio de jornal? Achou por bem conferir, lendo novamente o anúncio. Enquanto lia, sem que planejasse, sentiu erguer-se, no interior das calças de moletom, avantajado volume. Temeu, então, receber, ali, a súbita companhia de uma das irmãs. Cuidou, rapidamente, de encobrir o desajeitado volume com uma almofada, e nesta apoiou o jornal aberto.

 

                   “Maria Joana Knijnick (...)”. Seria ela um bagulho encalhado? Para procurar marido no jornal, ou era uma piadista, ou estava desesperada.

 

                   Pensou em visitar a dama do anúncio, mas, atentando para a ideia do casamento, desanimou. Casamento não era para ele. Não naquele momento. Dezessete anos não era idade para homem se casar. Sua avó, sim, celebrou bodas aos catorze, mas os tempos eram outros. Desejava, em verdade, algum dia, encontrar o grande e verdadeiro amor, mas, ao mesmo tempo, antes desse definitivo passo, tencionava aproveitar plenamente a vida, saciando-se às escâncaras. Só depois, então, já enjoado de sexo e de mulheres, mergulharia de cabeça na vida monogâmica do matrimônio.

 

                   Mas e se, porventura, com sua presença envolvente, e sua boa lábia, terminasse por virar a cabeça da senhorita Maria Joana, fazendo com que ela se desse conta das delícias e vantagens do sexo sem compromisso? Para impressioná-la, levaria consigo um caprichado buquê de perfumadas rosas vermelhas. Nesse caso, então, mataria, triunfante, dois coelhos com uma só cajadada: descartaria, em definitivo, a constrangedora virgindade, e materializaria o sonho, há muito sonhado, de se envolver com uma balzaquiana.

 

                   Viajava nesses projetos, quando lhe ocorreu que não contava com uma boa lábia. Longe disso. Frente a uma bela mulher, desgraçadamente, afinava, titubeava, amarelava e enrubescia. Também não tinha assunto com elas, já que política ‒ sua predileção ‒ era temática que costumava aborrecer as pessoas do sexo oposto.

 

                   Ponderou, então, que, de igual forma, os dotes físicos não lhe favoreciam. De fato, não era feio, mas os traços finos restavam encobertos, pelos dois lados da face, por compactas placas de purulentas espinhas, que desciam das costeletas até o queixo. Também o físico esquelético e branquelo, de varapau, não lhe conferia arrimo.

 

                   Seria, portanto, mais seguro, telefonar, sondar o terreno, antes de se aventurar na porta da anunciante. Pelo telefone, ganhava mais confiança, sentia-se mais inspirado e encorajado. Mas a sacana da senhorita Knijnick não informou o número telefônico. E se tudo não passasse de um bem armado trote?

 

                   Queimava, assim, os miolos, encharcados de testosterona, quando se lembrou da puída revistinha, que guardava no fundo da gaveta do armário, abaixo da pilha de camisas. Ocorre que já tinha ‒ não fazia meia-hora ‒ acabado de apelar para a velha revista. Não seria exagerada semelhante fixação?

 

                   Mas que diabos! Era homem, e saudável ‒ saúde transbordante ‒, e a tal revista era a Playboy, com a Zaira Zambelli nas páginas centrais.

 

                   Matou, com voracidade, a salada de frutas e correu para o quarto.

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Coluna do DIB quarta, 14 de dezembro de 2016

PREJUDICADA

PREJUDICADA

A. C. Dib

 

                   Corre a história em Teresina, na primeira metade do Século XX. Rogo ao leitor alguma paciência e certa compreensão. O texto não deve ser lido pela óptica do homem do Século XXI, eis que a cultura – provinciana – que o governa é aquela reinante no início do passado século – altamente machista e preconceituosa, portanto. Assim, espero não ser julgado: apenas relato os fatos – reais −, retratando o pensamento imperante naqueles idos longínquos.

                   O Estado Novo promovia, então, censo demográfico nacional, coletando, casa a casa, bairro a bairro, município a município, dados estatísticos de nossa população, como número de homens, de mulheres, de crianças e idosos, onde e como viviam os brasileiros, profissão, renda, condições sanitárias e de saúde e outros valiosos dados numéricos.

                   A jovem Maria dos Remédios, solteira e residindo com os pais, prendada e hospitaleira que era – além de inteirada do profissionalismo, da seriedade e da boa compleição física do jovem entrevistador – decidiu homenagear o ilustre e importante visitante.

                   Costumava, todas as tardes, preparar esmerado lanchinho para os pais, para si e para os habituais frequentadores de seu lar. Naquele dia, porém, segura de que, pela sequência, a próxima casa visitada pelo recenseador seria a sua, esmerou-se ainda mais no preparo da merendinha vespertina.

                   Forrou a mesa de jantar com a melhor toalha da casa, que era de linho, bordada e originária da Ilha da Madeira, adornando-a com a melhor porcelana – inglesa – de seus genitores, usada, exclusivamente, nas mais seletas situações sociais, e desencaixou do estojo de madeira a prataria espanhola.

                   Serviu pudim de laranja – chamado, no velho Piauí, de creme de laranja −, doce de buriti (do tradicional caixotinho, feito de talas da palmeira), além da suculenta sebereba de buriti (tomada líquida, com ou sem farinha), aluá, refresco de tamarindo, leite quente (com o bico da leiteira protegido por abafador), chá de capim cidreira, chocolate quente, arroz-de-leite (dito, também, arroz-doce), bolo frito (feito de tapioca), cuscuz de milho e cuscuz de arroz, goiabada, compota de caju, siricaia, banana frita (generosamente polvilhada com açúcar e canela) e a irresistível rosca salgada. Para arrematar, serviria licor de jenipapo, em delicados cálices de cristal da Boêmia, que faziam jogo com a licoreira.

                   Grande foi a surpresa do recenseador − senhor Nonato, assim o chamavam − ao se deparar com tão bela e tentadora mesa, e com o inusitado convite da anfitriã e de sua mãe para que ele as honrasse, acompanhando-as no lanchinho. Rapaz sistemático, senhor Nonato, a princípio, a pretexto de que estava a trabalho, buscou resistir, mas, frente à insistência e à simpatia de Remédios, terminou por dar ouvidos ao sofrido estômago que àquela altura da tarde já se punha a roncar.

                   Peremptoriamente, no entanto, não cedeu à proposta de interromper a entrevista para lanchar. Perdendo-se pela gula, um pouco atrapalhado com xícara, prancheta, colheres e com seus formulários e demais alfarrábios, ia, a um só tempo, mastigando e indagando, devorando e questionando. E lá ia o entrevistador, lançando ao ar suas perguntas e alguns grãos de farelo.

                   Encontravam-se, nesse momento, ambos sozinhos à mesa, já que o pai de Remédios ainda não havia regressado da labuta e sua mãe estava, juntamente com a empregada, a promover pequenas diligências na cozinha.

                   − Nome completo, por favor – falou Senhor Nonato, de boca cheia.

                   − Maria dos Remédios Beltrão Gouveia.

                   − Data de nascimento?

                   − Essa não é de bom tom, Senhor Nonato. Essa pergunta eu pulo.

                   − Pois que seja. Vamos, pelo momento, omitir essa informação. A senhorita trabalha?

                   − Faço o Normal e ajudo mainha aqui na lida.

                   − Estado civil?

                   Nesse momento, Remédios enrubesceu.

                   Frente à hesitação da moça, Senhor Nonato interrompeu a merenda, pigarreou, mirou-a e repetiu o questionamento.

                   − Estado civil, Dona Remédios? – disse, caneta tinteiro em riste, suspensa sobre o papel.

                   Remédios baixou a vista, revelando constrangimento. Timidamente, olhou em volta certificando-se de que não havia mais ninguém na sala além do Senhor Nonato.

                   − Guardamos rigoroso sigilo das informações coletadas, Dona Remédios! – disse Nonato, apercebendo-se da dificuldade de sua entrevistada. – Seu nome não será associado publicamente aos dados informados. As informações formam longas listas de estatísticas, entram para as tais estatísticas, compõem dados numéricos, não lhe comprometerão, a senhorita tem a minha palavra. E o recenseador, por dever de ofício, tal como o padre, guarda sigilo da pessoa de seus entrevistados, não os compromete, não os identifica. Fique, portanto, inteiramente segura e tranquila.

                   Escarlate como um pimentão e mirando os próprios pés, Remédios balbuciou, quase que a sussurrar:

                   − Prejudicada.

                   − Desculpe? – disse Nonato, apurando o ouvido.

                   − Prejudicada, Senhor Nonato.

                   − Prejudicada?!

                   − Sim! – respondeu Remédios, demonstrando tensão, mirando a porta da cozinha e com o indicador frente aos lábios.

                   − Mas como é isso, Dona Remédios? Prejudicada? Tal estado civil, respeitosamente, não existe. Não consta de nossa legislação civil. A senhorita, por certo, é solteira. Se não for, então não é senhorita, é senhora. Não sendo solteira, ou é casada ou viúva. Ah! É claro! Pode, ainda, não é muito comum, mas acontece, ser desquitada.

                   − Pois meu estado civil, Senhor Nonato, é prejudicada. É o que sou. Vou lhe narrar minha triste história, confiando em seu cavalheirismo e em sua total discrição.

                   Respirou fundo, munindo-se de coragem, e principiou a narrativa.

                   − Há algum tempo, inexperiente e ingênua que era, me deixei levar pela lábia de certo cabra safado, vivaldino, galanteador e sedutor. Pois o cabra me envolveu com seu bico doce, com suas histórias e promessas de amor e de casamento, com semelhante ardor que, igual, eu jamais vira. Tomada de intensa paixão e confiando plenamente em suas promessas de compromisso sério, terminei por me entregar. Ah, meu amigo. Grande foi a minha estupidez! Se arrependimento matasse... Pouco depois o sedutor, alegando negócios no Maranhão, viajou e fugiu. Nunca mais apareceu ou escreveu.

                   − Seu pai não o obrigou a reparar a falta, Dona Remédios?

                   − Meu pai desconhece a minha desgraça. Se tomar ciência, me coloca porta afora, com certeza. Tenho um noivo, Senhor Nonato, o Tibúrcio. Já noivamos há quase cinco anos. Tibúrcio deseja casar, mas eu vou enrolando, ganhando tempo. Se casar, tomando ciência de que não sou mais moça, Tibúrcio me devolve a meu pai e anula o casório. E papai me expulsa de casa. Se revelar a ele minha história, seguramente me rejeitará. Se me entregar a Tibúrcio ele, de qualquer forma, verificará que não sou mais moça, e me rejeitará. E mesmo assim, se não se aperceber de minha situação, de qualquer maneira, não aceitará mais me desposar: depois de me usar, sairá a procurar moça virgem pra casar.

                   Suspirou fundo.

                   − E essa é minha triste história, Senhor Nonato. Minha desgraçada história. Sou noiva eterna. Fiquei pro caritó. Meu estado civil, portanto, é o mesmo de outras pobres jovens mundo afora. Somos prejudicadas! – lamentou a desditosa Remédios.

                   − O senhor é servido de uma chávena de chocolate?

                   − Por favor, Dona Remédios.

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DIB domingo, 04 de dezembro de 2016

POLISSEMIA

POLISSEMIA

A. C.  Dib

 

 

Maria branda

que, com doçura,

planta,

junto ao banco de areia,

a palma branca,

que aplaudo.

 

Aplaudo Maria branca

sentada nua

no banco branco

daquela praça

cheia de graça,

digna de palma.

 

Alma minha

és tua Maria,

dona da planta

de folha longa

e perfumada, e a trajar

só um colar...

 

E eu, a olhar

e a lastimar

tua distância

espiritual,

mas, sempre, a colar

em tua sombra...

 

Maria manga,

zombeteira,

do enamorado, enxovalhado,

que enxuga lágrima

na própria manga,

e sangra, e sangra...

 

Maria Godiva

chupando manga.

e o meu pesar

a aumentar,

no velho peito

ardendo de despeito...

 

Maria corre

pelos campos em festa,

tal qual gazela,

fogosamente,

espevitada e despida,

febrilmente...

 

Folha de caderno

toda branca e sem rabisco

essa donzela

arisca,

mas, diz o ditado:

quem não arrisca...

 

Eu a pesar,

na balança do desejo,

prós e contras.

E a liberal Maria,

atordoante,

pelada e peluda!

 

Quadro setecentista

Árcade, sem bucolismo.

Total lirismo!

Quadro emoldurado

e pintado, com pimenta,

por Bocage.

 

Maria intensa,

de negra mata densa,

aos poucos me mata

e ensandece, e adoece,

e me emudece.

Misto de ardor e dor.

 

Maria anja,

cítrica laranja,

de blusa e saia

cor de laranja, e invisível.

Eu, insensível,

mas, inapelavelmente, cativo.

 

Maria tentação

do poeta tísico,

romântico e punheteiro.

Corpo de violão,

do qual lança mão

o primeiro aventureiro.


DIB segunda, 28 de novembro de 2016

DELEGADO SHAKESPEARIANO

DELEGADO SHAKESPEARIANO

A. C. DIB

 

                   O causo se passa em Manaus, na época áurea da borracha, princípio do Século XX, ou mais exatamente no célebre Teatro Amazonas.

                   O majestoso teatro, símbolo máximo do glorioso ciclo da borracha − que fez de Manaus notória e poderosa cidade brasileira −, foi inaugurado em 1896. Seus azulejos, importados de Portugal, convivem com peças – escadarias, corrimões, lustres e demais luminárias e outros adornos mais – trazidas da Itália. O egrégio teatro foi palco de grandes encenações dramáticas – majoritariamente francesas −, de memoráveis espetáculos e da apresentação de balés e de grandes orquestras sinfônicas. Todos – atores, tenores, músicos, bailarinos e seus espetáculos –, em regra, vinham da Europa diretamente para Manaus, para apresentação no Teatro Amazonas, sem passar por Rio ou por São Paulo.

                   Por essa época, meu avô Frutuoso, vivendo a grande aventura amazonense, conseguiu o cobiçado cargo de “fiscal do Teatro Amazonas”, o que lhe facultava assistir de graça as peças e demais espetáculos exibidos no suntuoso templo das artes. Presenciou, então, ali no teatro, bizarras e divertidas histórias, sendo uma delas a que narramos aqui.

                   Doutor Honorato Galhardo, delegado de polícia de Manaus, era um apaixonado pelo teatro. Cadeira cativa – rente ao palco – nas principais apresentações, o amor do policial pela arte era fato mui conhecido de todos os seus amigos.

                   Amâncio Pacífico, diretor teatral, sabedor da paixão do delegado pelas artes dramáticas, e devendo-lhe alguns favores, resolveu homenageá-lo. Bajulador que era, convidou o investigador a atuar em uma de suas peças. Ofereceu-lhe, então, uma modestíssima pontinha, em peça que iria estrear por aqueles dias. Sabia, confiante, que a ligeira participação não exigiria muito do bisonho ator de primeira viagem.

                   Honorato Galhardo, sensibilizado e, profundamente, honrado, aceitou de imediato o inusitado convite. Jamais havia encenado peça alguma, nem mesmo na escola. Homem de humilde origem, de pouco verniz, viu-se obrigado a trabalhar desde infante, lutando, aguerrido, pela sobrevivência. Aquilo para ele foi o coroar de uma incontida relação de amor com a beleza e a majestade do teatro.

                   O diretor Amâncio entregou-lhe o texto da peça, definindo seu papel. Doutor Galhardo comprometeu-se a decorar sua fala. Dedicado, estudou cuidadosamente o texto, ensaiando seu papel sozinho, frente ao espelho.

                   Aproximando-se a esperada estreia, Amâncio convocou o novato para o ensaio geral.

                   − Ensaio?! Dispensável! Estudei com afinco e com muito carinho meu papel, diretor. Modéstia à parte, não necessito ensaiar. No dia da estreia brilharei tanto que ofuscarei o ator principal! – disse com orgulho.

                   Chegando, então, o esperado dia, o delegado Galhardo, trajado com vestes do século XVII – botas, luvas, chapéu com plumas e de amplas abas largas, capa e espada na cinta −, era um dos mais empolgados e ansiosos.

                   De prontidão por trás das cortinas, no calor da encenação, sentiu tocarem seu ombro. Era o contrarregra, sussurrando-lhe ao ouvido:

                   − Doutor delegado, essa é a sua deixa! Pode entrar em cena!

                   Honorato Galhardo adentrou o palco, marchando com virilidade. Postando-se no meio do palco e perfilando-se, declamou tonitruante:

                   − Entra, tira o chapéu e faz uma mesura. Coloca o chapéu, puxa a espada da bainha até a metade, recolocando-a de novo na bainha. Faz novo cumprimento e sai! – bradou, encarando corajosamente a plateia.

                   Proferiu, assim, a tal “fala” e ali permaneceu parado, estático, majestático, a mirar altivamente sua plateia.

                   Os demais atores, frente ao inusitado da situação, vacilaram, parecendo atônitos e perdidos.

                   A plateia, apercebendo-se da gafe do improvisado ator, pôs-se a vaiar. E as vaias, gargalhadas e palmas, que começaram tímidas, foram crescendo em intensidade. Quando os demais atores – despertando do transe que lhes gelou, momentaneamente, os movimentos − se dispuseram a proferir suas falas, já era tarde: a balbúrdia era geral, enchendo por completo a ampla sala de espetáculos. E Honorato Galhardo ali permanecia, mudo e estático, tal qual estátua carnavalesca.

                   A direção não teve outro recurso: lançou-se mão do famigerado gancho, que, sem que as mãos que o operam aparecessem em cena, adentrou o palco, saindo lateralmente do pano, envolveu e fisgou o desastrado ator e o puxou, bruscamente, para trás das cortinas.

                   O teatro veio abaixo em ruidosos apupos, gritos e sonoras gargalhadas.


DIB terça, 22 de novembro de 2016

INUSITADO GANHA-PÃO

INUSITADO GANHA-PÃO

A. C. DIB

 

                   O causo se passa no interior piauiense, no início do Século XX. Por pudor – e por cautela, eis que o povo lá é bravo – julgamos de boa prudência omitir nomes.

                   Notório coronel da região, influente chefe político e senhor de muitas terras e homens, padecia, há muito, de estranho mal, caracterizado por vertigens, enjoos estomacais, anemia, apatia e calafrios. Queixava-se, ainda, de ouvir pequenos estalos e estranhos zumbidos.

                   Para sua sorte, o coronel contava com prestimoso médico, que o acompanhava quase que diariamente. Noites de sono bem dormidas, boa e saudável alimentação, passeios matinais, boas leituras, pescarias e ligeiras cavalgadas, em lombo de cavalo manso, enfim, o tratamento prescrito pelo devotado discípulo de Hipócrates era o mais prazeroso possível.

                   Praticamente, em todos os dias da semana – respeitado o sagrado descanso dominical, quebrado, apenas, nos casos de emergências −, seguia o bom doutor, montado em sua robusta mula, rumo à fazenda de seu mais ilustre e importante paciente, prestando-lhe o atendimento domiciliar.

                   De fato, no interior, a gente humilde local costumava pagar pelas consultas e diligências médicas com porco, galinha, carne de caça, peixes e cesta de frutos. E isso quando os honorários médicos não eram pagos com um caloroso abraço, um beija mão e um honesto “Deus lhe pague”.

                   O coronel, no entanto, generoso e agradecido, pagava regiamente a dedicação, a presteza e a respeitável sapiência de seu leal médico. Assim, o tratamento do coronel constituía sua principal fonte de renda. Os parcos caraminguás que recebia dos demais pacientes e consulentes, sozinhos, não fariam frente às suas polpudas despesas, já que mantinha seu filho mais velho na Capital da República, estudando medicina.

                   Passados alguns anos, esse estudante de medicina concluiu o curso, bacharelando-se. Apaixonado e idealista, o garboso e jovem médico fez absoluta questão de voltar à casa paterna, para trabalhar ao lado do pai. Tencionava dedicar e dirigir seus conhecimentos científicos aos mais pobres e necessitados, sonhando aliviar os males e sofrimentos da humanidade.

                   Certa feita, já atuando o jovem ao lado do calejado pai, foram convocados para socorrer, com urgência, o coronel, que enfrentava uma de suas mais agudas crises.

                   Como o pai se achava em povoado próximo, prestando atendimento, seu filho não titubeou: reuniu seus apetrechos, tomou da malinha e seguiu, de imediato, à fazenda do coronel.

                   Prestado o atendimento, o jovem regressou ao lar. Deparou-se, ali, com o pai – que, há pouco, também regressara de sua diligência médica −, ligeiramente tenso e ansioso, buscando, avidamente, notícias do ilustre paciente e da consulta.

                   − Não se preocupe, papai! – disse o rapaz, sorrindo e orgulhoso. − Creio que descobri a fonte de todos os malefícios que afligiam o senhor coronel. Após ouvi-lo e examiná-lo, retirei de seu ouvido um enorme e gordo carrapato. Acredito que, agora, eliminamos, em definitivo, suas tonturas, seus enjoos, seu mal-estar e o irritante zumbido que alegava ouvir.

                   − Pois meu filho – disse o pai, lívido – eliminaste, sim, a nossa fonte de renda! Foi aquele abençoado carrapato que custeou teus estudos na Capital. Oh, meu filho! – disse, desalentado. – O que fizeste? Aquele carrapatinho era o nosso ganha-pão! – suspirou.

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DIB quarta, 16 de novembro de 2016

DOM FANCISCO

DOM FRANCISCO

A. C. DIB

 

 

                        Coisa de cristão-novo. Fugindo do Velho Mundo, notadamente, das perseguições religiosas, judeus, convertidos ‒ na marra ‒ ao cristianismo, aportavam na acolhedora e segura costa brasileira, e abandonavam seus velhos e tradicionais nomes hebraicos, adotando nomes ‒ um pouco mais vulgares ‒ de animais e plantas. Daí os Leitões, Carneiros, Pintos, Oliveiras, Baratas, Leões, Coelhos, Pereiras e tantos outros mais, que pululam em nossa fauna e flora social. Não sei dizer se era este o caso de Francisco Rolla.

 

                        Conheci Francisco por intermédio de meus tios maternos, Calixto e Salim. Tal como meus tios, Francisco era um apaixonado por pescarias. Goianão, bonachão, boa prosa e muito espirituoso, grande, corpulento e claro, simples e de aspecto interiorano, mas muito antenado, Francisco era, para meus tios, bom amigo e companheiro de pescarias. Frequentou, por algum tempo, a casa de minha avó, na companhia de sua mulher, Dona Alzira, e de suas simpáticas filhas.

 

                        Certa feita, fui convidado a acompanhar meus tios em uma daquelas memoráveis pescarias. Não comungava do prazer que sentiam em dar banho na minhoca ‒ conforme diziam ‒, mas me via atraído pela expectativa de viver aventuras, além de amar o convívio íntimo com nossa rica natureza. Rumei, então, juntamente com meu pai, meus tios e meu primo Sérgio, para a esperada aventura pesqueira, não sem antes fazer-me acompanhar de boa leitura: como não sou de perder tempo, levei comigo A Descoberta da América Pelos Turcos, do imortal Jorge Amado.

 

                        Seguimos, então, para Cabeceiras de Goiás, minúsculo município goiano, próximo a Formosa. Ali, Tio Salim ‒ que cultivava, além do amor à pescaria, sérias pretensões políticas ‒, comprou um lote, construindo nele boa casa de alvenaria, próxima a caudaloso rio. Autêntico Clube do Bolinha, éramos, ao todo, sete cavalheiros, incluindo, aí, o indispensável Francisco Rolla.

 

                        Após um ou dois dias, ali passados, fomos visitados pelo vizinho, da casa ao lado da nossa. Dito vizinho ‒ a situação se fazia evidente ‒ também pertencia a um homogêneo grupo masculino de pescadores-de-fim-de-semana. Ruidosos os companheiros, eis que ouviam músicas sertanejas em volume máximo, acompanhadas de gargalhadas, de espalhafatosa conversação e de muita cerveja e cachaça.

 

                        O forasteiro bateu, sendo calorosamente acolhido. Era um homem de meia-idade, magricela, senhor de fartos bigodes muito bem cuidados, articulado, extrovertido e falastrão. Contou-nos, animadamente, fatos notáveis de suas pescarias, e de suas aventuras sexuais ‒ sempre relacionadas às proveitosas pescarias ‒, fazendo acompanhar as divertidas histórias, do respectivo gestual.

 

                        Antes, porém, ao adentrar o recinto, se deparou com o corpanzil de Francisco, que o recebeu, estendendo-lhe a calejada mão. O visitante, sem titubear, apertou, com honestidade, a mão de Francisco, dizendo:

 

                        ‒ Muito prazer! José Gallo! Gallo com dois éles ‒ falou, em tom professoral, e com o indicador da outra mão apontando para cima. ‒ Segundo pesquisa que, há muito, me dei ao trabalho de promover, meu Gallo nada tem a ver com a ave, o galináceo. Gallo é um nome de origem britânica, que significa tempestade, ventania.

 

                        Francisco, sacudindo lentamente, e apertando com força, a mão do convidado, respondeu:

 

                        ‒ O prazer é meu! Francisco Rolla! Rolla com dois éles! Segundo pesquisa que, há muito, me dei ao trabalho de promover, minha Rolla tem tudo a ver com a ave, a pomba. Rolla é um nome de origem portuguesa, que se refere a numerosas espécies de aves da família dos columbídeos, semelhantes aos pombos, porém menores.

                        ‒ Vá tomar banho! ‒ disse, de chofre, José Gallo, puxando a mão que apertava à de Francisco, e fazendo, com a outra mão, gesto indicando, ao interlocutor, a ação de ir, de seguir adiante.

 

                        Francisco, num só impulso, enfiou a mão no bolso, e sacou a carteira de identidade, exibindo, e apontando com o dedo, o nome ali grafado.

 

                        José Gallo, tomando a carteira em suas mãos, aproximou-a do rosto, mirando-a clinicamente. Depois, devolvendo o documento a Francisco, falou, embasbacado:

                        ‒ Cacete! Mas que baita coincidência!

 

                        Passados já vários anos ‒ há muito, não tenho notícias do amigo Chico Rolla ‒, nunca olvidei a hilária passagem.


DIB quinta, 10 de novembro de 2016

EU ACREDITAVA

EU ACREDITAVA

A. C. DIB 

A democracia é o pior dos regimes políticos,

com exceção de todos os outros.

WINSTON CHURCHILL 

Eu acreditava na política,

nos políticos,

nos homens,

nas promessas,

nas boas-intenções.

Eu acreditava em Contos-de-Fada.

Ditadura militar...

heróis e vilões,

maniqueísmo,

bandeiras a tremular,

fáceis opções.

A escolha era manjada.

Eu acreditava em Brasília,

vitrine política para o Brasil,

representação popular,

programas de governo,

consciência plena nas eleições.

Política sadia e imaculada.

Cheirinho de assepsia...

Aí, surgiu o Quinzinho

e lá se foram os meus sonhos,

murcharam os meus ideais,

restei deflorado, em minha virgindade política,

roubado, em minhas ilusões.

Abriram-se-me os olhos, à realidade malfadada.

Hoje, aprecio a política,

enquanto ciência...

acredito ‒ piamente ‒ na educação,

na indignação popular,

na livre informação,

acredito – com pavor ‒ nas revoluções,

acredito nas pressões,

e na massa organizada.

Outrora, inocente e idealista,

cético, por ora...

antes, jovem e apaixonado,

velho, agora, e acovardado...

não creio mais em Histórias da Carochinha

e nem em estórias-pra-boi-dormir.

Não creio no velho Quinzinho,

com seu paternalismo barato,

com seu topete cafona,

com suas obras faraônicas,

superfaturadas,

e com seus ‒ colossais ‒

desacertos gramaticais.

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DIB terça, 01 de novembro de 2016

ULYSSES

ULYSSES

A. C. Dib

  

            Não era grego e nem, tampouco, irlandês ‒ era paulista, quatrocentão ‒ mas também viveu aventuras épicas, combatendo, com seu vibrante gládio composto por palavras seguras e cortantes, hediondos gigantes ciclopes, cães infernais, hidras ferozes, dragões-de-sete-cabeças cuspidores de fogo e a magnética e infalível Medusa.

 

            Ativo no movimento estudantil, militante da UNE, bacharelou-se em Direito pela Faculdade de Direito – Largo de São Francisco ou Arcadas, como também é chamada – da Universidade de São Paulo.

 

            Foi professor – de Direito Internacional Público, de Direito Municipal e Direito Constitucional ‒ de algumas das melhores instituições de ensino superior do Estado de São Paulo, exercitando, ainda, a advocacia, com especialização em Direito Tributário. Viveu, igualmente, fase de cartola do futebol, como diretor-presidente do Santos Futebol Clube.

 

            Mas, indubitavelmente, foi na política que Ulysses se encontrou, e gravou ‒ a laser ‒ seu nome nas luzidias folhas de aço da recente história do Brasil.

 

            Deveras, “político de raça”, como costumava dizer, designando aqueles que amam a política e que fazem desta arte seu modus vivendi, Doutor Ulysses exercitou, por anos a fio, este nobre e honroso mister.

 

            Não obstante, sua política não era – jamais foi ‒ a política rasteira, chula, eleitoreira, fisiologista, demagógica e nepotista, ou a política das raposas e dos anões, a política dos caudilhos e coronéis, mas a alta política, a grande política, a construtiva e desapegada, a política dos idealistas, dos estadistas, dos patriotas, dos sonhadores, dos gigantes públicos, a política de Pedro II, de José Bonifácio, de Juscelino, de Péricles, de Disraeli, de Churchill e de Lincoln.

 

            Assim, foi Deputado Estadual, em 1947, e, depois, Deputado Federal em nada menos que onze legislaturas, de 1951 a 1995 (nesta última, não terminou seu mandato), elegendo-se, sempre, por São Paulo.

 

            Além disso, foi Ministro da Indústria e Comércio, do Gabinete Tancredo Neves, no curto período de nossa aventura mágica de parlamentarismo republicano.

 

            Mas Ulysses, em verdade, se notabilizou por sua ingente e destemida luta contra a ditadura militar. À frente do velho MDB – Movimento Democrático Brasileiro ‒ escreveu páginas imorredouras no célebre “jogo de avanços e recuos” contra a ditadura – jogo este, à época, perigosíssimo de se jogar, custando, a uns, a vida, a outros a liberdade e, a outros mais, a cassação dos direitos políticos.

 

            Em 1973, “anticandidato” a presidente da República, disputou eleição no viciado e fatídico Colégio Eleitoral, sendo que, em verdade, valeu-se da chamada anticandidatura para denunciar as mazelas da ditadura, por todos os rincões do País.

 

            Findo o bipartidarismo, converteu seu querido MDB em PMDB, permanecendo, aguerrido, a liderar na trincheira oposicionista.

 

            Tinha sempre consigo, nos embates e refregas contra a truculenta ditadura, os inseparáveis escudeiros Freitas Nobre e Humberto Lucena, respectivamente, líderes do MDB na Câmara dos Deputados e no Senado.

 

            Foi o inconteste comandante da memorável Campanha das Diretas Já, que clamava por eleições diretas para presidente, tendo a seu lado, naquelas históricas jornadas, os não menos saudosos, Teotônio Vilela – que, pouco antes do início da inesquecível campanha cívica, perdeu cruenta batalha contra o câncer – Tancredo Neves, Franco Montoro, Mário Covas, José Richa e outros brasileiros de estatura moral gigante, movidos do mais lídimo ideal democrático.

 

            Soçobrando a Emenda Dante de Oliveira, que reinstituía a eleição direta para presidente, o Deputado Ulysses viu diluir seu sonho de galgar a presidência, eis que, das articulações vitoriosas, brotou formada a Chapa Oposicionista Tancredo/Sarney, para disputar, no Colégio Eleitoral, contra Paulo Maluf, a derradeira eleição indireta de Presidente do Brasil.

 

            Posteriormente, porém, na Assembleia Nacional Constituinte, então convocada e eleita, Ulysses se tornou tri-presidente: Presidente da aludida Assembleia Nacional Constituinte, Presidente da Câmara dos Deputados e Presidente do Partido do Movimento Democrático Brasileiro.

 

            Legou ao Brasil e a seu povo a Constituição de 1988, que batizou de Constituição Cidadã, genuína campeã, de todas as Cartas nacionais, de democracia e liberdade, e, mesmo prolixa, modelo para o mundo.

 

            Candidato a presidente em 1989, terminou derrotado, logo no primeiro turno daquela eleição.

 

            Curiosamente, mesmo reverenciando – era, em verdade, quase que adoração – o combativo Ulysses, não votei nele para presidente: engajei-me na campanha de Guilherme Afif Domingos – que, igualmente, restou vencido ‒, completamente arrebatado por seu discurso liberal.

 

            Já no segundo turno da disputa eleitoral, figurando, como candidatos, Lula e Collor ‒ este o vencedor ‒, xinguei a ambos – a cédula eleitoral era de papel, com o nome dos candidatos, para ser marcada à caneta ‒ e, abaixo dos nomes daqueles, grafei e marquei o nome de Ulysses, registrando, ao lado: “o guerreiro da democracia”. Abaixo, assinei, escrevi por extenso meu nome e, por fim, o número de meu registro na Ordem dos Advogados do Brasil.

 

            Todos os presentes estranharam a minha prolongada permanência atrás da urna, eis que o eleitor apenas marcava um singelo “x” na quadrícula posta à frente do nome dos candidatos. Hoje, o processo eletrônico não admite mais semelhantes ginásticas e proezas.

 

            Pouco antes de sua morte, Ulysses liderou os congressistas na luta – abraçada, com paixão, por toda a nação ‒ pelo impeachment de Fernando Collor.

 

            Aproximando-se o infalível impedimento, Collor, tomado de ira e desespero, atacou duramente o Senhor Diretas Já, chamando-o, dentre outras coisas, de velho gagá. Ulysses ‒ incomparável frasista que era – devolveu:

 

            ‒ Velho sim, mas não velhaco. Quem dorme com criança amanhece mijado! ‒ mandou, em alusão à juventude do Imperador/Presidente.

 

            Ulysses desapareceu em um acidente de helicóptero, ocorrido no litoral de Angra dos Reis, juntamente com sua mulher e companheira da vida toda, Dona Mora, com o Senador Severo Gomes e seu cônjuge e com o piloto.

 

            De todos os que morreram, naquele trágico sinistro, o corpo de Ulysses foi o único não encontrado. Afinal, apenas a profundeza abissal do vasto oceano seria ampla e digna o suficiente para sepultar um herói e gigante de estatura e envergadura moral como a dele.

 

            Homem incomum e grandiloquente como era, não poderia morrer de velho, no leito; necessariamente, tinha que encontrar morte incomum e grandiloquente, à sua altura.

 

            Tive a oportunidade de cruzar com meu ídolo por duas vezes distintas: uma em solenidade ocorrida na sede brasiliense da Ordem dos Advogados do Brasil, e, outra feita, em convenção nacional do PMDB, em Brasília. Em ambas as ocasiões não lhe apertei a mão: quedei-me mudo e inerte, limitando-me a observá-lo, tomado de emoção e acanhamento.

 

            Privilegiado fui, ainda, eis que o vi discursando, do alto de um palanque, em comício da campanha das Diretas Já, realizado em Brasília, próximo à Torre de Televisão. Nessa feita, quando o orador se posicionou à frente, para falar, bradei, a plenos pulmões:

 

‒ U-l-y-s-s-e-s!

 

            Meu pai, ao contrário, em determinado evento, teve a oportunidade de conversar – longamente ‒ com ele. Ulysses, aliás, era muito bom papo. Disse, então, meu pai, a seu interlocutor:

 

            ‒ Deputado, meu filho tem verdadeira adoração pelo senhor! O Senhor nem imagina. Fico até enciumado.

 

             Pois, então, leve o rapaz a meu gabinete, na Câmara, para me conhecer ‒ respondeu Ulysses. E aproveitando a deixa, indagou:

 

            ‒ E você? De quem é que você gosta?

            Meu pai respondeu gracejando, mas com honestidade:

            ‒ Deputado, o senhor me perdoe, mas eu sou é malufista! ‒ disse, rindo-se.

            Ulysses não titubeou:

            ‒ Não lhe gabo o gosto!

 

            Ulysses Silveira Guimarães nasceu no dia 6 de outubro de 1916, em Itaqueri da Serra, Itirapina, São Paulo, e faleceu no litoral de Angra dos Reis, litoral fluminense, em 12 de outubro de 1992.


DIB terça, 25 de outubro de 2016

BRASÍLIA

BRASÍLIA

A. C. DIB

 

                        Vias largas, desertas, a perder de vista. Prédios uniformes, simétricos, alinhados. Monumentos grandiosos, brancos, futuristas; figuras sem rosto, sem expressão, frias. Palácios monumentais, leves, belos, singelos, parecendo flutuar no espaço, ornados, todos eles, com os característicos arcos, maravilha proporcionada pela geometria. A beleza da linha reta, simples, delicada, despida de rebuscamentos, como parede caiada. Antítese do rococó.

 

                        Terrenos baldios, vastos, livres de habitações e pessoas, tomados pelo mais puro e selvagem Cerrado. Amplos tapetes verdes, mar sólido de gramíneas, apresentando, aqui e ali, espatódeas, sibipirunas, mongubas, flamboyants, barrigudas, paineiras, copaíbas, paus-ferro e ipês (estes roxos, brancos, róseos e amarelos).

 

                        Calçadas de concreto, algumas placas íntegras, outras trincadas, ladeadas de frondosas alamedas de árvores. Pouco trânsito de veículos, pouquíssimo trânsito de pessoas. Paisagem evocando antigos filmes de ficção científica, que tratavam de cidades desertas frente à extinção da raça humana, com seus edifícios e templos de arquitetura futurística, tomados de ventos e pássaros, com a hera – atrevida ‒ a escalar as paredes.

 

                        Terra vermelha, seca, infértil, ácida, poeirenta, fazendo surgir, aqui e ali, lá e cá, o popular lacerdinha, pequeno e simpático redemoinho que, facilmente, surgia a brincar, rodopiando e assoviando e, facilmente, morria, consumindo-se, apagando-se. Bando de pombos a ciscar pelo chão, tal qual galinha caipira, e, no topo das árvores, o piar deselegante dos amarronzados pardais. Setor de casinhas geminadas, coladas umas às outras, modestas, devassadas, despidas de muros e cercas; marcadas pelo cobogó. Bairro nobre, pontilhado por nobres mansões, banhadas pelas águas do plácido e azul Lago Paranoá. A alternância de verões de chuvas intensas e contínuas, aguaceiros sem fim, seguidos, tempos depois, da estiagem fria dos invernais meses de junho e julho.

 

                        No céu, o mais lindo pôr do sol, tingindo o horizonte de intenso vermelhão, rubor mesclado de tons amarelados e alaranjados, caliente e envolvente, autêntico Manabu Mabe. Disse, uma vez, um dos muitos desafetos de Brasília: “Um céu em busca de uma cidade”. E, a cercar-nos, o agreste Cerrado, de aspecto áspero e seco, com suas árvores baixas e enegrecidas, de casca grossa e folhas largas e espessas, avermelhadas pela densa poeira. Cupins a lembrar castelos liliputianos; casas de João-de-Barro no galho das árvores; no solo capim de pendões altos, pontilhados por sempre-vivas e dentes-de-leão. Pés de pequi, araticuns, bacuparis e lobeiras. Carrapichos. Matas ciliares, mais fechadas que o esparso cerrado, com árvores mais altas e mais frondosas, beirando córregos de águas cristalinas, correndo por entre cascalhos e leitos de argila, com lambaris escuros, deslizando à flor d’água.

 

                        A Brasília de minha infância guarda sérias diferenças da atual. Não tínhamos, então, superpopulação, engarrafamento, congestionamento, poluição, sequestros-relâmpagos, politicagem e politicalha.

 

                        Época da inocência, tempo da despreocupada simplicidade. Não dispúnhamos da fartura que hoje nos envolve, mas éramos mais felizes em nossa frugal escassez. Como não convivíamos com tanta tecnologia, tanto luxo, sofisticação e abundância, exigíamos menos, esperávamos menos, desejávamos menos. Sofríamos de menos dramas de consciência, menos problemas psicológicos, menos estresse e fobias. Morríamos menos de câncer e do coração. Não enfrentávamos AIDS. Igrejas eram igrejas, não máquinas de caça-níquel, empresas movidas a cupidez, regidas por políticos milionários e vivaldinos. Não havia tanta competição.

 

                        Brasília! Mui amada Brasília!

 

                        Amiga do peito, confidente, solidária, companheira! Mãe amantíssima e generosa! Irmã mais velha e experiente, a liderar-me e a vigiar-me! Mulher leal, dedicada e dadivosa! Amante curvilínea, linda, jovem, fogosa.

 

                        Estou em Brasília como Brasília está em mim. Brasília forjou-me. Sou o que sou – seja lá o que for! – pela força e pela ação de Brasília à minha volta, sobre mim, dentro de mim. Sou o que sou pela influência de Brasília, seja para o bem, seja para o mal.

 

                        Com suas rasgadas veredas, amplas, rigorosamente planas, a perder de vista, tendo por cobertura um céu límpido, de um azul penetrante e inebriante, com seus horizontes descortinados, vastos, largos, ilimitados, limpos, Brasília remetia-nos à ideia do absoluto, do inatingível, do estupendo, colossal, majestoso, do etéreo. Traduzia a pequenez do indivíduo, frágil, raquítico, passageiro, leve, diante do sublime; frente ao poder supremo. Era o paquiderme, em seu passo firme, a encarar, com altivez, enfado e despreocupação, a modesta formiguinha, transitando nervosa em uma de suas unhas. Brasília remetia-nos à ideia de Deus.

 

                        Melancólica desolação contrastando com sensação de liberdade. A liberdade do vento veloz, a percorrer o vazio, fazendo tremular a bandeira; balançando as longas madeixas de farta cabeleira. A liberdade do orgulhoso leão, trilhando, a passos largos, os prados da Savana Africana. A liberdade de poder mirar o horizonte, e não encontrar obstáculos, e visualizar o futuro.

 

                        Disseram-me que dei os meus primeiros passos nas areias da Praia de Copacabana. Curiosamente, tenho ainda – um ano de idade, vejam só! – lembranças desse período. Vagas memórias ‒ é bem verdade ‒, flashes fugazes, envoltos em névoa, desfocados, sem nitidez. Lembro-me de meu pai dar um nó nas duas pontas de minha camisa ‒ vestida desabotoada ‒, na altura do umbigo, depois de fazer o mesmo com a dele, para que ela não encostasse no calção de banho molhado. Depois, então, nos sentamos, calmamente, em um dos banquinhos do calçadão, para ver as cariocas desfilarem.

 

                        Acredito que tomávamos sorvete ‒ meu pai lambendo sua casquinha e me ajudando com a minha.

 

                        Tenho um sonho recorrente. Sonho, com reiterada frequência, que me encontro no ponto extremo de uma das Asas do Plano Piloto de Brasília. Às minhas costas, os últimos prédios da última Quadra da Asa, e, à minha frente, o vasto horizonte, livre de edificações, milimetricamente plano, fugindo do alcance da vista. Estou no limite, na fronteira da Asa ‒ seja Sul ou Norte ‒, marco do ponto em que termina Brasília e começa o descampado, restando, apenas, adiante o imensurável gramado, com suas árvores jovens de tronco fino. Sinto, então, um grande conforto em meu coração. Sinto o chão aos meus pés, o sangue a fluir em minhas veias, palpitando de emoção. Idêntica sensação que sentia ao passear pela Praça dos Três Poderes, coração pulsante do Brasil.

 

                        Gostava de visitá-la, acompanhado de alguma namorada, nas noites limpas de lua cheia. Sentia a magia e a mística daquele lugar, excitante, penetrando-me por todos os poros. Seu piso de paralelepípedos formando desenhos em preto e branco, seus banquinhos e monumentos, sua importância e majestade.

 

                        Neste meu repetido sonho, sinto algo que não consigo expressar. Acordo, sempre, emocionado, feliz, realizado.

 

                        Sinto Brasília!

 N. E. Antônio Carlos Dib de Sousa e Silva, ou, simplesmente, A. C. Dib, é meu parente muito próximo. Se fosse nos tempos de antigamente, de Dom João Charuto, me chamaria de tio, pois é filho de um meu primo legitimo, e neto do Tio Fruto, irmão de meu pai. Nascido em Brasília, nos tempos pioneiros, seus genitores, ele, Procurador da Justiça, e ela, Servidora Federal, criaram-no em ambiente dominado pelo estudo e pelo amor à Literatura. Bacharelado em Ciências Jurídicas, com especialização em Direito Público e Ciência Política, é Advogado Militante e Procurador Legislativo da Câmara Legislativa do Distrito Federal. Publicou os livros O Sistema Parlamentarista de Governo e Frutuoso & O Velho Monge de Barbas Brancas, já estando no prelo os originais de seu próximo rebento literário, Receitas da Vovó Salima, com preciosidades das cozinhas árabe e goiana. Este Almanaque só tem muito a ganhar com a riqueza de seus textos, a partir de hoje, quando assume o posto de um de seus colunistas.

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