RIO — Durante a passagem de som do show de lançamento de seu primeiro disco, em 2003, Maria Rita perdeu momentaneamente fôlego, pensamento e melodia. Era o peso do palco do Canecão, casa que já havia recebido sua mãe, Elis Regina, e outras lendas da MPB, de Gal Costa a Gil, de Maysa a Zeca Pagodinho. Fechado desde 2010, o espaço carioca onde se escrevia a história da música brasileira (segundo a frase de Ronaldo Bôscoli estampada numa das paredes) ganha agora um sopro de esperança, com promessas da prefeitura de resolução de um impasse jurídico e o início da discussão, pela UFRJ, sobre o projeto de um novo equipamento cultural no local.
Metropolitan:Como o fechamento da casa marcou o fim de uma era de shows memoráveis no Rio
O Canecão abriu as portas em 1967, num terreno da UFRJ na Avenida Venceslau Brás, em Botafogo. Em 2010, a batalha judicial que se arrastava desde os anos 1970 entre a instituição e o antigo inquilino, o empresário Mário Priolli, culminou na vitória da universidade. Fechada desde então, a casa de shows ainda não pode reabrir por pelo menos dois motivos: a estrutura extremamente comprometida do prédio e uma restrição prevista na lei de zoneamento municipal de 1976, que impede a construção de estabelecimentos de diversão naquele endereço.
— Vamos mudar a lei. Já mandei preparar o projeto e iremos enviá-lo à Câmara ainda no início do ano legislativo — promete Paes.
Estudo do BNDES
É o primeiro passo para a reabertura do espaço, objeto de estudo encomendado pela UFRJ ao BNDES em 2018, cujo resultado chega à universidade este mês. O estudo buscou identificar possíveis parcerias com empresas privadas para o uso do terreno do Canecão e de outros imóveis da instituição. Em contrapartida, os vencedores das licitações deverão assumir reforma e construção de restaurantes e moradias estudantis. A concessão está prevista para até 50 anos.
— O trabalho do BNDES define um modelo básico de equipamento cultural para o Canecão. A ideia é que seja mais do que uma casa de shows. Queremos algo como a Casa da Ciência, com exposições e dias da semana destinados a eventos da universidade, como colações de grau e espetáculos dos cursos da área teatral — diz Denise, que pretende começar a discutir o formato e o novo nome do espaço a partir do mês que vem.
Não há previsão de quanto será necessário para reconstruir o Canecão. Segundo a reitora, a demolição de parte da estrutura será inevitável. Mas ela pretende preservar o mural de 32 metros criado por Ziraldo, a ser restaurado por alunos da Escola de Belas Artes.
— Quero inaugurar o espaço antes do término do meu mandato, em 2023 — planeja.
Memórias
A desconfiança com as promessas de retorno não é maior que a esperança do cantor Elymar Santos, que há anos evita passar em frente ao Canecão. Ele, que vendeu carro e apartamento para alugar aquele palco por uma noite, em 1985 — num episódio que entrou para a história do Rio —, diz que não aguenta a saudade.
— O último show foi da Bibi Ferreira. Na plateia, estávamos eu, Fernanda Montenegro, Simone, todos sem acreditar no que estava acontecendo. Pensava que em um mês seria reaberto. Mas fechou de vez, com temporada minha marcada. Me senti órfão, o Canecão tem um quê que ninguém nunca vai saber o que é — diz.
Foi nesse “palco mágico”, nas palavras de Elymar, que Roberto Menescal subiu depois de oito anos sem se apresentar, a convite de Gal Costa, num show dela em 1980. À época, Menescal era diretor da Polygram e queria entregar um disco de ouro à cantora. Mas quem fez a surpresa foi Gal: apontou para um violão no canto do palco e pediu que o fundador da Bossa Nova desse uma palinha da música “Faceira”.
— Nem violão em casa eu tinha mais. Pela primeira vez eu vi o Canecão de cima do palco — recorda o artista.
Já Paulo Ricardo não se esquece do dia em que foi surpreendido por Tom Jobim em seu camarim:
— Estava em temporada com o RPM, lá por 1986, quando, uma noite, Tom Jobim entra acompanhado do filho adolescente, dizendo que queria um autógrafo. Eu falei: “Não, pelo amor de Deus, primeiro o seu.” Toda vez que entrava ali era especial, porque foi no Canecão que assisti ao primeiro show da minha vida: Roberto Carlos.
Zeca Pagodinho, que acaba de disponibilizar vídeos inéditos da gravação do disco “Zeca Pagodinho ao vivo”, de 1999, em seu canal do YouTube, revela que, no início, não queria se apresentar na casa.
— Eu pensava que não tinha nada a ver com o Canecão. Mas a fila do primeiro dia estava dobrando a rua, e meu empresário falou: “Vamos gravar um disco ao vivo amanhã.” Era um lugar maravilhoso. Foi a partir dali que passei a me apresentar em casas de shows. Se reabrir, é claro que eu vou.
Maria Rita endossa:
— A casa tinha uma energia ímpar. As pessoas entendiam que, se o show funcionasse no "Caneco", funcionaria em qualquer lugar. Sem querer soar saudosista, mas só quem viveu aquilo ali entende.