NA HORTA
Arthur Azevedo
Morava o barão da Cerveira num belo palacete que, a pedido da baronesa, mandara edificar no centro de uma grande chácara do Andaraí Grande.
A baronesa, as meninas e os meninos, seus filhos, desfrutavam a beleza e o conforto da encantadora vivenda, ele não, porque, apesar de enriquecido e quarentão, conservava o costume, adquirido desde os primeiros tempos da sua vida comercial, de sair de casa pela manhã e só voltar à noite, para dormir.
Os domingos e dias santificados, em vez de gozar as delícias do descanso, passava-os o barão a examinar e pôr em ordem contas e outros papéis de umas tantas associações, que eram, como dizia ele, a sua cachaça.
– És um esquisitão!– Observava continuamente a baronesa. – Não valia a pena comprarmos esta chácara!
– Gozando-a vocês, gozo-a eu!
Entretanto, num belo domingo de sol, sentiu o barão desejos de percorrer os seus domínios, e fê-lo, com espanto da família e do chacareiro, o José, que estava acocorado diante de um grande canteiro de repolhos, e se levantou, surpreso e respeitoso, quando viu aproximar-se o patrão.
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Antes do baronato, o barão chamava-se modestamente Manuel Barroso.
Nascera em Portugal, numa aldeola do Minho, que não figura nos compêndios de geografia. Veio aos dez anos para o Brasil, num navio de vela, entregue aos cuidados de um homem de bordo, e consignado a uma casa comercial do Rio de Janeiro.
Não conhecera os carinhos maternos: contava apenas três anos quando perdeu a mãe. O pai, que ficara viúvo e com dois filhos, confiou-o e mais o irmão a uma família, que pouco se preocupou com a educação dos dois rapazes.
– O mais velho irá para o Brasil, sentenciava o pai; o mais novo há de ser padre, se Deus nos der vida e saúde!
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Veio o Manuel para o Brasil e teve a felicidade de encontrar excelentes amos, que o obrigaram a aprender a ler por cima e fazer as quatro operações.
Mal aprendera a escrever, o pequeno pegou na pena e fez uma carta ao pai, pedindo que lhe mandasse novas suas e do mano, mas tanto essa como outras ficaram sem resposta.
Com aqueles simples conhecimentos – ler, escrever e contar – entrou na vida, e não foram necessários outros para que lhe sorrisse a fortuna. A sua inteligência, realmente notável, supria tudo. Não havia na praça farejador de bons negócios que lhe levasse as lampas; mas o que contribuía, principalmente, para fazer dele um dos negociantes mais estimados do Rio de Janeiro, era o escrúpulo honrado com que sempre se havia em todas as suas relações comerciais. Ao contrário do que geralmente se observa, Manuel Barroso não se satisfazia apenas com ganhar dinheiro; tinha muito prazer em dá-lo a ganhar aos outros.
O grande caso é que o nosso aldeão, aos vinte anos, estava perfeitamente encarreirado, como se costuma dizer. Aos trinta, era rico; e, aos quarenta, riquíssimo, tendo percorrido já toda a escala do medalhão comercial: diretor de bancos e companhias, provedor de irmandades, ministro de ordens terceiras, comendador, conselheiro e barão. Não lhe faltava nada, nem mesmo o retrato a óleo.
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Aos trinta anos, casou-se com uma moça, pobre – uma excelente senhora brasileira, que não poderia encontrar melhor esposo –, e, logo depois de casado, resolveu dar, em companhia de sua mulher, um passeio à pátria, e visitar o lugarejo onde nascera, e do qual saíra havia já vinte anos.
Não achou lá ninguém. O pai falecera pouco depois da sua vinda para o Brasil, e o irmão abandonara o lugar, ignorando todos o rumo que tomara. A própria família, que o acolhera depois da morte da mãe, tinha desaparecido. Finalmente, o Manuel encontrou na povoação apenas dois ou três companheiros de infância, que o supunham morto. A sua viagem foi desoladora.
Entretanto, o "brasileiro" não saiu da aldeia sem deixar nas mãos do pároco a soma precisa para a reconstrução da capela em que fora batizado, e outra soma, ainda maior, para ser distribuída pelos pobres.
Voltando ao Brasil, o venturoso casal começou a ter filhos que foi um louvar a Deus; não se passaram dez anos sem oito batizados; mas o destino, mostrando-se a Manuel Barroso, mais que aos outros homens, desejoso de equilibrar e harmonizar entre si as circunstâncias, aumentava-lhe os haveres ao mesmo tempo que os filhos, de sorte que a verdadeira prosperidade do nosso homem começou com a sua prolificação.
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A manifestação mais flagrante e ostensiva da sua fortuna era aquela magnifica propriedade do Andaraí Grande, em cuja chácara o deixamos percorrendo pela primeira vez os canteiros de uma horta opulenta.
Dissemos que o hortelão se levantara surpreso e respeitoso ao avistar o patrão.
O pobre homem descobriu-se humildemente e ficou um tanto curvado, a rolar o chapéu entre as mãos.
O barão deu-lhe um bom-dia afável dizendo-lhe:
– Cubra-se, homem! Olhe que está sol!
E ia passando; mas na fisionomia simpática do hortelão brotou um sorriso que o fez parar.
– Então? Trabalha-se?
– Alguma coisa, s'or barão, alguma coisa.
– Mas hoje é domingo.
– Isso não quer dizer nada.
– Há quanto tempo está você cá em casa?
– Saberá vossoria que haverá oito meses pelo São João.
– Está satisfeito?
– Se estou satisfeito! Não, não devo estar?! A s'ora baronesa e os meninos são tão bons para mim.
– Você é de Portugal ou das Ilhas?
– Sou do Minho.
– Também eu. De Braga ou de Viana?
– De Viana.
– Também eu.
– Nasci ali perto da Vila Nova de Cerveira, num lugarito chamado de São Miguel das Almas.
– Em São Miguel? Como se chama você?
– José Barroso.
– Oh, diabo! Você é filho de João Barroso?
– Sim, s'or barão.
– Sua mãe chamava-se Maria José?
– Sim, s'or barão; mas não a conheci. Meu pai queria que eu fosse padre, mas, coitado, morreu logo... deixou-me ao deus dará. Estive na África... não arranjei nada... vai então resolvi embarcar para o Brasil. Pelo Santo Inácio, vai fazer um ano que cá estou.
– Você não tem um irmão?
– Não sei se o tenho ou se o tinha. Saiu da aldeia ainda o nosso pai era vivo. Disseram que tinha vindo para o Brasil. Nunca mais tive notícias dele.
E o hortelão agachou-se de novo diante de seu canteiro.
– Homem! Deixa lá esses repolhos, exclamou o barão, e dá cá um abraço! Teu irmão sou eu!
Imaginem a cena que se passou.
* * *
Quando a baronesa viu entrar em casa o marido de mãos dadas ao chacareiro, ficou muito admirada e perguntou:
– Que foi isto? Encontraste alguma coisa que te desagradasse?
– Pelo contrário: encontrei um irmão! Teresa, abraça teu cunhado; meninos, meninas, tomem a bênção a seu tio!...