O CHAPÉU
Arthur Azevedo
O Ponciano, rapagão bonito,
Guarda-livros de muita habilidade,
Possuindo o invejável requisito
De uma caligrafia
A mais bela, talvez, que na cidade
E no comércio havia,
Empregou-se na casa importadora
De Praxedes, Couceiro & Companhia,
Casa de todo Maranhão credora,
Que, além de importadora, era importante,
E, se quebrasse um dia,
Muitas outras consigo arrastaria.
Do comércio figura dominante,
Praxedes, sócio principal da casa,
Tinha uma filha muito interessante.
O guarda-livros arrastava-lhe a asa.
Começara o romance, o romancete
Num dia em que fez anos
E os festejou Praxedes co'um banquete,
Num belo sítio do Caminho Grande,
Sob os frondosos galhos veteranos
Que secular mangueira inda hoje expande.
A mesa circular, sem cabeceira,
Rodeando o grosso tronco da mangueira,
Um belíssimo aspecto apresentava:
Reluzindo lá estava
O leitão infalível,
Com o seu sorriso irônico,
Expressivo, sardônico.
Sabeis de alguma coisa mais terrível
Do que o sorriso do leitão assado?
E nos olhos, coitado!
Lhe havia o cozinheiro colocado
Duas rodelas de limão, pilhéria
Que sempre faz sorrir a gente séria.
Dois soberbos perus de forno; tortas
De camarão, e um grande e majestoso
Camorim branco, peixe delicioso,
Que abre ao glutão do paraíso as portas;
Tainhas ouríchocas recheadas,
Magníficas pescadas,
E um presunto, um colosso,
Tendo enroladas a enfeitar-lhe o osso,
Tiras estreitas de papel dourado.
Compoteiras de doce, encomendado
A Calafate e a Papo Roto; frutas;
Vinho em garrafas brutas.
Amêndoas, nozes, queijos, o diabo.
Que se me meto a descrever aquilo,
Tão cedo não acabo!
O Ponciano fora convidado:
Quis o velho Praxedes distingui-lo.
Fazia gosto vê-lo
Convenientemente engravatado,
De calças brancas e chapéu de pelo,
E uma sobrecasaca
Que estivera fechada um ano inteiro
E espalhava em redor um vago cheiro
De cânfora e alfavaca.
Mal que o viu, Gabriela
(Gabriela a menina se chamava)
Lançou-lhe uma olhadela
Que a mais larga promessa lhe levava...
Como que os olhos dele e os olhos dela
Apenas esperavam
Encontrar-se; uma vez que se encontravam,
De modo tal os quatro se entendiam
Que, com tanto que ver, nada mais viam!
Apesar dos perigos,
Por ninguém o namoro foi notado.
Pois que o demônio as coisas sempre arranja.
Praxedes, ocupado,
Fazia sala aos ávidos amigos;
A mulher de Praxedes, nas cozinhas,
Inspecionava monstruosa canja
Onde flutuavam cinco ou seis galinhas
E um paio, um senhor paio,
E os convivas, olhando de soslaio
Para a mesa abundante e os seus tesouros
Não tinham atenção para namoros.
Quando todos à mesa se assentaram,
Ele e ela ficaram
Ao lado um do outro... por casualidade,
E durante três horas, pois três horas
Levou comendo toda aquela gente,
Entre as frases mais ternas e sonoras
Juraram pertencer-se mutuamente.
Quando na mesa havia só destroços,
Cascas, espinhas, ossos e caroços,
E o café fumegante
Circulou, – nesse instante,
Eram noivos Ponciano e Gabriela.
– Como, perguntou ela,
Nos poderemos escrever? Não vejo
Que o possamos fazer, e o meu desejo
É ter notícias tuas diariamente.
Respondeu ele: – Muito facilmente:
Quando a casa teu pai volta à noitinha
Traz consigo o Diário, por fortuna;
Escreverei com letra miudinha,
Na última coluna,
Alguma coisa que ninguém ler possa
Quando não esteja prevenido. – Bravo!
Que bela ideia e que ventura a nossa
Porém se esse conchavo
Serve para me dar notícias tuas,
Não te dará, meu bem, notícias minhas. –
Mas não esteve com uma nem com duas
O namorado, e disse:
- Temos um meio. – Qual? Não adivinhas?
Teu pai usa chapéu. – Sim... que tolice!
– Ouve o resto e verás que a ideia é boa;
Um pedacinho de papel à-toa
Tu meterás por baixo da carneira
Do chapéu de teu pai; dessa maneira
Me escreverás todos os dias... – úteis.
Oh!, precauções inúteis!
Durante um ano inteiro
O pai ludibriado
Serviu de inconsciente mensageiro
Aos amores da filha e do empregado.
– Até que um dia (tudo é transitório,
Até mesmo os chapéus) o negociante
Entrou de chapéu novo no escritório.
Ponciano ficou febricitante!
Como saber qual era o chapeleiro
Em cujas mãos ficara o chapéu velho?
Muito inquieto, o brejeiro
Ao espírito em vão pediu conselho;
Dispunha-se, matreiro,
A sair pelas ruas, indagando
De chapeleiro em chapeleiro, quando
O chapeleiro apareceu!... Trazia
O papelinho que encontrado havia!
Atinara com tudo o impertinente
E indignado dizia:
– Sou pai de filhas!... Venho prontamente
Denunciar uma patifaria!
O hipócrita queria
Mas era, bem se vê, cair em graça
A um medalhão da praça.
O pai ficou furioso, e, francamente,
Não era o caso para menos; houve
Ralhos, ataques, maldições, et cetera;
Mas, enfim, felizmente
Ao céu bondoso aprouve
(O rapaz tinha tão bonita letra!)
Que não fosse a menina pro convento,
E a comédia acabasse em casamento.
Ponciano hoje é sócio
Do sogro, e faz negócio.
Deu-lhe uma filha o céu
Que é muito sua amiga
E está casa não casa;
Mas o ditoso pai não sai de casa
(Aquilo é balda antiga)
Sem revistar o forro do chapéu.